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ReportagemComo alcançar a independência financeira?
De acumular fortunas a fazer um pé-de-meia para tempos de crise, especialistas abordam o que é ser independente e por que a maioria não chega lá
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Como alcançar a independência financeira?
De acumular fortunas a fazer um pé-de-meia para tempos de crise, especialistas abordam o que é ser independente e por que a maioria não chega lá
Circulando pelo mundo há três décadas, o método FIRE (sigla para Independência Financeira, Aposentadoria Precoce) vem embalando os sonhos de muitos jovens que pretendem se tornar 100% donos dos próprios narizes desde muito cedo. O termo, que apareceu pela primeira vez no livro “O Dinheiro ou a Vida” (Actual, 2020), dos americanos Vicki Robin e Joe Dominguez, no entanto, só foi pegar fogo mesmo no início dos anos 2000, com milhares de jovens ambiciosos do mundo todo buscando aderir à corrente.
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A ideia central criada pelos autores é simples, ao menos no papel: tentar juntar até os 30 ou 40 anos de idade dinheiro suficiente para viver o resto da vida de forma confortável, mesmo sem botar o pé mais um dia que seja no trabalho. Assim, a pessoa estaria livre para empreender ou fazer o que lhe desse na telha, sem perder tempo com ninharias como emprego ou salário.
Para a professora de economia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Lucilene Morandi, a proposta só não é absurda ou inviável para uma parcela muito pequena da população num país desigual como o Brasil. Para a grande maioria, que “está correndo atrás do necessário para sobreviver”, se trata de uma ideia irreal.
Mais da metade da população brasileira iniciou o ano sem nenhuma reserva financeira
Além disso, segundo a economista, o conceito é problemático e elitista pois se baseia numa visão de que o trabalho é reservado apenas para aqueles que não têm outra alternativa. “Esse movimento me parece filhote da ideia de enriquecer rápido e parar de trabalhar. Numa sociedade mais igualitária, ela não caberia”, afirma.
Na realidade de boa parcela da população brasileira, poupar tanto dinheiro tão cedo e não depender de mais nada para ter uma vida confortável é uma espécie de utopia. Mais da metade, ou 56% da população, iniciou o ano de 2020 sem nenhuma reserva financeira, segundo o Raio-X do Investidor da Anbima (Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais). Portanto, são pessoas que entraram na pandemia sem nenhuma rede de segurança contra o impacto que esse período teria em seu bolso.
E se engana quem pensa que a falta de economias se resume às faixas mais pobres da população, como aponta a especialista em comportamento financeiro Ana Leoni. No mesmo período, 28% dos representantes da classe A no país também não tinham nenhum dinheiro guardado, ainda segundo a Anbima, enquanto 15% dos membros das classes D e E, apesar de todas as dificuldades, possuíam algum investimento financeiro. “Isso mostra que não é só o tamanho do bolso, mas também da sua disciplina e condição de planejamento”, considera a economista, criadora da plataforma Dinheiro com Atitude.
Leoni, aliás, define independência financeira como, além de não depender de ninguém para se manter, também não se basear só no ordenado do mês para sustentar seu estilo de vida. De acordo com a especialista, uma grande fatia dos brasileiros vive numa balança financeira equilibrada. Ou seja, não gasta mais do que ganha, mas também não reserva uma parcela significativa do salário para o futuro ou como uma folga destinada a lidar com os imprevistos.
“Essa condição é muito provisória, porque você não tem independência. A maioria das pessoas está muito suscetível a qualquer eventualidade externa, como uma crise ou a própria pandemia”, explica. Nesses momentos, quando a renda diminui ou os preços sobem, o equilíbrio fica imediatamente comprometido. Quando fala em independência, Leoni se refere a um estágio posterior ao equilíbrio, em que, “independentemente da renda, tenho condições de me manter, seja por um período específico ou até de forma plena.”
