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Mariana Simonetti

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Filhos

Como ensinar autonomia para os filhos?

Crianças precisam de acompanhamento dos cuidadores na hora de fazer escolhas. É parte do processo educativo dar as ferramentas para que esse aprendizado se consolide até a adolescência

Manuela Stelzer 06 de Novembro de 2022

Como ensinar autonomia para os filhos?

Manuela Stelzer 06 de Novembro de 2022
Mariana Simonetti

Crianças precisam de acompanhamento dos cuidadores na hora de fazer escolhas. É parte do processo educativo dar as ferramentas para que esse aprendizado se consolide até a adolescência

Um garoto de dois anos sai sozinho de casa para fazer compras no mercado. Outro menino, da mesma idade, é incumbido da tarefa de levar as roupas do pai na lavanderia. E uma garota, também nos primeiros anos de vida, precisa guiar uma sacerdotisa até sua casa. As descrições são de diferentes episódios da série “Crescidinhos” (2013), uma produção japonesa da Netflix.

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Pode até ser essa a imagem que vem à cabeça quando juntamos independência e infância na mesma frase. Mas a ideia é mais construir, elaborar e estimular a autonomia desde cedo (e que só será concluído na maturidade), do que de fato demandar que uma criança de dois anos vá ao supermercado sozinha. “Um bebê depende mais dos pais do que o filho de 10 anos, mas não é algo que muda da noite pro dia. Não viramos independentes do nada, trata-se de um processo”, explica a psicanalista Fernanda Lopes.

A viabilidade da junção de termos tão antagônicos quanto crianças e independência parece estar no meio do caminho entre oferecer ferramentas para que o pequeno cresça e se transforme em um adulto interdependente, e ao mesmo tempo não esperar uma autonomia desconexa com a faixa etária. “Ou roubaremos das crianças a infância que lhes resta”, afirma a psicóloga e consultora educacional Rosely Sayão, que não acredita em independência plena quando vivemos em sociedade – por isso prefere o conceito de interdependência.

Para tentar entender onde infância e autonomia se encontram, Gama ouviu duas especialistas e elencou pontos relevantes da conversa para ajudar pais e cuidadores a criar filhos mais autônomos, mas sem tirar deles a possibilidade de serem crianças.

Opinião própria: existe na infância?

Existe, mas está em construção. Num primeiro momento, a opinião é uma reprodução daquilo que a criança vê e entende dentro de casa. Depois, torna-se uma reprodução do que ela vê entre amigos. Na adolescência, não importa qual seja, é preciso vá contra aquilo que os pais pregam. Já um pouco mais velho, o adolescente consegue se descolar dessa espécie de rebeldia e chegar em uma opinião mais sua.

“Dá para falar que criança tem opinião própria e que ela vai ficando mais apropriada conforme ela cresce”, explica Fernanda Lopes. “Enquanto educadores é muito importante orientarmos, mas também respeitarmos esse lugar do pequeno.” Segundo ela, há situações e situações: uma é a opinião se banho todo dia é realmente necessário, a outra é uma que coloca sua vida em risco ou desrespeita alguma comunidade. “Temos que ter algumas bases do inegociável. Quando pensamos em homofobia, racismo, violência, não cabe opinião.”

Somos guias, mas não podemos garantir que esses adultos que criamos terão uma boa leitura de mundo

Nesse processo, o adulto é como um guia de viagem: na estrada, pais e filhos seguem juntos, mas o cuidador transmite aquilo que já conhece, entende e viu sobre o mundo. “É uma das funções que temos, como pai e mãe: oferecer um mundo cada vez mais amplo para que a criança cresça sabendo que o universo dela é muito mais do que aquele quintal em que ela vive.”

Claro que a construção de repertório é uma soma de fatores – “se fosse centrado só na família, núcleos ultraconservadores só formariam filhos conservadores, e não é isso que acontece”. A escola, os amigos, os diferentes ambientes de socialização têm papel importante no futuro daquela criança. “Em um exemplo bem concreto: a alimentação. O pequeno que é exposto a diferentes tipos de comida tem mais chance de aderir a uma dieta variada”, aponta Lopes. “Agora, o que ele vai fazer com o brócolis que ofereci a vida inteira, não tenho como saber. Pode ser que, ao morar sozinho, decida comer hambúrguer todos os dias. Somos guias, mas não podemos garantir que esses adultos que criamos terão uma boa leitura de mundo.”

A noção de responsabilidade

Rosely Sayão entende que uma criança que realiza tarefas domésticas, ajuda os cuidadores e é responsável com atividades da escola e extracurriculares não é, necessariamente, autônoma. “Na primeira infância, ela é capaz de colocar a roupa sozinha, por exemplo. Mas é preciso ter um adulto ao lado para orientá-la, ou o processo pode demorar horas, já que a criança se distrai e brinca com a situação.”

