Advogada Ana Lucia Dias fala sobre os direitos das mães — Gama Revista
Qual o direito das mães?
Icone para abrir
Getty Images/Microvone/ Mariana Simonetti

1

Conversas

Ana Lucia Dias, advogada: 'A sociedade não entende o papel que cabe a si na formação de uma criança'

Para advogada que há 20 anos luta pelos direitos das mães, ‘é dever da sociedade criar um ambiente seguro que permita à mulher exercer todas as funções que ela exercia antes da maternidade’

Isabelle Moreira Lima 08 de Maio de 2022

Ana Lucia Dias, advogada: ‘A sociedade não entende o papel que cabe a si na formação de uma criança’

Isabelle Moreira Lima 08 de Maio de 2022
Getty Images/Microvone/ Mariana Simonetti

Para advogada que há 20 anos luta pelos direitos das mães, ‘é dever da sociedade criar um ambiente seguro que permita à mulher exercer todas as funções que ela exercia antes da maternidade’

Dois casos em que mães foram impedidas de entrar em locais com seus filhos ficaram célebres no último mês. O primeiro deles, no começo de abril, foi o do bar Miúda, em São Paulo, que restringiu a entrada por entender que “não é lugar de criança”. O segundo, o de estudantes impedidas de entrar na própria faculdade com seus bebês e se sentiram humilhadas. Para a advogada Ana Lúcia Dias esses são casos de violação de direitos humanos e de violência contra as mães.

Essas (e outras) violações são tão comuns que é por isso que Dias, que há 20 anos defende casos ligados à maternidade, entende que as mães são uma categoria de vulnerabilidade de direitos humanos. “O direito de ir e vir existe por si só, é um direito humano reconhecido internacionalmente, e o exercício da maternidade não o impede. A paternidade não muda a vida do homem, mas a maternidade muda a vida de uma mulher”, afirma. E isso tudo, ela diz, é aceito pela sociedade. “É dever da sociedade criar um ambiente seguro que permita à mulher exercer todas as funções que ela exercia antes da maternidade. É essa a responsabilidade da sociedade e do poder público.”

Mãe solo de dois adolescentes, Ana Lúcia Dias é cofundadora das ONGs Cinematerna, que faz sessões de cinema para as mães possam ir com seus bebês assistir a filmes adultos, e Associação Artemis, pelo fim da violência contra a mulher; integra o colegiado Rede Pela Humanização do Parto e Nascimento e da Rede Feminista de Juristas; e dá palestras sobre direitos humanos, de família, das mulheres, sexuais, reprodutivos e advoga pela criação do direito das mães como categoria. Ela até criou um perfil de Instagram chamado de O Direito das Mães, onde fala sobre questões que vão desde a violência obstétrica até o feminicídio passando pela falta de apoio da amamentação e os casos em que o pagamento da pensão alimentícia não é cumprido.

 Arquivo pessoal

É aliás dentro deste assunto que a advogada tem sua tese mais interessante: a do capital invisível investido na maternidade. Isso diz respeito às horas de cuidado que as mães investem em seus filhos e que, portanto, deixam de trabalhar e de serem pagas. Quando é a mãe que assume tudo, os valores que a mãe deixa de ganhar porque não está trabalhando no mercado (e sim no cuidado dos filhos) deveria ser computado no cálculo da pensão.

“Quanto ganha uma médica? Quanto ganha um advogado? Homem/hora tabelado pelo CRM, pela OAB? As horas que ela disponibilizou para cuidar do filho dela, se ela tivesse atendendo alguém, quanto ela ganharia? Comecei a aplicar essa tese nas ações e todo mundo achava que eu era louca. Mas nós já temos oito decisões judiciais no Brasil que reconhecem a aplicação do capital invisível investido na maternidade”, ela conta na entrevista que você lê abaixo.

É uma violência – e não uma discriminação – impedir o acesso das mães a lugares

Getty Images/Microvone/ Mariana Simonetti
  • G |Dois casos em que as mães foram impedidas de circular com seus filhos ficaram célebres nos últimos dias. O do Bar Miúda e o da faculdade particular que impediu que a mãe entrasse com o seu bebê. Por que isso acontece?