Expectativa x realidade
Mas independência financeira não é um conceito fechado. Ele pode significar coisas diferentes para pessoas diferentes, como reforça a consultora financeira Denise Damiani. “Para algumas pessoas, significa ter dinheiro para as emergências. Para outras, gastar sem precisar se preocupar com preços.” Caso precise abrigar todos esses conceitos sob um guarda-chuva único, ela diz que ser financeiramente independente é “ter recursos suficientes para enfrentar sua vida da maneira como você a desenhou”.
Apesar de serem comuns reclamações de que é cada vez mais difícil para os jovens juntar dinheiro, deixar a casa dos pais ou comprar um imóvel, a consultora enxerga hoje condições muito mais favoráveis do que no passado, como maior acesso à educação e mais linhas de crédito e investimento. Para ela, a diferença está nas expectativas.
Ser financeiramente independente é ter recursos suficientes para enfrentar sua vida da maneira como você a desenhou
Antes, diz a consultora, a visão de um futuro próspero envolvia trabalhar duro por muitos anos e se aposentar em condições de não passar fome na velhice. “Hoje, se você disser uma coisa dessas para um jovem, ele te cospe na cara”, brinca. Com base em raros exemplos de pessoas que conseguiram enriquecer cedo, muitos se apegam a expectativas irreais que ou não dão certo ou levam muito tempo para se concretizar, criando a impressão de que ser financeiramente independente hoje é muito mais complexo, diz a especialista.
A matemática da independência
Embora o contexto econômico brasileiro, marcado por crises e alta da inflação, prejudique sim as finanças de muita gente, ele não pode ser considerado um fator determinante para a falta de planejamento e reservas, diz Leoni. “É uma desculpa verdadeira, pois as condições econômicas dificultam, mas nas épocas em que os indicadores vão bem, também não vemos um aumento nas poupanças”, revela.
Os problemas econômicos também não explicam, segundo a especialista em comportamento financeiro, por que em países como Bolívia e Equador, que têm renda per capita muito inferior à do Brasil, ou mesmo na Argentina, num estado de eterna crise, a taxa de poupança é muito maior do que aqui.
Para Damiani, a matemática é a mais simples possível: para chegar a algum grau de independência financeira, a pessoa precisa ganhar mais do que gasta e investir a diferença de forma eficiente. Além disso, buscar sempre recursos extra e se aprimorar em sua área para ampliar a renda. E essa lógica independe do nível de renda, diz a consultora. Até por isso, há indivíduos que, ganhando R$ 3 mil por mês, conseguem juntar uma gorda poupança, enquanto outros vivem endividados mesmo recebendo um salário astronômico, afirma. “Se entender essa lógica, você consegue ultrapassar todos os percalços.”
Quem influencia quem?
Entre os fatores que hoje contribuem para subir os degraus da independência financeira, está a abundância de informação. Nos últimos anos, o número de pessoas que seguem perfis de educação financeira nas redes sociais, em sua maioria focados em investimentos e finanças, vem crescendo de forma contínua. Para Leoni, a urgência em tratar do tema é cada vez maior nos espaços digitais. O que também acaba criando um fenômeno contrário, com influenciadores tentando ensinar antes mesmo de aprender o suficiente ou então abusando do interesse das pessoas para aplicar fraudes.
Dinheiro não tem a ver com razão. Buscamos racionalizar nossas decisões, mas no fundo são feitas de emoção
Sozinho, porém, o acesso à informação não motiva grandes mudanças de comportamento, de acordo com a especialista. “A gente sabe que fumar mata, mas todos os dias aparecem novos fumantes”, exemplifica. Em geral, ela diz, o que as pessoas buscam nesse afã por conhecimento é se sentir mais seguras para investir — o que nem sempre é possível, já que todo investimento traz embutido algum grau de risco, salienta a economista.
