Gordon Hempton fala sobre a importância do silêncio — Gama Revista
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Shawn Parkin

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Conversas

Gordon Hempton: "Para se tornar um ouvinte melhor, todos os caminhos levam ao silêncio"

Ativista do silêncio, captador de sons raros da natureza e vencedor do Emmy, Hempton hoje atua para preservar parques silenciosos em diversas partes do mundo

Leonardo Neiva 11 de Setembro de 2022
Shawn Parkin

Gordon Hempton: “Para se tornar um ouvinte melhor, todos os caminhos levam ao silêncio”

Ativista do silêncio, captador de sons raros da natureza e vencedor do Emmy, Hempton hoje atua para preservar parques silenciosos em diversas partes do mundo

Leonardo Neiva 11 de Setembro de 2022

No meio desta entrevista, o escritor, captador de sons da natureza e ativista pela preservação de parques silenciosos Gordon Hempton sugere um exercício que duraria um minuto. “Qual é o som mais distante que você consegue escutar?”, questiona. Dentro de um pequeno escritório caseiro em Atibaia, no interior de São Paulo, dá para ouvir no máximo o zumbir baixo do notebook e um ocasional latido de cachorro. “Conforme o tempo passa, sua área de consciência vai se expandindo. O som viaja pelas paredes, atravessa os cantos, de dia ou de noite”, insiste Hempton. Após mais alguns segundos de concentração, entram no território auditivo o barulho de uma TV ao longe, a voz distante de dois homens conversando e o piar baixo de um pássaro.

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De seus 69 anos de vida, o ecologista acústico norte-americano passou mais da metade deles viajando a lugares inóspitos e registrando os sons mais raros que ouvia na natureza, dando três vezes a volta ao mundo num trabalho que chegou a lhe render um Emmy. Ele lembra que, em regiões selvagens como a floresta amazônica, nosso horizonte auditivo se expande consideravelmente, sendo possível escutar o que acontece numa área de até mil milhas quadradas — o que abrange uma gama de sons muito maior do que a TV que o vizinho esqueceu ligada.

Shawn Parkin

Para Hempton, o silêncio não é ausência de som, mas uma presença, aquilo que se escuta quando cessam os ruídos e barulhos gerados pelo ser humano. “O silêncio é um sentimento bastante real”, afirma. “Existe uma coisa chamada silêncio sagrado. Com qual frequência vamos a uma igreja ou a um templo e sentimos o silêncio com essa qualidade?”

Em 2005, após ter de lidar com uma súbita surdez, ele decidiu fazer da defesa do silêncio um dos seus objetivos de vida, a começar por um ponto correspondente a uma pedra de uma polegada quadrada no Parque Nacional Olympic, em Washington. “Talvez eu não fosse capaz de preservar o silêncio ali, mas era capaz de tentar.” Hempton de fato não abafou o som dos aviões que alguns anos depois passaram a sobrevoar o local, mas conseguiu chamar a atenção do mundo para a causa, atraindo centenas de visitantes que queriam conhecer aquele local de extremo silêncio. A experiência se transformou no livro “One Square Inch of Silence” (Uma Polegada Quadrada de Silêncio, sem tradução para o português).

Parcialmente surdo, hoje Hempton não ouve mais o cantar dos pássaros como antes, mas preserva na memória sons impactantes que gravou ao longo da vida, como a música que a neve faz ao derreter e o troar da noite na Amazônia. Ele também é uma das lideranças do Quiet Parks International, instituição fundada em 2019 para reconhecer e preservar parques silenciosos em todo o mundo.

Segundo o site da instituição, o silêncio cada vez mais raro na vida em sociedade traz benefícios inestimáveis à saúde, como a redução do estresse e ansiedade, a melhora das habilidades cognitivas e de concentração e até um aumento nos níveis de generosidade e confiança. “Enquanto nós dois escutávamos, sem a distração de mensagens de texto, e-mails ou ligações, estávamos simplesmente aqui, dando atenção ao momento. Nesse único minuto, nos tornamos não só mais saudáveis, mas também mais criativos, melhores em solucionar problemas e mais empáticos”, resume Hempton.

Em entrevista a Gama, ele relembra uma tempestade ao ar livre que lhe ensinou a importância de escutar, fala de como a pandemia nos mostrou a importância do silêncio e sobre sua jornada de readaptação de consciência após a perda da audição.

  • G |Ao longo da vida, quando surgiu seu interesse pelo silêncio?

    Gordon Hempton |

    Vivi no Havaí quando criança, e me atraía o silêncio que sentia quando mergulhava. É um sentimento especial ser abraçado pela pressão da água e o barulho reduzido que escutamos. Quando me tornei adulto, acreditava ser um bom ouvinte. Na época, enquanto acampava, fui pego por uma trovoada. Escutei como nunca tinha escutado nada antes. Aquela tempestade mudou alguma coisa em mim. Todas as informações sobre ela chegavam pelos ouvidos, sem que tivesse que abrir os olhos. Esse foi o início da minha experiência com o som como um mistério. Depois larguei a faculdade de fitopatologia e comecei a trabalhar como mensageiro de bicicleta no centro de Seattle. No dia seguinte, fui atropelado. Consegui ouvir o carro acelerando, mudando a marcha, o que poderia ter me ajudado a prevenir o acidente, mas não prestei atenção. Eu ainda era um péssimo ouvinte. Foi quando comecei a gravar os sons da cidade, pessoas conversando em pontos românticos. Vi que a comunicação não estava acontecendo de verdade. As pessoas clamavam de forma desesperada por encontrar alguém, mas ninguém escutava. Ali percebi que eu não era o único mau ouvinte no mundo.

