Aborto: a relação entre fé e descriminalização — Gama Revista
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Mariana Simonetti

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Depoimento

Aborto: a relação entre fé e descriminalização

Nem todo religioso é contra a descriminalização: uma freira católica, uma pastora luterana, uma candomblecista e uma rabina compartilham suas opiniões

Manuela Stelzer 17 de Julho de 2022

Aborto: a relação entre fé e descriminalização

Manuela Stelzer 17 de Julho de 2022
Mariana Simonetti

Nem todo religioso é contra a descriminalização: uma freira católica, uma pastora luterana, uma candomblecista e uma rabina compartilham suas opiniões

Esteja com uma cruz no pescoço, uma quipá na cabeça ou toda de branco a caminho do terreiro – é parte do senso comum imaginar que qualquer figura religiosa considera o aborto um ato pecaminoso. Mas se nem a lei impediu que mulheres interrompessem gravidezes indesejadas, a culpa (ou mesmo os perigos de um procedimento inseguro e ilegal) também não as parou. De acordo com a Pesquisa Nacional do Aborto de 2016, mais da metade das mulheres que abortam são católicas ou evangélicas, e o aborto inseguro é uma das principais causas de morte materna.

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A verdade é que nem todas as pessoas de fé são contra a descriminalização do aborto. Há, inclusive, organizações constituídas por religiosos que lutam por direitos reprodutivos e pela autonomia da mulher sobre seu corpo, como é o caso dos movimentos Católicas Pelo Direito de Decidir e Frente Evangélica pela Legalização do Aborto. “Existe essa ideia de que a religião é uma instituição homogênea, e não é. Há uma multiplicidade de opiniões e até conflitos por conta disso”, afirma a freira católica, teóloga e filósofa Ivone Gebara. A divergência de posicionamentos ficou visível quando, por exemplo, uma jovem evangélica teve que deixar o Brasil por defender a legalização do aborto e sofrer ameaças de morte.

Acreditar em uma entidade, ter fé e praticar a espiritualidade não é sinônimo de criminalizar o aborto, e reiterar este estereótipo é apenas um entrave à ampliação do debate. Por isso, Gama convidou quatro mulheres, de diferentes religiões, para compartilharem suas opiniões sobre o tema, em um país em que a prática é, ainda que ilegal, cotidiana e comum.

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    ‘Mulheres abortam. Precisamos considerar a questão a partir daí’

    Lusmarina Garcia, doutora em direito pela UFRJ, teóloga e pastora luterana
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    “Eu apoio a descriminalização do aborto. Ser a favor ou contra o aborto em si não me parece ser relevante para o debate, pois não podemos reduzir a uma questão de opinião. É uma realidade: mulheres abortam, e precisamos considerar a questão a partir daí. A religião interfere no debate porque transforma em questão de moral e de fé, um tema que, na verdade, é de saúde pública e direitos humanos.

    É importante que os grupos religiosos participem do debate sobre aborto porque são eles que consideram a gravidez um destino incontornável para as mulheres. Nem todo grupo religioso é conservador acerca das mulheres, mas aqueles que são, fornecem os subsídios para o pensamento que se estrutura na base da denegação dos direitos, das liberdades e da autonomia das mulheres. Quanto mais grupos participarem, mais o debate se diversifica e mais claro fica que a religião não pode pretender dar as cartas à cidadania. A comunidade evangélica está cada vez mais engajada nesse debate, e com perspectivas diversas.

    Creio que foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Essa é uma liberdade radical, concedida a todos os seres humanos, homens e mulheres. Restringir a liberdade das mulheres de decidir acerca de sua vida ou do seu próprio ventre, é impor limites àquilo que Deus não limitou. Uma sociedade só é verdadeiramente democrática quando a totalidade da população tem a sua autonomia garantida, os seus direitos preservados e as suas liberdades asseguradas.”

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    ‘Não abortar pelo respeito à vida? Mas vivemos numa sociedade onde o desrespeito à vida é cotidiano’

    Ivone Gebara, freira católica, filósofa e teóloga feminista
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    “O que nós, mulheres teólogas e feministas, enfatizamos na tradição cristã é o comportamento ético, uma tradição ética que significa que a dor do outro tem que me tocar. E devo fazer alguma coisa pela dor do outro. O fato do outro estar caído, o fato da mulher ou da menina grávida estar em situação de desamparo, de violência – esse argumento já é o suficiente para eu tomar uma posição. Mulheres ricas não tem problema com o aborto, aliás, elas nem falam, simplesmente abortam. Para elas não tem punição, mas para as pobres têm. Além da punição que vem da própria condição de vida, há outras punições. Por isso, quando me perguntam sobre ser a favor ou contra o aborto, digo: sou a favor de ajudar as dores alheias, as dores das mulheres.

