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RepertórioConheça artistas que tratam do tema descanso
De quadros e instalações a músicas e séries de TV, o descanso ganha espaço nas artes enquanto a sociedade lida com a exaustão
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Conheça artistas que tratam do tema descanso
De quadros e instalações a músicas e séries de TV, o descanso ganha espaço nas artes enquanto a sociedade lida com a exaustão
Quem visitou a feira artística Art Basel, de Miami, em 2014, se deparou com uma cena curiosa. Numa sala com paredes brancas e nuas, os visitantes encontravam uma dezena de camas dispostas de forma aleatória. Sobre elas, usando protetores auriculares e cobertores coloridos, corpos se estendiam, fosse de frente, de lado ou de costas, mergulhados em diferentes estados do sono.
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A proposta da instalação “Sleeping Exercise”, montada pela renomada artista sérvia Marina Abramovic, era exatamente o que parecia: promover uma sessão coletiva de sono e descanso. “Os participantes são encorajados a deitar, descansar e dormir sem restrição de tempo”, informava a descrição oficial da obra. “Esse exercício oferece ao público uma oportunidade de desacelerar no ambiente agitado e veloz da Art Basel.”
Embora arte e descanso não sejam um match tão intuitivo assim, momentos de ócio e lazer serviram como inspiração para artistas nos mais variados meios ao longo da história. E vêm ganhando espaço num momento em que a exaustão e o burnout assumem posição central no debate público, e muita gente começa a questionar a prioridade dada ao trabalho ao longo da vida — o que tem levado a movimentos como o “quiet quitting” e ondas de demissões voluntárias.
O diretor artístico, curador e colunista da Gama, Marcello Dantas, que já trabalhou com artistas como o chinês Ai Weiwei e a própria Abramovic, evoca a ideia do ócio criativo, desenvolvida pelo sociólogo italiano Domenico de Masi, para se contrapor à noção do descanso como vazio ou um tempo perdido. “É o descanso, o nada fazer, como um processo consciente de transformação tanto da pessoa quanto das bases artísticas.”
Esse retrato do ócio, no entanto, não se restringe a artistas contemporâneos. Ele já aparecia, por exemplo, nos quadros clássicos que o pintor paulista Almeida Júnior (1850-1899) produziu na segunda metade do século 19. Entre eles, o mais famoso talvez seja “Caipira picando fumo”, hoje na Pinacoteca de São Paulo. A tela mostra um homem sentado numa escada, em posição relaxada, realizando a tarefa do título com o que parece ser bastante parcimônia.
Reprodução Pinacoteca / Almeida Junior
Para a curadora e professora de história da arte na Escola da Cidade, Fernanda Pitta, uma das questões mais intrigantes sobre a obra do artista é a falta de cenas ativas, representando a força do trabalho, um tema recorrente na pintura europeia do período. “No ciclo de pinturas caipiras do Almeida Júnior, é muito recorrente essa ideia do descanso, do intervalo de trabalho, o momento do ócio”, afirma Pitta, que pesquisa a obra do pintor.
Há muito tempo, o descanso vem sendo associado a uma visão negativa e repleta de preconceitos, que engloba desde a ideia do indígena como preguiçoso até o olhar das elites para as camadas trabalhadoras da sociedade, diz a curadora. Hoje, essa ótica estaria sendo desafiada por movimentos que entendem o ócio como uma espécie de resistência, a tomada do controle e da autonomia sobre o próprio tempo. “Certamente Almeida Júnior estava mais do lado dos agricultores do que dos caipiras, pela classe social em que estava, que era próxima do patrão”, considera a pesquisadora. O que, no entanto, não limita as possibilidades de leitura da sua obra.
Não fale em crise, trabalhe
Aprender a separar trabalho e vida pessoal vem se tornando uma das grandes utopias do mundo contemporâneo. Se, por um lado, favoreceria as empresas ter profissionais que não fossem atingidos pelos problemas da nossa existência social, para o funcionário, se desligar totalmente da rotina no escritório significa poder levar uma vida mais relaxada e tranquila. Ou não?
