O cansaço infantil e como a exaustão afeta crianças — Gama Revista
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Filhos

As crianças estão exaustas

Elas passaram boa parte dos últimos dois anos dentro de casa, longe dos amigos, da escola e em frente às telas. Gama investiga o cansaço infantil e como essa sensação se manifesta nos pequenos

Manuela Stelzer 20 de Março de 2022

As crianças estão exaustas

Manuela Stelzer 20 de Março de 2022
Marcela Novaes "Entrada" (2021)

Elas passaram boa parte dos últimos dois anos dentro de casa, longe dos amigos, da escola e em frente às telas. Gama investiga o cansaço infantil e como essa sensação se manifesta nos pequenos

Se os adultos já sofreram na hora de adequar a rotina ao novo normal, além de lidar com todas as dificuldades que a pandemia apresentou, então imagine como foi o processo na cabeça de uma criança. De um dia para o outro, os pequenos foram avisados que não iriam mais à escola por um tempo, nem às atividades extracurriculares. Que precisariam ficar longe dos amigos e dos avós. E tudo que receberam para se conectar com o mundo lá fora foi uma tela.

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Claro que a descrição acima é a realidade de apenas um grupo de crianças – as que tiveram a possibilidade de ficar em casa, próximo aos pais ou cuidadores, e com acesso à internet. A exaustão, entretanto, apareceu de um jeito ou de outro no dia a dia deles. Alguns tiveram dificuldade para dormir, outros se calaram e entristeceram. Há também os que ficaram mais agitados, estressados, aflitos, e os que manifestaram dificuldades na escola, no desenvolvimento, na interação com o outro. As consequências mais definitivas só saberemos no futuro.

Seja qual for a maneira que a exaustão se apresentou, fato é que as crianças estão cansadas, como afirma a neuropsicóloga Deborah Moss. “A pandemia, para os adultos, são dois anos. Na vida de uma criança, é quase a vida toda dentro de casa, com pais estressados, pressão da aula online, pouco espaço para atividades físicas”, explica a especialista. Gama investigou como essa exaustão, exacerbada em tempos de pandemia e telas, aparece na infância e como podemos reverter o quadro.

‘Infância não é fase de construir currículo’

A frase é do pediatra e pesquisador da UFRJ Daniel Becker. Ele e outros especialistas apontam para uma necessidade dos pais de matricular seus filhos em diferentes atividades além da escola, o que piora o cansaço. “Os pais estão ocupados, com toda a justiça, e terceirizam o cuidado”, explica o presidente do Departamento Científico de Pediatria Ambulatorial da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria), Tadeu Fernandes. “Então tem aula de ballet, futebol, informática, inglês. A criança se torna um miniexecutivo, e não sobra tempo para brincar.”

Não é que não devam participar de atividades fora da escola, elas também são importantes para a interação social e desenvolvimento. “Mas precisa de técnicos rígidos, ser o melhor do time ou ser o destaque da classe? Os pais querem que os filhos sejam os melhores em tudo. Precisamos reduzir as cobranças”, diz Fernandes. Ao que a neuropsicóloga Deborah Moss acrescenta: “As atividades não podem tapar a vivência infantil espontânea. O pequeno precisa de tempo para estar consigo mesmo, para imaginar e criar as próprias brincadeiras”.

Segundo Moss, a infância é a fase mais curta da vida, e estamos abreviando ainda mais esse período. “Vejo uma necessidade dos pais de ocupar, porque é uma geração com dificuldade de promover o tédio aos filhos.” O ócio, diz ela, ao contrário do que se imagina, é muito importante para o desenvolvimento da criança. “Na falta do que fazer, ela constrói a brincadeira, busca preencher aquele vazio com a própria imaginação.”

‘Os estímulos das telas são solitários e passivos, o que acaba pilhando a criança

Elas vieram para ficar, não apenas na rotina das crianças, mas na de adultos, adolescentes e até idosos. Brigar com elas e tentar proibí-las não vai funcionar. O jeito, segundo a neuropsicóloga, é usá-las com moderação, evitá-las no fim do dia, próximo da hora de dormir, e supervisionar o que os pequenos assistem. “Podem chegar informações que a criança nem consegue digerir, um programa que não é próprio para a idade ou algo do tipo”, exemplifica Moss.

A exposição excessiva às telas, ainda que tenha sido uma mão na roda para pais ou cuidadores lotados de tarefas domésticas e profissionais, pode aumentar o quadro de exaustão, ansiedade e distúrbios do sono, como aponta o pediatra Tadeu Fernandes. A psicóloga especializada no comportamento infantil Fernanda Mishima explica que o uso excessivo de algo, seja da tecnologia ou qualquer outra coisa, gera cansaço. “Sobrecarrega a mente da criança. Ao invés de ativar diferentes instrumentos e estímulos, elas ficam presas a um único tipo de estimuo.”