    Ser a favor da descriminalização do aborto vem sobretudo a partir da minha vida no Nordeste, e do encontro com mulheres pobres, violentadas, meninas que nem tinham ideia de que estavam grávidas – e quando descobriam, batiam na barriga e diziam que não queriam aquilo. Não tem discussão teórica aqui. E esse é o problema, inclusive da política: discutirmos princípios idealistas, e não a realidade. Dizem que não abortar é pelo respeito à vida, mas vivemos numa sociedade onde o desrespeito à vida é cotidiano. A falta de comida não é desrespeito à vida? Matar como se mata nesse país não é desrespeito à vida?

    Políticos e religiosos usam a palavra de Deus como uma espécie de muleta para fazerem aquilo que acham que deve ser feito. É uma utilização indevida de Deus, uma mercantilização da religião. Não tem nenhuma palavra nos evangelhos sobre aborto. Nenhuma. É uma leitura ideológica e polarizada. A religião me leva a ultrapassar os limites partidários, embora seja preciso tomar partido também. A dimensão da caridade, do amor ao próximo é sempre um convite para enxergamos, mesmo em um adversário, a humanidade. Para que serve a religião se não ajudar as pessoas a terem misericórdia e solidariedade umas com as outras?”

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    ‘Caberá à mulher decidir, e não a um dogma religioso’

    Lúcia Xavier, candomblecista e coordenadora da organização de mulheres negras Criola
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    “Até hoje, a religiosidade pesa como uma faca sobre as mulheres acerca das decisões que elas poderiam ter tomado, com mais liberdade, mais condições, mais acolhimento. O aborto ainda é tratado como algo pecaminoso, criminoso; vai inscrito, em quase todas as religiões, como um impedimento à vida. Mas muitas crenças e suas comunidades já tiveram certa condescendência com as mulheres que decidiram abortar, e as de matriz africana são algumas destas. Hoje em dia, elas se posicionam menos sobre essa questão, o que, no meu ponto de vista, tem a ver com o contexto conservador que vivemos – são religiões muito atacadas na sociedade, então evitam temas polêmicos, para se protegerem de mais violência.

    Ainda há um silêncio e uma perspectiva individualista sobre a gravidez, como se não importasse ou impactasse a comunidade, mas quando a mulher decide interromper a gravidez, passa a ser uma questão coletiva. Os corpos deixam de ser delas, e passam a ser da sociedade, do homem, do Estado. As pessoas devem se mobilizar em prol do aborto apesar de suas crenças porque não se trata de dogmas religiosos ou proibições que causarão danos na sociedade, tem a ver com a liberdade das mulheres.

    Caberá à mulher a decisão, e não a um dogma religioso do que pode ou não ser feito. É ela quem precisa, em última instância, dar a palavra. Mas o acolhimento, o apoio, o suporte, o desvendamento dos processos pelo caminho, a conversa sobre seus traumas, seus medos – isso é papel das religiões de matriz africana, que devem dar proteção a essas mulheres. Devemos levar em consideração tudo o que elas suportam, patriarcado, violência, racismo, e ao acolhê-las, permitir que elas tomem a melhor decisão.”

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    ‘Sou a favor de poder escolher’

    Fernanda Tomchinsky-Galanternik, psicóloga pela PUC-SP e mestranda em Midrash e Talmud pelo Schechter Institute of Jewish Studies em Jerusalém. Atua como rabina na sinagoga Shalom
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    “Entre ser a favor ou contra o aborto, diria que sou a favor de poder escolher. Que a pessoa possa pensar sobre o assunto e entender se tem ou não a capacidade de cuidar de um outro ser vivo, que demanda muito – psicológica, financeira, física e emocionalmente. Ser ou não contra o aborto é na verdade pensar o que se coloca como prioridade: nascer e morrer, ou ter uma qualidade de vida minimamente esperada. Sabemos que ter filhos e deixá-los para a adoção, por exemplo, não significa que essas crianças vão ser adotadas e terão vidas boas. E gravidezes fruto de estupro… Que tipo de vida terão todas as partes envolvidas? A que foi violentada, o bebê que nasce de um abuso sexual. É preciso colocar isso na balança.

    A religião judaica tem a visão de que a vida só começa de fato a partir do nascimento. É na hora de nascer e não na concepção. O que está em jogo, portanto, na hora de um aborto, é um potencial de vida e uma vida que já existe. Quando a gestante corre perigo de vida, o aborto é permitido. Mas o que geraria esse risco vira espaço de elucubração. Não é apenas o risco de vida literal, complicações no parto, questões atreladas a doenças. Tem a ver também com as dimensões psicológicas e emocionais que essa pessoa irá enfrentar.

    Vivemos em uma sociedade em que o aborto ainda é uma questão muito complexa, então, a pessoa que decide abortar vai precisar de carinho, atenção, conforto, acolhimento, consolo. Se ela é negada pela comunidade religiosa, isso a afasta. Precisamos dessas conversas no âmbito religioso para criar ali espaços seguros, que vão acolher independentemente da decisão. Se tivéssemos uma visão mais tranquila sobre o aborto, teríamos sociedades mais amigáveis com as pessoas que já estão aqui, e nossas crianças teriam maiores possibilidades de serem criadas em ambientes nos quais foram desejadas e queridas.”