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Isabela Durão

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Reportagem

Você sente prazer pelos ouvidos?

Do ASMR aos áudios eróticos, a escuta vem sendo uma fonte de satisfação, relaxamento e principalmente prazer

Leonardo Neiva 30 de Julho de 2023

Você sente prazer pelos ouvidos?

Leonardo Neiva 30 de Julho de 2023
Isabela Durão

Do ASMR aos áudios eróticos, a escuta vem sendo uma fonte de satisfação, relaxamento e principalmente prazer

Em abril, o público do Walt Disney Concert Hall foi presenteado com um som ainda mais impressionante que o dos afinados violinos, flautas e trombones da Orquestra Filarmônica de Los Angeles. Uma integrante da plateia se empolgou um pouco demais com a Sinfonia nº 5 de Tchaikovsky, explodindo num grito que muitos ouviram e um dos presentes descreveu como um “orgasmo barulhento e de corpo inteiro”.

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Ainda que nem todo mundo seja capaz de experimentar uma boa música com esse nível de êxtase, não há dúvida de que parte essencial do prazer que experimentamos no dia a dia vem do que ouvimos. Um estudo realizado por neurocientistas da Universidade de Bourgogne Franche-Comté, na França, escaneou os cérebros de diversas pessoas enquanto escutavam trechos de suas músicas favoritas. Os estudiosos identificaram atividade elétrica em regiões responsáveis pela audição, por emoções e até pelo controle motor, liberando uma descarga de dopamina — hormônio que provoca sensação de prazer.

Mas, por mais que escutar música seja uma atividade geralmente associada à satisfação ou relaxamento, ela está longe de ser nossa única fonte auditiva de prazer. Na hora do sexo, por exemplo, muita gente curte um “dirty talk” (ou dizer safadezas, em bom português).

Não há dúvida de que boa parte do prazer que experimentamos no dia a dia vem do que ouvimos

Em pesquisas realizadas pela plataforma feminina de áudios eróticos Share Your Sex, cerca de 80% das mulheres disseram sentir tesão ao ser xingadas ou verbalmente humilhadas na cama, conta a fundadora Mariah Prado — o que, segundo ela, pode ser resultado do consumo de uma pornografia centrada no público masculino e de uma sociedade em que mulheres são historicamente tratadas como submissas.

Também sempre há quem tenha o costume de botar sons da natureza para relaxar e até adormecer com mais tranquilidade, prática que a ciência tem considerado benéfica para a saúde. “Os ambientes acústicos naturais oferecem indicações de segurança ou de um mundo ordenado sem perigo, permitindo o controle sobre os estados mentais, a redução do comportamento relacionado ao estresse e a recuperação mental”, concluiu um estudo realizado em 2021 por pesquisadores de universidades estadunidenses.

No entanto, embora enxerguemos certos sons e combinações auditivas como fundamentalmente prazerosos ou relaxantes, essa reação é única para cada indivíduo. E o lugar e a sociedade em que a pessoa nasceu tem influência fundamental nessa equação. “O que para a gente é muito prazeroso, para alguém de uma cultura diferente pode ser extremamente desconfortável”, explica o professor e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz, Marco Antônio Santos, que atua como musicoterapeuta.

O impacto que sentimos ao ouvir música tem milênios de história, com seus efeitos sobre a sociedade configurando até motivo de preocupação. Existem registros de pelo menos 2.400 anos atrás, quando Platão dizia que determinadas canções podiam prejudicar a cidadania por deixar as pessoas muito relaxadas, conta o musicoterapeuta.

Depende sempre da relação que a pessoa desenvolveu com a música ao longo da vida, como aponta a neurocientista e professora de música na Universidade Federal de Pernambuco, Viviane Louro. “Nunca vou esquecer um dia na faculdade em que o professor colocou para tocar uma música fúnebre tradicionalmente cantada em Bali”, conta Louro, que é uma das pioneiras no estudo do ensino musical inclusivo no Brasil. “Devia ser muito triste para eles, mas eu comecei a dar risada. Para mim, era um som aleatório, meio esquisito.”

Resposta sensorial

Ao menos quando se trata de ASMR (sigla para Resposta Sensorial Autônoma do Meridiano), definitivamente cada pessoa sente o som à sua própria maneira. É o que afirma a youtuber e influencer Mariane Rossi, 29, conhecida nas redes como Sweet Carol. No caso de Rossi, ela ainda era criança quando sentiu pela primeira vez um formigamento no couro cabeludo enquanto escutava baixinho o ruído da mãe cavoucando a bolsa.

Com o tempo, o som do papel e do durex sempre que alguém embrulhava um presente, a mãe mexendo nas chaves ou penteando o cabelo… Tudo isso passou a gerar uma sensação de prazer na jovem. “Sempre achei que era doida. Nunca tinha perguntado para ninguém se sentia isso também, então era uma coisa que eu considerava especial.”

É mais ou menos disso que se trata o fenômeno do ASMR. Embora ainda não tenha uma base científica sólida em torno de seu funcionamento, trata-se de uma sensação agradável despertada no couro cabeludo, na parte de trás da cabeça ou do pescoço em resposta a um estímulo auditivo. Hoje, hordas de entusiastas correm para sentir prazer, relaxar e até adormecer escutando um áudio ou assistindo a um vídeo com esse tipo de estímulo.