    Ana Lúcia Dias |

    O direito de ir e vir existe por si só, é um direito humano reconhecido internacionalmente, e o exercício da maternidade não o impede. A paternidade não muda a vida do homem, mas a maternidade muda a vida de uma mulher. Quando você se torna mãe, nunca vai deixar de ser mãe. Até nos raros casos em que há a perda do poder familiar, continua o vínculo biológico. Quando foi criada a Declaração dos Direitos do Homem, depois da Segunda Guerra, as mulheres perceberam que não estavam previstas as particularidades da mulher, inclusive no exercício da maternidade. Vários grupos ativistas trabalharam e em 1979 surgiu a Cedaw, que é a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, o primeiro tratado internacional de direitos humanos relacionados à mulher especificamente, que diz que ninguém poderá sofrer discriminação em função do gênero ou da maternidade, que as mulheres devem ter licença-maternidade para estar com os filhos e que não poderiam perder o seu emprego porque estão com os filhos. Foi a partir daí que os direitos políticos da maternidade começaram a ser discutidos e que a sua proteção tornou-se uma determinação legal de direitos humanos.
    Depois veio a Convenção de Belém do Pará, outro tratado internacional de direitos humanos que protege a mulher e que reconhece que toda discriminação que ela sofre em função de gênero é uma violência. Nos dois casos que você menciona, a questão não é a importância da liberdade, é o dever dos lugares de se adequarem ao tratamento correto. No sentido jurídico mesmo, é desumano e é violação de direitos humanos fundamentais a proibição da mulher nesses lugares.
    No caso do bar, há uma censura quanto ao direito da criança, que tem uma prioridade absoluta no ordenamento jurídico, de não frequentar lugares tóxicos. Só que não se tratava daquilo e a criança estava com a mãe. Então foi uma violência – e não uma discriminação – impedir seu acesso. Eu entendo que a maternidade é uma categoria de vulnerabilidade de direitos humanos.

  • G |Há diferença de tratamento entre pai e mãe que circulam com os filhos?

    ALD |

    Total. Ao pai não é cobrado o dever de cuidado. A [filósofa e ativista feminista italiana] Silvia Federici fala sobre a questão da sobrecarga da mulher em função dos cuidados domésticos. E a gente sabe que se os cuidados fossem remunerados, a gente seria responsável por mais de um terço do PIB mundial. Hoje a mulher também produz e precisa ganhar renda com toda a sobrecarga do trabalho doméstico. O homem não tem o dever de cuidado pela sociedade. Não é cobrado dele e é permitido que seja pai de final de semana. Uma questão polêmica: há a permissão do aborto só em alguns casos. Se uma mulher que não está dentro desse sistema legal aborta, ela é criminalizada. Mas só ela; o pai da criança, não. Ela não fez o filho sozinha, mas eu nunca vi um homem sendo preso por tentativa de infanticídio, porque, se você não vai ajudar financeiramente, a pessoa não vai comer. E, nessa sociedade, quando o pai pega o filho a cada 15 dias, quando o pai dá comida, a sociedade aplaude. É uma equação completamente injusta, desumana.

  • G |Quais são os direitos das mães mais negligenciados?

    ALD |

    Primeiro, o exercício comum da vida. É tão ridículo falar esse termo, “o exercício comum da vida”. Ação afirmativa é você tratar desigualmente os desiguais para que eles cheguem em um patamar de igualdade. Então é óbvio que uma mulher que está com uma criança vai ter dificuldade de ficar em pé no ônibus. E não só aquela mulher que tem um bebê de colo – o assento prioritário é para mulheres gestantes e com crianças de colo. Mas uma criança de três anos é de colo? Uma criança de três anos se segura sozinha no ônibus? Se ela cai e corta o supercílio, que é uma coisa muito fácil de acontecer, quem é responsabilizado, acusado de negligência? A mãe que estava segurando essa criança. Se é com um homem, é só um acidente ou a criança foi desobediente. Não ceder o lugar para a mulher sentar quando ela está com um filho já é uma violação à maternidade, ao tratado internacional. Outro dia no Rio Grande do Sul, uma mulher saiu para ir ao mercado e deixou a filha de cinco anos no apartamento com o padrasto, foi uma questão de 20 minutos. Essa criança caiu da janela e morreu. A mãe está sendo processada por homicídio porque ela tem o dever de cuidar, mas quem ia comprar a comida dessa menina? O padrasto? Mas ele não tem relação com ela. Entende que equação errada? Outra afronta é na questão do salário: uma mãe não tem a mesma oportunidade de carreira, porque ela vai faltar às vezes, você tem filho e o filho precisa dela. E a empresa não entende, vai falar que ela não produziu. A sociedade não entende o papel que cabe a si na criação de uma criança.

