Flávia Biroli: “Há um ataque aberto aos direitos das mulheres no mundo hoje” — Gama Revista
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Domínio público/ William H. Johnson

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Conversas

Flávia Biroli: “Há um ataque aberto aos direitos das mulheres no mundo hoje“

Cientista política relaciona a criminalização do aborto e a violência contra as mulheres à crise democrática e o avanço da extrema direita no mundo

Luara Calvi Anic 17 de Julho de 2022

Flávia Biroli: “Há um ataque aberto aos direitos das mulheres no mundo hoje“

Luara Calvi Anic 17 de Julho de 2022
Domínio público/ William H. Johnson

Cientista política relaciona a criminalização do aborto e a violência contra as mulheres à crise democrática e o avanço da extrema direita no mundo

Não é de hoje que movimentos contra a descriminalização do aborto se articulam mundo afora. Desde os anos 1990, quando aconteceram eventos como a Conferência Mundial da Mulher, que trouxeram a pauta dos direitos reprodutivos, grupos conservadores vêm se estruturando e articulando discursos para que a prática se mantenha criminalizada. Mas foi nos últimos anos que uma oportunidade importante surgiu para essa parcela da população: a de adentrar de maneira mais significativa na política.

 Arquivo Pessoal

É o que defende a cientista política e professora da Universidade de Brasília, Flávia Biroli. Ela associa a ascensão da extrema direita no Brasil e no mundo a uma representatividade maior de grupos antiaborto no debate público e na política. “Essa estrutura de oportunidades permitiu contestar um direito fundamental das mulheres em um contexto que a gente pode ver como de enfraquecimento da própria democracia”, diz a Gama.

Direito sobre o próprio corpo que ela associa ao direito à cidadania. “Quando a gente nega o direito ao aborto, negamos um direito fundamental às mulheres de decisão sobre algo que é muito central na sua integridade física e psíquica, o de ter um projeto de vida.”

Biroli é doutora em história pela Unicamp. Fez parte do Grupo de Assessoras da Sociedade Civil da ONU Mulheres (2016-2017), foi pesquisadora visitante no Latin American Centre, na Universidade de Oxford (2020) e é autora, entre outros títulos, de “Gênero, Neoconservadorismo e Democracia” (com Maria das Dores C. Machado e Juan Vaggione, Boitempo, 2020).

Na conversa a seguir, ela trata do tema que pesquisa atualmente: as reações aos debates de igualdade de gênero no Brasil e na América Latina, discutindo suas conexões com a ascensão da extrema direita e com processos de erosão da democracia na região. “Não dá para se tratar a agenda do direito ao aborto como menor. Ela diz respeito à cidadania das mulheres, que diz respeito à democracia.”

O direito ao aborto diz respeito à cidadania das mulheres, que diz respeito à democracia

  • G |Esta entrevista acontece no dia em que veio à tona o caso do anestesista preso por estuprar uma mulher no parto. De que maneira esse fato conversa com os últimos acontecimentos envolvendo mulheres, como a tentativa de uma juíza de impedir uma criança de abortar e a revogação desse direito nos Estados Unidos?

    Flávia Biroli |

    A gente está vivendo um contexto em que aqueles que se opõem ao direito ao aborto têm tensionado o direito a uma vida sem violência pelas mulheres. Eles não dizem que são contra as políticas para combater a violência, mas vêm operando para enfraquecer essas políticas. No caso do aborto, se posicionam contra o direito das mulheres ao aborto legal e ao aborto em qualquer circunstância. No caso da violência, não dizem “nós somos contra as políticas de combate à violência contra as mulheres”, é difícil assumir uma posição de embate direto a esse tema, mas tem-se operado de uma maneira que vai ampliando a desconfiança em relação a palavra da mulher, contestando as políticas de combate à violência e colocando no lugar políticas para o fortalecimento da família. O marco hoje no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos é o do fortalecimento das famílias para o combate à violência.

  • G |De que maneira isso acontece?

    FB |

    No caso da violência, o que a gente tem visto é um recuo no entendimento de que é importante punir, mas principalmente um recuo nas políticas de prevenção à violência contra as mulheres. No caso Roe vs Wade [que garantia o direito constitucional ao aborto nos EUA], quando a Suprema Corte deixa para cada estado americano a decisão sobre uma legislação, isso significa claramente que se abre a possibilidade de que as mulheres sejam penalizadas e que exista uma perseguição aberta a elas nesses estados. Nesse esgarçamento da laicidade do estado você vê uma reativação do controle sobre os corpos das mulheres numa perspectiva penal, que é o caso do aborto, e uma espécie de liberação para que a dinâmica patriarcal no cotidiano seja de controle por parte dos homens sobre os corpos das mulheres. Essas duas coisas estão sempre acontecendo juntas. A ativação do estado para controlar os corpos das mulheres acontece de um lado para penalizá-las no caso do aborto e de outro por meio de uma ampliação da tolerância em relação à violência, uma maior recusa de se colocar essa violência como um problema com qual o estado tem que lidar, um problema que diz respeito aos direitos das mulheres em um sentido muito básico. O que você tem é uma limitação da cidadania delas.