A voz baixa e suave com que Rossi dá a entrevista foi a característica que a levou a deixar de lado os vídeos de maquiagem que costumava fazer em seu canal para mergulhar de cabeça na técnica. Atualmente com 2,58 milhões de inscritos no YouTube, ela é uma das principais influenciadoras do gênero no país.

Da tranquilidade à excitação

Nos mais de 800 vídeos do tipo que gravou até hoje, ela conversa diretamente com o público numa voz sussurrada (“Oi, tudo bem com você?”), produzindo sons no microfone pelo contato com diversos objetos. A inspiração, segundo ela, vem do dia a dia.

“Pego coisas do meu cotidiano, anoto sugestões, críticas construtivas, um filme ou série que estejam em alta e podem me dar ideias”, conta. Um vídeo recente em seu canal, por exemplo, emula um exame de ressonância magnética que ela fez. Em outro, ela surge num cenário rosa, todo inspirado no filme “Barbie” (2023).

De maneira geral, conta a youtuber, as reações têm a ver com tranquilidade e relaxamento. “Os seguidores contam que ajuda a tranquilizar crises de ansiedade. Já teve mãe que usou para lidar com o filho autista que passava por uma crise e até gente de luto que entrou ali para se acalmar.” Aliás, são poucos os canais de ASMR comandados por homens. Para Rossi, a tendência tem a ver com a maior suavidade das vozes femininas ou até com a segurança despertada pela fala materna.

Hoje, uma das principais tendências dentro do universo ASMR envolve usar a técnica como gatilho sexual — inclusive tem gente faturando alto com isso em sites pornográficos. Embora seja algo raro em seu canal, a youtuber admite já ter recebido comentários dizendo que sua voz despertou sensações inesperadas. “A pessoa não comanda a sensação. E existem ASMRs mais provocativos, de pessoas que querem atrair um público masculino ou ter mais visualizações. Mas o YouTube não é a plataforma adequada para isso.”

Librería de Orgasmos

Sexo para ouvir

Se sempre teve o desejo de registrar seu orgasmo ou saber como diferentes pessoas chegam ao clímax, o site perfeito para você já existe. Na Librería de Orgasmos, qualquer pessoa pode subir um áudio de si mesmo na hora H, assim como escutar toda uma biblioteca de orgasmos alheios. As chamativas descrições vão de um sóbrio “Prazer em 1º de novembro” até o mais detalhado “Minha amante ficou por cima, chegou ao clímax e gritou ‘oh, meu deus, me ajude’ no crepúsculo”. A biblioteca digital foi criada por uma dupla de espanholas donas de um sex shop, que queriam ajudar pessoas — especialmente mulheres — a se livrar das expectativas e da ansiedade que giram em torno dos sons que emitem na hora do sexo.

Na Librería de Orgasmos, qualquer pessoa pode subir um áudio de si mesmo na hora H, assim como escutar toda uma biblioteca de orgasmos alheios

A Share Your Sex, plataforma brasileira de áudios eróticos 100% focada no prazer feminino, é outro site que nasceu como alternativa a uma pornografia ainda muito centrada no público masculino. “Tem toda a questão da objetificação de corpos femininos, corpos padrão e tudo isso é muito nocivo”, afirma a fundadora, Mariah Prado.

“Além disso, a pornografia muda a forma como nosso cérebro funciona. Quando consome em vídeo, a pessoa costuma pular para a parte que tem uma ação rolando, de um vídeo para o outro, o que acostuma nosso cérebro a ter prazer de forma muito rápida, com níveis baixíssimos de esforço. Isso pode interferir na nossa vida sexual e pessoal”, complementa a empreendedora.

Share Your Sex

Segundo Prado, o conteúdo erótico em áudio trabalha melhor a imaginação, sem que o ouvinte precise estar totalmente focado em uma única cena ou acontecimento. Além disso, as histórias da plataforma fogem de clichês machistas, evitando descrever corpos e deixando de lado narrativas que fetichizem relações entre professor e aluna, funcionários e chefes ou mesmo de incesto, referências comuns no pornô.

O conteúdo erótico em áudio trabalha melhor a imaginação, sem que o ouvinte precise estar totalmente focado em uma única cena ou acontecimento

Com um público formado majoritariamente por mulheres hétero, a plataforma apresenta conteúdo próprio com inclinações sexuais diversas. Há desde narrativas eróticas mais tradicionais até conteúdos que puxam para o ASMR ou “dirty talks”, com vozes masculinas e femininas descrevendo “altas aventuras”, diz Prado.

A empresária considera que largar o pornô para investir em estímulos sexuais não visuais ainda é um desafio para muita gente, empreitada que geralmente requer uma adaptação. Para de fato se envolver com a narrativa, é necessário privilegiar sensações em vez de ações e indivíduos concretos. “A pessoa pode imaginar qualquer um do outro lado”, aponta Prado. “O tesão não mora num olho verde ou azul, mas em como você se sente. A outra pessoa é só o objeto da sua paixão.”