Eu insisto em classificar a maternidade como uma categoria de vulnerabilidade de direitos humanos

Getty Images/Microvone/ Mariana Simonetti
  • G |O que pode mudar o modo como pessoas e empresas olham para as mães, para que sejam vistas com seu potencial real e não como potencial de problemas?

    ALD |

    Isso já tem acontecido. Tem um caminho imenso pela frente, mas eu acho que muitas ativistas se tornaram mães e acabaram por discutir isso. A violência contra mulher é endêmica. Só que muitas mulheres que sofreram violência ou que eram ativistas dessa área se tornaram mães e começaram a ver que não havia espaço na política. A Manuela d’Ávila trabalhou na Câmara amamentando e era criticada. Hoje há empresas que contratam só mães.

  • G |Mas ainda é raro…

    ALD |

    Sim, mas já começa a acontecer. Há muitas mulheres CEOs hoje e a maioria é de mães, que passaram por esse lugar de preconceito e vulnerabilidade. Ao vivenciar isso, as mulheres começam a discutir essa questão. Eu insisto em classificar a maternidade como uma categoria de vulnerabilidade de direitos humanos. Quando se assume isso, que há opressão, os países que são signatários dos tratados devem investir recursos públicos e recursos em políticas públicas para modificar a situação.

  • G |Como a licença-paternidade poderia melhorar a situação das mães se ela existisse de fato?

    ALD |

    Os dois devem ter o mesmo tempo de licença-paternidade e maternidade. Se esse homem, em vez de sair para trabalhar, está em casa preocupado com a questão paterna, você não tem uma sobrecarga e uma mulher doente. Só ela pode amamentar o bebê. Ele pode trocar e colocar para dormir, daí os dois participam. E isso é ganho, não só para a mulher ou para o homem, mas para a sociedade. Só não é assim por uma questão cultural. O homem sai de licença-paternidade e fica lá de boa porque entende que o dever de cuidado é da mulher. De novo, estamos falando de machismo, de patriarcado.

O tempo que uma mãe gasta para o cuidado de um filho tem que ser calculado nas despesas da pensão alimentícia

Getty Images/Microvone/ Mariana Simonetti
  • G |Não é novidade que as mães são demitidas após a licença-maternidade. Isso ocorre porque há uma ideia de que são incapazes de fazer algo além de cuidar dos filhos? E o que isso representa para as mães além das perdas financeiras?

    ALD |

    As mulheres sofrem discriminação por acharem que elas não são capazes porque elas são mães. Temos um governo que já declarou que as mulheres mães não deveriam trabalhar e que não deveriam ser contratadas. Em vez de dar um benefício para empresa que contrata a mulher mãe, tiram essa possibilidade. Tem um vídeo muito interessante que chama “O trabalho mais difícil do mundo”. É uma entrevista de emprego para diretor de operações. E ele começa dizendo que essa pessoa vai ter que ficar à disposição do associado todos os dias do ano, que só pode comer depois que essa ele comeu, só pode dormir depois que dele dormir, que nas datas comemorativas ele vai trabalhar mais, etc. E no final ele fala: e tudo isso sem receber remuneração. E respondem que isso não existe, e ele fala que existe. Neste momento há milhares de mulheres desempenhando isso: são as mães. É disso que a gente tá falando, desse trabalho ininterrupto. Um trabalho ininterrupto sem receber dinheiro não é um trabalho análogo à escravidão? O que acontece que a mulher mãe não é vista assim?