  • G |Quando falamos em família, imediatamente a gente pensa no adentramento das instituições religiosas no Estado. De que maneira esse fato influencia esse comportamento conservador?

    FB |

    Estamos vivendo hoje um momento em que os avanços de posições que comprometem direitos básicos das mulheres têm uma relação muito direta com a posição que doutrinas, fé, ativismo de caráter religioso têm tido no âmbito do estado e em contextos de democracias que vem se fragilizando, como é o caso dos Estados Unidos, do Brasil. A gente precisa colocar essa discussão não em termos de como diferentes visões e crenças convivem em sociedades plurais e no contexto democrático, mas em como, com base em certas crenças, doutrinas, ativismo de caráter religioso, se avança contra a cidadania das mulheres. Estamos vendo um ataque muito direto aos princípios básicos da democracia por meio dessa erosão do direito delas, do direito à integridade. Quando você diz que [olhar para a] violência é sobre fortalecer a família, como que a gente faz para lidar com o fato de que se fere a integridade das mulheres na própria casa? Porque a maior parte dos casos de violência sexual, sobretudo de abuso, se dão na casa.

  • G |Falando especificamente sobre a revogação do direito ao aborto nos Estados Unidos, a que você associa esse passo para trás agora?

    FB |

    O conflito sempre existiu, mas é agora que a gente tem esses padrões de reação aos direitos das mulheres aparecendo da maneira como tem aparecido em diferentes países. Roe vs Wade é de 1973 e sempre foi [uma resolução] conflitiva, nunca foi algo que estivesse pacificado. Mas o conflitivo não significa as condições para contestar a legitimidade do direito ao aborto na democracia dos Estados Unidos. Desde os anos 1990, a gente vê um fortalecimento de redes conservadoras se profissionalizando, ganhando experiência e que têm como objetivo reagir aos avanços nos direitos das mulheres mundo afora. E os anos 1990 foram super importantes para o reconhecimento da garantia dos direitos reprodutivos das mulheres.

  • G |É aí que surgem esses grupos que se dizem a favor da vida?

    FB |

    Sim, inicialmente com uma agenda pró-vida, contrária ao direito ao aborto. Depois vão se modificando um pouco e tendo a autonomeação como pró-família, em defesa da família. Tem uma mudança de linguagem que é estratégica. Essas redes são transnacionais mas muitas delas têm origem nos Estados Unidos. Quando cruzamos isso com a ascensão da direita e da extrema direita no mundo, a gente se pergunta por que agora. Há uma estrutura de oportunidades que se abriu. Não é só porque Trump chegou à presidência da República, mas porque ao chegar a esse posto isso abre novas oportunidades. Por exemplo com a indicação de juízes conservadores à Suprema Corte em um contexto de atuação continuada de redes antiaborto e antifeministas. Inclusive essas redes incluem juristas. É muito importante entender que existe uma dimensão no âmbito jurídico e não é à toa que é na corte constitucional que a suspensão do direito ao aborto aconteceu. Essa estrutura de oportunidades permitiu contestar um direito fundamental das mulheres em um contexto de enfraquecimento da democracia.

  • G |E esse momento de oportunidade no caso brasileiro?

    FB |

    Com a chegada da extrema direita ao poder a gente tem vetos mais diretos por parte dos que hoje estão no poder, como por exemplo o secretário de atenção primária à saúde, Rafael Parente, que é o editor dessa cartilha que diz que todo aborto é crime, recusando a ideia de que existe aborto legal no Brasil. Ele é um médico ativista antiaborto, tem um ativismo contrário a ideia de que existe violência obstétrica. Ele diz que é uma invenção ideológica. Ao trazer a família e dizer que esses direitos são promovidos por ideologias que seriam contrárias à preservação da família, estão mexendo com uma base muito importante da garantia da cidadania das mulheres.  Acho importante fazer essa conexão, o direito ao aborto como um direito que está na base dos direitos cidadãos. Quando a gente nega o direito ao aborto, negamos um direito fundamental às mulheres de decisão sobre algo que é muito central na sua integridade física e psíquica, o de ter um projeto de vida.

  • G |A ausência de mulheres em cargos eletivos colabora para esse retrocesso?

