Gabriel Martins, diretor de "Marte Um", fala sobre cinema independente — Gama Revista
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Conversas

'Não tenho verba para um próximo longa-metragem', diz representante do Brasil no Oscar

O mineiro Gabriel Martins, diretor de “Marte Um”, fala sobre a escolha de retratar sonhos coletivos, as dificuldades do cinema independente e a importância de mostrar a produção brasileira lá fora

Luara Calvi Anic 06 de Novembro de 2022

‘Não tenho verba para um próximo longa-metragem’, diz representante do Brasil no Oscar

Luara Calvi Anic 06 de Novembro de 2022
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O mineiro Gabriel Martins, diretor de “Marte Um”, fala sobre a escolha de retratar sonhos coletivos, as dificuldades do cinema independente e a importância de mostrar a produção brasileira lá fora

Se o diretor e roteirista Gabriel Martins, 34, tivesse a ideia de “Marte Um” agora, o filme poderia nunca ter sido lançado ou ainda estar no processo de captação de recursos. Na época, o roteiro só saiu do papel porque foi aprovado no primeiro edital do país direcionado a cineastas negros, o Longa BO Afirmativo — lançado em 2016 pela Agência Nacional do Cinema e Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura, mas descontinuado desde então.

De lá pra cá, as possibilidades para fazer um filme nacional com incentivo público diminuíram. Durante o governo Bolsonaro, acompanhamos cortes de verba na área e diferentes crises na Ancine. “Tenho vários roteiros escritos, mas não tenho dinheiro para fazer. Parte disso ou boa parte disso é pelo fato de que as políticas públicas não seguiram”, diz a Gama. “Quando faz um filme com dinheiro público, você consegue colocar a personalidade do seu coletivo de uma maneira muito mais direta, sem mediadores. O que é muito importante, até enquanto distribuição de renda no Brasil.”

Martins nasceu e cresceu no município de Contagem, periferia de Belo Horizonte. O sonho de infância de se tornar cineasta de alguma maneira se encontra com o de Deivinho, personagem principal de “Marte Um”, seu primeiro longa. O desejo do menino, no entanto, é se tornar astrofísico e participar de uma expedição a Marte.

No filme, acompanhamos a dificuldade do garoto em compartilhar o sonho com o pai, que aposta no filho como um futuro jogador de futebol, e as lutas, dramas e alegrias de uma família de classe baixa. “Queria que fosse um filme sobre várias coisas pinceladas naquele microcosmo de uma família brasileira, com sentimentos que poderiam se conectar com todos nós”, diz.

Enquanto o “Marte Um” segue em exibição nos cinemas, Martins e os integrantes da produtora Filmes de Plástico, da qual ele é cofundador, comemoram o fato de que o filme foi o escolhido do Brasil para concorrer a uma vaga na disputa dos indicados a Melhor Filme Internacional no Oscar de 2023. E aproveitam para trabalhar na divulgação com a expectativa de que novas portas posssam ser abertas. “Não é só o ‘Marte Um’ que a gente tá levando pra fora, é toda uma ideia de cinema brasileiro possível.”

O diretor e roteirista Gabriel Martins
O diretor e roteirista Gabriel Martins
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  • G |“Marte Um” tem muito a ver com sonhos. Seu filme anterior, “Terremoto” (2022), um curta sobre uma família de refugiados do Haiti, termina com você perguntando sobre sonhos. Por que a escolha de falar sobre esse tema?

    Gabriel Martins |

    Tenho uma postura diante da vida que é sempre olhar outros caminhos a se chegar. Quando isso cruza com personagens como os desses filmes, quero ouvi-los falar sobre os sonhos como um motor. Algo que tem a ver com uma espécie de resistência. Não é esse sonho puro, que vem de um lugar meio de alienação. É um sonho que, especificamente em “Terremoto”, mostra que essa família tem sonhos e que a maioria deles tem a ver com uma ideia de fazer o bem para o outro. O que eles trazem não são sonhos individuais, mas coletivos. Acho isso muito bonito e importante. Talvez tenha a ver com a gente ter vindo de um momento em que ceifaram as possibilidades de futuro na política, na pandemia.

  • G |Poderia falar um pouco mais sobre essa ideia de sonhos coletivos?