Na infância, lembrar ou não de responsabilidades ainda segue a lógica dos interesses

Mas isso não significa que o pequeno, mesmo com poucos anos de vida, não entenda e consiga realizar tarefas. Há, todavia, boas maneiras de estimular esse senso de responsabilidade de acordo com a idade. Até os seis anos, Sayão indica que a criança ajude o adulto, isto é, se o cuidador quer que os brinquedos estejam sempre organizados em um determinado lugar, “não adianta falar que quer daquele jeito, é mais eficiente colocá-los neste lugar e pedir a ajuda da criança no momento”.

A partir de seis ou sete anos, a lógica inverte: “A criança faz e o adulto ajuda. A responsabilidade passa a ser dela, mas sem a tutela do cuidador ela não vai sequer se lembrar da tarefa”. A psicóloga afirma que, nesta idade, ainda não é possível fazer um raciocínio “de agenda”, como na maturidade. Na infância, lembrar ou não de responsabilidades ainda segue a lógica dos interesses. “Se ela gosta da aula de natação, não vai esquecer do dia nem do horário. Se não gosta de fazer a atividade de robótica, nem vai lembrar que frequenta a aula.”

Quem decide?

“Imagina uma criança em uma loja de brinquedos que precisa escolher apenas um para levar para casa. É desesperador.” Rosely Sayão entende que o processo de escolha exige maturidade psíquica, uma vez que a criança até sabe, no exemplo citado, qual brinquedo quer levar. “Mas escolher um significa abdicar de todo o resto que eu poderia escolher também.” No dia a dia, a psicóloga indica oferecer apenas duas possibilidades, e aí sim deixar a escolha na mão do pequeno. “Na hora de escolher a roupa para sair, por exemplo, a criança ainda não entende o contexto social nem climático, então o adulto apresenta duas opções adequadas e ela decide a que prefere.”

Por mais que o processo de escolha possa ser complexo, há certa importância em seu exercício. “São lugares onde se desenvolve uma autonomia, onde o pequeno tem espaço para errar, rever atitudes, e que não vão gerar grandes dramas. Ele pode decidir cortar o cabelo, o máximo que pode acontecer é ter que esperar crescer”, pondera a psicanalista Fernanda Lopes.

Quando o poder de escolha dado ao pequeno causa sofrimento, pais e cuidadores devem interceder

Decisões que podem parecer triviais, como aquelas relacionadas ao cabelo e vestuário, podem ser bons testes para grandes questões da vida. “Escolher uma roupa pode parecer pequeno porque somos grandes, mas mesmo assim, aposto que ao pensar num date ou apresentação de trabalho, a roupa volta a ser relevante.” Para uma criança ou adolescente, então, “a roupa que ele vai para a escola é tudo”, diz Lopes. Ela entende que escolas que permitem peças para além do uniforme apostam na independência dos alunos. “São decisões que a criança vai tomar que tem pouco risco e pouco grau definitivo, quanto a decisão de qual profissão seguir, por exemplo.”

De qualquer forma, a psicanalista fala em sensibilidade e entendimento de que ali existe uma dependência: quando o poder de escolha dado ao pequeno causa sofrimento, pais e cuidadores devem interceder. “Os pais precisam aguentar o tranco de deixar os filhos tomarem algumas dianteiras, confiar no processo de que estaremos aqui para ampará-los, e se permitirem errar”, afirma. “O adulto precisa se autorizar a tomar uma decisão ali, levando em conta essa sensibilidade e o quanto conhece do próprio filho.”

A importância de brincar sozinho

Ainda que a sociedade possa não ver com bons olhos uma criança que brinca de forma solitária, especialistas elencam diferentes benefícios: incentiva um melhor gerenciamento do tempo, habilidades organizacionais, como também consciência e regulação emocional e física, além de estimular o desenvolvimento de uma independência social. Isto é, o pequeno entende que é capaz de estar apenas na própria companhia e se divertir com o que tem disponível.

O equilíbrio deve ser sempre o objetivo a ser alcançado – da mesma forma que aprecia as brincadeiras solitárias, é importante que a criança goste também de socializar com amigos, família ou na escola. Há, entretanto, um lugar especial para o ato de brincar autônomo, que é visto como estruturante para o crescimento independente do pequeno. E para isso, não se engane: não são necessários uma infinidade de brinquedos. Pelo contrário. “A brincadeira não precisa de brinquedo. Bebês brincam com o olhar, com movimentos espontâneos, com a chupeta. A criança com brinquedos em demasia olha aquela quantidade de coisa e não sabe o que fazer”, afirma Rosely Sayão.