  • G |Esse é o capital invisível investido na maternidade sobre o qual você escreveu? O que é isso exatamente?

    ALD |

    Sim. É o tempo do cuidado que deveria ser partilhado, já que o poder familiar tem que ser exercido em igualdade de condições e já que o cuidado da criança não é uma atribuição de gênero. O tempo que essa mãe gasta para esse cuidado tem que ser calculado nas despesas da pensão alimentícia. Vamos pegar então um homem e uma mulher que partem do zero na sua vida em comum e nas suas carreiras. Vem um filho. Esse homem vai investir na carreira dele, essa mulher não. E aí eles se separam e essa mulher tem que arcar com metade das despesas do filho, porque nessa hora os direitos são iguais. Só que esse cara já estudou, esse cara tem um descanso. E essa mulher está responsável por toda a rotina da criança. Essa rotina, se você contratar outros profissionais num padrão de vida ideal, excelente, compreende motorista, cozinheira e babá. Os valores que seriam pagos a esses profissionais têm que ser inseridos no cálculo. Comecei a discutir que essa hora do cuidado precisa estar no cálculo da pensão alimentícia. Quanto ganha uma médica? Quanto ganha um advogado? Homem/hora tabelado pelo CRM, pela OAB. As horas que ela disponibilizou para cuidar do filho dela, se ela tivesse atendendo alguém, quanto ela ganharia? Comecei a aplicar essa tese nas ações e todo mundo achava que eu era louca. Mas nós já temos oito decisões judiciais no Brasil que reconhecem a aplicação do capital invisível investido na maternidade. No ano passado, eu capacitei 513 profissionais do direito nessa tese para as ações de alimentos, eram 511 advogadas e dois advogados, e eles já estão usando e estão sendo reconhecidos.

  • G |Você advoga por um direito das mães como uma categoria. Acha que estamos próximos de conseguir que eles sejam cumpridos?

    ALD |

    Não sei se estamos próximos. Sou advogada há 22 anos, trabalho para mulheres mães, seja na área da violência obstétrica ou outras. Óbvio que a gente está mais próximo do que antes. Mas há um contraponto altamente conservador, porque muitas das deficiências da maternidade se resolveriam se ela não fosse compulsória mas um direito voluntário. A maternidade precisa ser voluntária, prazerosa, segura e socialmente amparada. Caminhamos para discutir isso, mas é urgente. O que é o direito ao aborto? É o direito da voluntariedade, porque a da paternidade é dada aos homens, mas não é dada à mulher. Na Cedaw, há o direito a um planejamento familiar. Como um país que assinou um tratado internacional que diz isso não dá o direito a essa escolha?

  • G |Que tipo de apoio o Estado deveria dar a mães e pais? Algum tipo de subsídio? E qual é a responsabilidade da sociedade também? O que é que falta do lado de estado e sociedade?

    ALD |

    Falta cumprir uma determinação de que a maternidade é uma questão de direitos humanos. Quando você se compromete a cumprir isso, dá prioridade para as mulheres, produz um ambiente saudável para que as mães vivam, para frequentar os lugares públicos, ter segurança para exercer o seu trabalho, ter o direito e a segurança à sua saúde, ao seu descanso. Investir em políticas públicas para que tenha banco de leite nas empresas. É dever da sociedade criar um ambiente seguro que permita à mulher exercer todas as funções que ela exercia antes da maternidade. É essa a responsabilidade da sociedade e do poder público. E isso vai reverter onde? No emprego, nas relações sociais, no transporte, na segurança, na prioridade, no sistema da Justiça, reconhecendo a sobrecarga. Se você reconhece a sobrecarga como uma violência, quando você não a permite mais, você deixa de ser conivente. Quando você sabe que existe uma sobrecarga que é violenta e você não faz nada para mudar, você é cúmplice dessa violência, você se torna agressor e você é responsável.

Getty Images/Microvone/ Mariana Simonetti