    FB |

    Podemos estabelecer uma relação entre a sub-representação das mulheres nos espaços políticos e institucionais e a dificuldade de avançar nos debates sobre temas importantes para as mulheres, como os direitos reprodutivos. A Argentina foi o primeiro país na América Latina a adotar cotas eleitorais para as mulheres em 1991 e depois foi incrementando essa legislação. E a Argentina nesse tempo foi capaz de levar de maneira muito forte esse debate dos movimentos de mulheres e feministas para dentro dos espaços institucionais e, em dezembro de 2020, aprovou no Congresso o direito das mulheres ao aborto. Então a gente precisa garantir que as mulheres tenham direito efetivo à participação política, as cotas são ainda hoje a melhor maneira de garantir espaço, mas a presença de mulheres não garante necessariamente avanço nos direitos das mulheres.

  • G |Por quê?

    FB |

    Esses grupos conservadores têm ativado de maneira importante e estratégica mulheres conservadoras na luta deles contra o acesso ao direito ao aborto. É interessante porque as pesquisas desde os anos 1980 mostraram que os projetos de lei contrários ao direito ao aborto eram em sua enorme maioria e em algumas legislaturas eram totalmente 100% de autoria de homens. E agora a principal parlamentar autora de proposições que procuram retroceder os atos legais do aborto é uma mulher católica, Caroline de Toni (PSL-SC). E há outras mulheres que têm também atuado dessa mesma forma.

  • G |É possível ser contra o aborto e a favor da descriminalização do aborto. Poderia falar sobre como esses dois pensamentos podem coexistir numa mesma pessoa?

    FB |

    Em termos legais, a gente tá falando em direitos individuais básicos que tem uma relação muito direta com a validade que a democracia tem para diferentes pessoas, independentemente do sexo, do gênero. Defender esses direitos é defender que a cidadania não seja diferenciada para mulheres e homens. O compromisso com a democracia requer um compromisso com direitos fundamentais, como é o caso do direito ao aborto. A inscrição do direito ao aborto na legislação de um país não significa de maneira alguma que haverá algum tipo de pressão para que as mulheres recorram a um aborto, significa tão somente que as mulheres não serão penalizadas quando elas entenderem que uma gestação não deve ser levada a termo por qualquer razão. Então em casos em que se garante o direito ao aborto, como nos Estados Unidos entre 1973 e 2022, as pessoas continuaram podendo escolher não abortar, a diferença é que elas puderam escolher abortar sem serem criminalizadas. E a gente tem dados mundo afora que mostram que as mulheres não deixam de recorrer a abortos quando há criminalização, mas elas o fazem em situações clandestinas, com maiores riscos para sua saúde, com maior peso em termos psíquicos.

  • G |Oportuno falar que no Brasil mais mulheres negras são vítimas de aborto inseguro do que brancas.

    FB |

    Exato, porque o que acontece numa situação de clandestinidade: as mulheres que são mais vulnerabilizadas socialmente pelas relações de desigualdade, de classe econômicas e de raça, estão numa posição de maior dificuldade para ter acesso a serviços seguros. A clandestinidade faz com que esse serviço não seja só um serviço pago, mas agora mais acessível para quem tem maiores recursos. Nessa situação nos Estados Unidos, as mulheres que têm dinheiro, e isso vai obviamente ser algo mais acessível para as mulheres brancas, poderão viajar entre estados para realizar um aborto no estado em que ele continue permitido. Para outras, isso tornará o acesso impossível porque o custo de se viajar é muito alto. Basicamente não me parece razoável que o fato de eu ser contra o aborto possa levar à limitação de um direito fundamental das mulheres. Eu ser contra porque isso corresponde às minhas crenças, a minha maneira de perceber o mundo, a minha perspectiva ética e moral, só significa que eu posso não recorrer ao aborto na minha vida. Posso inclusive influenciar pessoas ao meu redor de que há outras possibilidades diante de uma gestação indesejada, mas não retirar o direito de alguém.

  • G |Quais outros retrocessos você prevê? Que fase temos pela frente?

    FB |

    Não é exagero dizer que há um ataque aberto aos direitos das mulheres no mundo hoje, e que esse é um ataque aos fundamentos da igualdade de gênero, que foram ativados como parte das lutas democráticas e das lutas pelos direitos humanos há ao menos seis décadas. Me parece que de um lado a gente tem uma situação que não será capaz de reposicionar as mulheres na sua reivindicação por cidadania e por igualdade, mas do outro a gente tem um amadurecimento das lutas delas, um espraiamento das perspectivas feministas igualitárias entre as mais jovens. Então me parece muito difícil que isso se dissolva no nosso mundo hoje.
    Mas ao mesmo tempo, você vai tornando as vidas das mulheres difíceis. Tolerando e naturalizando violências no cotidiano que tem um custo de restrição da sua cidadania. E o mundo já não é fácil para elas, pelo contrário, carregam nas costas o trabalho reprodutivo, de cuidado, têm maior acesso à educação e menores salários. E essas mesmas mulheres que têm sido tão claras na sua demanda por direitos iguais, por democracia e por um mundo mais solidário, hoje são alvo desse levante antidemocrático e da extrema direita no mundo.