Ao menos de acordo com “Ruptura”, da Apple TV+, uma das séries mais elogiadas de 2022, o buraco é mais embaixo. O que a história propõe é uma cirurgia que separa nosso cérebro em duas partes: uma que existe apenas dentro, e outra fora do trabalho. O resultado é uma crítica tanto ao contexto de exploração corporativa quanto às nossas aspirações por uma separação radical desse tipo.
De fato, a exaustão profissional tem sido um tema recorrente nas obras de diversos artistas, em especial os que trabalham com performances. Dantas relembra o experimento extremo realizado pelo taiwanês Tehching Hsieh. Ao longo de um ano, entre 1980 e 1981, o artista se comprometeu a bater o ponto num relógio a cada uma hora, sem exceções. “Ele ficou numa sala, onde conseguia dormir no máximo uma hora seguida. É o burnout absoluto.” Ao final desse tempo, Hsieh organizou uma instalação onde cobriu paredes com fotos e todos os cartões de ponto que bateu no período. Hoje, a obra está exposta no museu Tate Modern, em Londres.
Além do taiwanês, o curador cita exemplos de artistas como o brasileiro Maurício Ianês, o russo Fyodor Pavlov-Andreevitch e o italiano Nico Vascellari como exemplos de artistas que realizam arte de longa duração, abordando o tema da exaustão física e psicológica. “Todos eles trabalham com questões como o burnout e o limite de tolerância do corpo.”
Beat desacelerado
Em junho de 2022, o supergrupo de K-pop BTS anunciou uma pausa em suas atividades. Entre os motivos, os membros da banda indicaram um princípio de burnout. “Sempre pensei que o BTS fosse diferente de outros grupos. Mas o problema com o K-pop e todo o sistema de idols é que não te dão tempo para amadurecer. Você precisa continuar filmando [produzindo músicas] e fazendo coisas”, disse o cantor Kim Nam-joon, conhecido pelo nome artístico RM.
Uma verdadeira indústria de proporções internacionis, o K-pop forma astros, os tais idols, desde muito cedo, num cotidiano considerado exaustivo e sem pausas. E essa rotina extenuante se reflete inclusive em algumas das músicas do gênero.
“Você pode descansar por um momento. Não pense em nada”, dizem os versos de “Healing”, do grupo Seventeen, que aborda a exaustão e a necessidade de desacelerar. O refrão de “Rest”, da cantora Baek Ye-rin, detalha ainda mais essa busca: “Vou alugar alguns filmes clássicos no caminho para casa. Quero estar num lugar onde não precise ser clara, onde não precise explicar. Só quero descansar.” Já “Marathon”, do DAY6, ensina que “descansar um pouco também é bom. Ir com calma também é bom. Você não precisa trabalhar demais.”
Um artista do porte de John Lennon (1940-1980) também compôs com regularidade canções sobre cansaço e sono, como “I’m So Tired”, “I’m Only Sleeping” e “How Do I Sleep”. Aqui no Brasil, a Bossa Nova até hoje embala tardes tranquilas, seja em Itapoã ou qualquer outro lugar, assim como Tim Maia, que fez questão de nos lembrar que só queria sossego. E Dantas aponta a reafirmação do ócio que permeia a “baianidade”, encarnada tão bem não só nas letras, mas nos ritmos das músicas de figuras como Caetano Veloso e Dorival Caymmi (1914-2008). Afinal, como bem diz Caymmi, “Depois de trabalhar toda a semana, meu sábado não vou desperdiçar”.