    GM |

    De alguma forma é importante a gente se entender como parte de um organismo maior. “Terremoto”, por exemplo, é um filme que fala sobre uma tragédia coletiva. E se a tragédia é coletiva, a gente pode fazer esse comparativo com a pandemia, com a política, que independentemente se a pessoa vota no partido x ou y, o resultado é coletivo, é sentido por todas as pessoas que habitam um certo lugar. Se a gente vive as tragédias coletivas, talvez tenha que sonhar coletivamente também. Pensar que cada passo interfere na vida de outra pessoa. E não dá para falar em sonhos em um lugar que não é possível semear nada, ninguém quer que os sonhos permaneçam no campo da abstração.

  • G |O projeto de “Marte Um” começou em 2014. Como um filme independente, ele teria existido com o cortes de verbas na cultura e no cinema e a paralisação da Ancine que ocorreram durante o governo Bolsonaro?

    GM |

    Acho que não teria acontecido porque inclusive o edital que o “Marte Um” ganhou foi descontinuado, não existiu depois. Assim como vários editais que ficaram congelados ou não resistiram, tanto que eu mesmo não tenho verba para um próximo longa-metragem. Tenho vários roteiros escritos, mas não tenho dinheiro para fazer. Parte disso ou boa parte disso é pelo fato de que as políticas públicas [para cultura] não seguiram. Foi uma paralisação total que prejudicou tudo e todos. Muitas das pessoas que filmaram nessa pandemia o fizeram com dinheiro antigo, que inclusive demorou muito para sair depois de toda essa questão da Ancine [atraso no repasse de verbas a projetos pré-aprovados]. Essa crise é real e impediu que o cinema continuasse crescendo, era para ter muito mais filmes hoje sendo lançados, muito mais filmes de pessoas diferentes, primeiros filmes.

  • G |O corte e atraso no repasse de verba pública para o cinema prejudica um tipo específico de produção?

    GM |

    Quando você corta ali na base, a gente tá falando de produtoras independentes que não são necessariamente vistas por streamings ou por um dinheiro privado. E mesmo que fossem, o tipo de conteúdo que pode ser patrocinado por uma Netflix, Amazon vai ser bem específico. Podem ser filmes bons e interessantes, mas vão estar atrelados a todo um processo que tem a ver com essas companhias. Não tem como todos os cineastas brasileiros serem acolhidos pelas empresas de streaming. Não vai ser todo mundo que vai ter oportunidade. Já quando você faz um filme com dinheiro público, consegue colocar a personalidade do seu coletivo, da sua produtora de uma maneira muito mais direta, sem muitos mediadores. O que é muito importante, até enquanto distribuição de renda no Brasil.

  • G |A história do cinema brasileiro foi construída ao longo de crises financeiras, altos e baixos. O que nasce daí? Como você vê essa realidade?

    GM |

    A gente não pode romantizar nossa situação. Acho que precisamos louvar a resiliência dos artistas brasileiros que conseguem produzir diante de circunstâncias desfavoráveis em sua maioria. E isso é um mérito dos artistas, mas ao mesmo tempo cria uma situação muito insustentável. Na nossa produtora a gente produziu sempre com menos do que gostaria. Isso fez com que não conseguissemos nos estruturar de maneira mais confortável a ponto de fazer um longa-metragem e poder ficar um tempo sem se preocupar de todo mês correr atrás para pagar o aluguel. Então acho que de alguma forma o cinema independente brasileiro é um cinema que sabe resistir. Se existe uma importância para isso é que a gente possa passar por tempos de escassez com alguma força, mas vale dizer que tem muitas produtoras que não resistem. Essa ideia do nosso cinema ser um cinema da falta tem que ficar no passado, porque senão a gente se contenta a produzir com pouco e deixa de cobrar. Nós merecemos fazer coisas com equipamentos de ponta. Já fazemos cinema muito bem, mesmo sem tecnologia de primeira, sem ter todos os recursos para isso, a gente tira leite de pedra.

  • G |“Marte Um” é cheio de referências que os brasileiros reconhecem. Como ele foi recebido lá fora?

    GM |

    Acho que é um filme bem universal porque traz essa relação familiar como centro e ela é perceptível em muitas culturas, mesmo com suas especificidades. Vivenciei o filme durante toda a primeira metade deste ano fora do Brasil e tive contato com o olhar do povo estrangeiro e é muito parecido com o nosso. Acho que aqui no Brasil o nível de emoção, de intensidade, é maior, mas lá fora as pessoas se emocionam da mesma forma, tem uma relação muito forte de identidade. Vários jovens que se identificam muito com os personagens Eunice [Camilla Damião] e Deivinho [Cícero Lucas]. É doido como uma narrativa muito específica consegue atravessar completamente culturas e comunicar.