Como a relação com o dinheiro tende a ser sempre emocional, eventos como uma crise ou o nascimento de um filho são os que de fato mexem com nossos hábitos e nos fazem buscar uma vida mais confortável e equilibrada financeiramente. Até por isso, ela lembra, muitos ganhadores da loteria ou de prêmios milionários em reality shows acabam perdendo tudo em pouco tempo. “Dinheiro não tem a ver com razão. Buscamos racionalizar nossas decisões, mas no fundo são feitas de emoção.”
Demasiado humano
O sócio e cofundador da consultoria financeira MoneyMind, André Luiz Machado, destaca que a falta de planejamento financeiro não é nenhum bicho de sete cabeças. Na verdade, ela está embutida no comportamento humano, que sempre foi imediatista. “É difícil para o ser humano abrir mão de algo no presente por uma possibilidade de benefício no futuro”, aponta.
Segundo Leoni, isso acontece porque o eu futuro é um completo desconhecido para nós. E deixar de fazer algo que queremos muito hoje para beneficiar alguém com quem acabamos de trombar na rua é um sacrifício que poucos estão dispostos a cometer. “Temos uma tendência muito maior a ceder ao prazer imediato, e não ao benefício futuro. Então a pessoa compra o carro ou a roupa que quer e deixa sempre para poupar amanhã.”
Até por isso, juntar dinheiro sem ter um objetivo claro acaba sendo inviável, diz Machado. “Se não fizer sentido na sua cabeça ter R$ 1 milhão, para que poupar todo mês?”, questiona. E traçar esses objetivos desde cedo é o ideal, já que, no planejamento financeiro, quanto antes começar, mais o tempo vai estar a seu favor, ele diz.
Mulheres autônomas
No caso da independência financeira feminina, porém, aplicar fórmula não é o suficiente. Damiani, que vem se debruçando há 20 anos sobre o tema, afirma que, além de elas historicamente ganharem menos que os homens — uma diferença de 22,3%, segundo o IBGE –, também costumam gastar mais e têm um conhecimento restrito de investimentos. “Sem corrigir esses três pilares, não tem como fazer com que as mulheres evitem uma velhice pobre e uma vida de dependência”, declara a consultora.
Essa falta de independência é uma das principais causas de muitas mulheres aguentarem relações abusivas
Para a especialista, porém, essa busca por independência vem acontecendo de forma cada vez mais clara. Se, por um lado, o casamento não tem se mostrado uma instituição confiável o suficiente para depositar todas as fichas financeiras nele, exercer uma atividade profissional também é direito das mulheres, para além da existência doméstica que historicamente marcou a vida delas. E hoje o salário de apenas uma pessoa nem sempre é capaz de prover o padrão de vida desejado. “Muitas vão trabalhar justamente para compor esse padrão”, conta Damiani.
Foi só na década de 1960 que a mulher ganhou o direito de abrir uma conta bancária no Brasil sem precisar pedir autorização ao marido. “Parece que estamos falando da época da nossa bisavó, mas minha mãe enfrentou isso”, ressalta Leoni. A inserção plena da mulher na atividade econômica, portanto, é bastante recente. E soma-se a essa dificuldade, diz a economista, o fato de que hoje a maior parte delas entra no mercado ou passa a empreender mais por necessidade do que por vontade. Numa escola em que foi dar uma palestra, a especialista conta que percebeu um interesse muito menor das alunas naquilo que ela tinha a dizer. “Todas falaram que quem cuida do dinheiro em casa é o pai. Então há uma geração recente de adolescentes que ainda tem o homem como referência financeira.”
No Brasil, essa dependência das mulheres em relação aos parceiros também tem sido fonte de sofrimentos tanto psicológicos quanto físicos, como lembra a professora da UFF Lucilene Morandi. É o que em grande parte das vezes as acorrenta a relações completamente insatisfatórias, ela ressalta. “Essa falta de independência é uma das principais causas de muitas mulheres aguentarem relações abusivas.”
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