Sonho x descanso
É comum associarmos imediatamente sono ao descanso em obras como “David Beckham Sleeping” — um vídeo de quase duas horas do ex-atleta puxando um ronco, pela artista Sam Taylor-Wood. No entanto, essa ligação nem sempre é tão próxima quanto parece. “Descanso tem a ver com lazer, férias. Não é a mesma coisa. O sono é uma necessidade fundamental, o ócio é uma oportunidade”, lembra Marcello Dantas.
Basta evocar um quadro como “O Pesadelo”, do suíço Henry Fuseli (1741-1825), para entender a diferença. Na tela, que retrata tudo menos descanso, uma jovem adormecida é atormentada em seus pesadelos por um demônio e uma criatura que lembra um cavalo horripilante. Na graphic novel “Sandman”, de Neil Gaiman, mais tarde adaptada para série na Netflix, surge uma doença em que as pessoas passam décadas adormecidas e na maioria das vezes nunca despertam. Já em “Meu Ano de Descanso e Relaxamento” (Todavia, 2019), da escritora americana Ottessa Moshfegh, o sono da protagonista, constante e induzido por remédios, sugere menos o descanso natural do que uma fuga das próprias dificuldades e do mundo.
O curador aponta que hoje o sono, ou a falta dele, costuma ser mais um problema do que uma solução. Atualmente, um a cada três brasileiros sofre com sintomas de insônia. Remédios para dormir, como o zolpidem, também se popularizaram nas últimas décadas. “A insônia é o grande inimigo do descanso. O sono virou uma propriedade caríssima”, reforça Dantas. Ainda assim, algumas vezes todos esses temas acabam se encontrando na arte. “Sono, sonho, pesadelo, burnout, alívio, descanso são todas palavras que se relacionam intimamente, porque todas partem da ideia de ficar num limiar. Isso é do território da arte, estar entre o mundo consciente e o inconsciente.”
Deitado em berço esplêndido
Em 2019, o Centro Cultural Banco do Brasil no Rio de Janeiro fez das redes de descanso, tão tradicionais por aqui, o centro das atenções na exposição “Vaivém”. Foram 350 obras de 141 artistas, 32 deles indígenas, retratando esse objeto do cotidiano numa tentativa de entender como ele ajudou a construir a identidade nacional. Na ocasião, o curador e historiador da arte Raphael Fonseca reuniu obras de nomes como Hélio Oiticica, Denilson Baniwa, Tunga, Bispo do Rosário, Tarsila do Amaral e Debret.
“Ao revisitar o passado, conseguimos compreender como um fazer ancestral criado pelos povos ameríndios foi apropriado pelos europeus e, mais de cinco séculos após a invasão das Américas, ocupa um lugar de destaque no panteão que constitui a noção de uma identidade brasileira”, diz Fonseca no texto de apresentação da mostra.
Para Dantas, o descanso já faz parte do ethos brasileiro, “esse valor que damos ao dolce far niente [o ócio prazeroso], o momento de não engajamento com nada.” Não à toa, o lema de Macunaíma, o “herói sem nenhum caráter” que representava o povo brasileiro na obra de Mário de Andrade, era “Ai, que preguiça”. Mas nem todo lugar compartilha dessa valorização. “Na China ou no Japão, é quase um palavrão. São culturas com dificuldade para reverenciar o descanso, visto como preguiça ou fraqueza.”
De acordo com a curadora Fernanda Pitta, as obras de um artista contemporâneo como Maxwell Alexandre não só refletem essa possibilidade de descanso cotidiano do brasileiro como pode servir para fazer um contraponto ao trabalho de Almeida Júnio. Nesse caso, no lugar do caipira cortando fumo sossegado, entra o jovem negro tomando sol, fumando cigarro ou sentado tranquilamente ao lado da piscina.
“A produção de Maxwell lida com essa ideia das formas de lazer e empoderamento entre as populações negras no Brasil”, destaca a pesquisadora. “Quando ele retrata pessoas em volta da piscina, são figuras que constroem essa imagem de autonomia sobre o próprio tempo e suas formas criativas. Significa viver para além dos papéis e funções sociais.”