  • G |E como foi o retorno da população negra lá fora?

    GM |

    Muito forte. As recepções também. Inclusive teve um festival na Filadélfia que o filme foi exibido, Black Star Film Festival, só de filmes negros. Ganhamos o prêmio de Melhor Filme e a gente teve uma sessão linda, histórica, com muitas pessoas se identificando, vindo conversar depois para falar do filme. Todo mundo muito movido. Então existe uma confraternização em torno do “Marte Um” que é muito singular. Nessa campanha do Oscar a gente tá conseguindo ver isso também.

  • G |Sendo pai de uma menina de dois anos, como é para você ouvir histórias da realidade brasileira que envolvem crianças e que aparecem em seus filmes?

    GM |

    Acho que hoje me vejo mais sensível a um universo que antes eu não fazia parte efetivamente. É entender demandas muito reais e concretas. Acho que quando a gente não tem filho, mesmo convivendo próximo de alguém que tenha, não estamos tão conectados com a responsabilidade e sentimentos reais de quando aquilo é uma parte da sua vida. Uma parte essencial que você não vai dizer não. Você pode até, mas isso significa uma outra circunstância. Acho que tudo me comove muito mais. Com essa paralisação [de bolsonaristas contrários ao resultado das eleições que bloquearam avenidas e rodovias], uma das coisas que mais mexeu é saber que haviam pessoas ali que estavam com filhos. Saber de alguém que tem qualquer circunstância que não pode dar ao filho tudo o que ele merece mexe muito mais comigo hoje porque sou pai e tenho um entendimento novo de sociedade.

  • G |Quando veio a ideia de “Marte Um”?

    GM |

    Foi mais ou menos por volta de 2014, após a Copa do Mundo, eu estava percebendo uma crise de identidade no Brasil. E queria falar um pouco sobre essa crise a partir de uma família que até tivesse uma composição bastante tradicional dentro da estrutura brasileira e que fosse um filme norteado por sonhos. Naquele momento em que o país tinha sofrido uma derrota no futebol, mas que parecia também que as coisas estavam muito complexas na nossa sociedade. Depois disso muita coisa aconteceu, o filme veio desse sentimento de querer falar desse momento. Queria que fosse um filme sobre várias coisas pinceladas naquele microcosmo de uma família brasileira, com sentimentos que poderiam se conectar com todos nós.

  • G |O quanto o filme tem de pessoal?

    GM |

    Talvez o que diz respeito ao fato do Deivinho ser muito sonhador, um pouco a relação que eu tenho com meu pai, a presença do AA [Alcoólicos Anônimos] no filme vem a partir do meu pai, e coisas próximas da minha família e amigos que trouxeram inspiração para os personagens

  • G |Você disse numa entrevista que sua referência de cinema na adolescência Hollywood. Quando você se deu conta de que era possível fazer cinema de outro jeito?

    GM |

    Quando eu tava com 12 anos fui pra Mostra de Cinema de Tiradentes e pude ver muitos filmes brasileiros, como “Bicho de Sete Cabeças” da Laís Bodansky, e mexeu muito comigo entender que existia um cinema brasileiro complexo, com narrativas dramáticas, duras. Comecei a pesquisar mais, querer ver mais coisas nesse sentido. E aí já foi ligando um pouco a chave, de alguma forma aquilo estava mais próximode mim do que filmes hollywoodianos.

  • G |No que você está trabalhando agora? Como está lidando com essa expectativa do Oscar?

    GM |

    Neste momento estou bem focado nessa campanha do Oscar, trabalhando, plantando projetos para o futuro, e com uma expectativa boa no sentido de que a gente tá com muito apoio de várias frentes. Mas é obviamente uma trajetória muito difícil, uma narrativa que a gente tem que trabalhar bastante. Estamos também aproveitando essa oportunidade para levar o cinema brasileiro para fora, falar muito da nossa cultura, aproveitar essa oportunidade única para também semear. O que eu mencionei sobre sonhos coletivos, esse é mais um, pensar que não é só o “Marte Um” que a gente tá levando pra lá, é toda uma ideia de cinema brasileiro possível.