Deborah Moss reitera a importância da atividade física, do movimento do corpo. “Uma criança que corre, pula e brinca tem muito mais facilidade para descansar à noite.” Ela explica que o cérebro, durante o sono, continua funcionando, descansamos apenas os pensamentos e o corpo. “É diferente o pequeno que fica horas no computador ou videogame daquele que se movimentou e brincou o dia todo – este chega na cama com o corpo cansado, mas a mente sã.” De acordo com a especialista, são tempos de exaustão neurológica, muito mais do que física, e os estímulos das telas são solitários e passivos, o que acaba pilhando a criança.

Cuidar da criança pode significar cuidar do ambiente’

Não dá para falar cansaço infantil e não olhar para os pais ou cuidadores. “A criança é cuidada por algumas pessoas, está inserida num ambiente, e precisamos levar em conta esse contexto. Daí a complexidade da saúde mental”, diz a psicóloga Fernanda Mishima. “Cuidar da criança pode significar cuidar do ambiente, e cuidar do ambiente pode significar cuidar da criança.”

Isso quer dizer que se os pais estão angustiados, com medo ou afetados por alguma questão, qualquer que seja ela, eles serão cuidadores diferentes. “Uma criança cuidada por um núcleo familiar tranquilo é diferente daquela cuidada por pessoas preocupadas com guerra, pandemia, cenário político, desemprego”, afirma Mishima. Mas não é por isso que os pais devem tentar blindar o filho de todas as mazelas da realidade. “Não tem como impedir que entrem em contato com dores ou tristezas, mesmo porque não é um bom caminho. A maturidade emocional é sentir essa dor, e ser capaz de sair da situação.”

O burnout parental é um fato, ainda mais para mães solo. “As horas disponíveis num dia não são suficientes para todas as demandas, e as preocupações deixam os pais ou cuidadores mais dispersos e com menos energia”, conta Deborah Moss. “Precisamos ter empatia com eles, mas prestar atenção como isso repercute nos filhos.” De acordo com ela, uma criança que vê os pais fragilizados pode ficar aflita e ansiosa, já que os cuidadores ocupam uma posição de fortaleza – “o pequeno fica desamparado”.

Precisamos deixar os pequenos brincarem, serem espontâneos

“Criança tem que ser criança”, alerta o pediatra Tadeu Fernandes. “Ela tem que brincar com bola, boneca, carrinho, ao ar livre, com outras crianças. Ela precisa ter esses momentos lúdicos, imaginar brincadeiras.” Ele afirma que essas atividades têm sido substituídas pelas telas e pelo excesso de atividades extracurriculares, as quais, geralmente, vêm acompanhadas de cobranças dos pais. E a pandemia e o isolamento não apenas exigiram dos adultos, como também dos seus filhos, como explica a psicóloga Fernanda Mishima. “Eles foram obrigados a dar conta de ficar longe da escola, dos amigos, dos familiares. As telas deixaram de ser uma das opções de brincadeira, e viraram aprendizado, aula. É uma sobrecarga muito grande.” Mishima reitera o valor do brincar, de um espaço livre para que a criança possa praticar atividades lúdicas, físicas e motoras que lhe interessem e sejam adequadas à idade.

“Precisamos deixar os pequenos brincarem, serem espontâneos, se desenvolverem no seu tempo. Eles têm toda uma vida para criarem currículo, decidirem a profissão”, alerta a neuropsicóloga Deborah Moss. Atividades em que são cobradas performances, segundo ela, podem não ser o melhor caminho. “Tem que jogar futebol porque quer brincar, não devemos focar no desempenho. É aprender a trabalhar em equipe, ter contato com outras crianças, se exercitar. Esse é o foco.”

A pedagoga e doutora em antropologia Adriana Friedamnn afirma haver uma preocupação grande, por parte da escola e dos cuidadores, sobre aquilo não se aprendeu durante o ensino remoto. “Mas eles aprenderam muitas outras coisas importantíssimas. Não vamos conseguir recuperar o que foi perdido, mas pensar em criar novos ritmos.” Ela alerta para a necessidade de espaços de respiro, de liberdade e de autonomia.

“Há uma exaustão muito grande de tudo que se viveu na pandemia. Precisamos permitir que as crianças coloquem a energia para fora, movimentem os corpos, se expressem nas artes e brinquem.” É como um momento de reequilíbrio físico, emocional e mental, e também um momento de respeitar as particularidades. “É a hora de observar o comportamento: os medos, as frustrações, o que as preenche, e assim entendê-las melhor e pensar o que será feito daqui para frente”, finaliza Friedmann.