  • G |Como isso te levou ao seu trabalho como captador de sons raros da natureza?

    GH |

    Passei a subir em trens de carga para gravar a música das locomotivas e as histórias dos andarilhos. Enquanto esperava o próximo trem, ouvia uma cotovia cantar. Se ela não cantava para mim, como eu escutava sua música? Isso me fez perceber que a Terra era meu lar e que meus ouvidos entendiam o mundo como música ou ruído. E notei que era quase impossível encontrar lugares onde você escutasse a música da natureza sem que ela viesse acompanhada de poluição sonora. É como se você fosse a um concerto musical em que a plateia não parasse de conversar ou alguém passasse aspirador de pó no chão a ponto de não escutar a música. Essa busca foi me levando para mais longe do ruído, o que me fez encontrar sons mais e mais naturais. A pureza dessa experiência foi transformadora. E, para se tornar um ouvinte melhor, todos os caminhos levam ao silêncio.

  • G |Esse trabalho não requer bastante paciência e uma certa solidão?

    GH |

    Dez anos atrás, quando minha audição estava normal, eu tinha clientes para todo lado. Saía em missões pelo mundo captando em lugares selvagens gravações que eram usadas desde em videogames até museus. Trabalhava a maior parte do tempo sozinho. Hoje vivo em Seattle, uma cidade com milhões de habitantes, mas a dez minutos de distância dos meus netos. A experiência de estar com eles é a mesma, em termos de qualidade, que tinha na natureza. É uma oportunidade maravilhosa. Hoje estou quase surdo no meu ouvido esquerdo e entendo pouco mais de 80% do que escuto com o direito. Não ouço mais a maioria dos pássaros. Isso mudou meu mundo. Mas tenho uma boa memória, lembro dos lugares que gravei nos últimos 40 anos. E tenho assistentes, jovens que hoje trabalham de forma remota e me permitem continuar. Não deixei de escutar frequências baixas, que são ondas poderosas e longas, então meu horizonte auditivo é bem grande. Minha consciência mudou, mas e daí? É uma oportunidade. Hoje trabalho com essa perspectiva.

  • G |Em todo esse tempo, quais sons ficaram na sua memória?

    GH |

    O naturalista americano John Mirror (1838-1914) descrevia o som do derretimento da neve como música. Visitei o Parque Nacional Olympic para gravar a neve derretendo e… meu Deus! Não eram só pingos aleatórios, mas uma música cristalina o suficiente para te fazer dançar. Tenho escutado a canção de muitos campos nevados desde então. Outro foi o som de troncos de abeto do tipo Sitka, usado na confecção de instrumentos acústicos. Dentro deles, se ouve uma música esplêndida, bela e relaxante. Tanto na Amazônia brasileira quanto equatorial, vivi experiências sonoras selvagens, sincronizadas e poderosas, especialmente à noite, um período excelente para escutar, quando os olhos são inúteis. Outro som inesquecível foi o do nascer do sol no deserto Kalahari. O primeiro som que se ouve é o dos insetos batendo suas asas, com uma frequência particular de cada espécie. O que me lembra do vento passando pelas árvores. As de folhas largas farfalham e as de folhas finas murmuram. Se você andar por um vale com coníferas nas montanhas, dá para ouvir o murmurar conforme um vento leve atravessa a região. É um som único e diferente para cada lugar.

  • G |Como surgiu e qual o propósito da Quiet Parks International?

    GH |

    Ela foi fundada em 2019, com a missão de salvar o silêncio para o bem de todo tipo de vida. Porque o silêncio não é bom só para nós, mas para a vida selvagem, que precisa de um ambiente acusticamente limpo para se comunicar. Queremos que o silêncio seja uma escolha para a maioria das pessoas. Com 55% da população vivendo dentro ou ao redor de centros urbanos, é uma missão importante. O primeiro parque selvagem que avaliamos como silencioso foi o Zabalo River, no Equador. E temos vários nos EUA, Canadá e Namíbia sendo testados e que aguardam um veredito, além de muitos outros no mundo que esperam sua vez. Também oferecemos um programa educativo sobre o silêncio e recentemente criamos a designação Área de Conservação Silenciosa, para terras que ainda não são silenciosas, mas têm gestores dispostos a trabalhar para alcançar esse patamar.

  • G |Quais os critérios para definir se um lugar é silencioso?

    GH |

    Na vida selvagem, nos períodos de duas horas antes do nascer do sol e uma hora após o por-do-sol, deve haver um intervalo de 15 minutos sem barulho gerado por humanos. Pode parecer simples, mas, como se trata do momento em que a atmosfera está mais calma e o som se propaga mais rapidamente, é algo muito raro nos EUA. Também não podem haver aromas desagradáveis, luzes brilhantes ou uso do espaço aéreo, coisas que distrairiam as pessoas de aproveitar a natureza. Já em parques urbanos, aceitamos barulho de tráfego, mas a natureza deve predominar. A poluição sonora precisa ser baixa o suficiente para que se possa escutar seus passos quando você anda. Se um pássaro canta, você deve ser capaz de distinguir sua música. Apesar de todos esses critérios, se nossos colaboradores concordarem de forma unânime que um parque é silencioso, também damos nossa aprovação, independentemente do que dizem os dados.

  • G |Quando dão um selo de aprovação, vocês não ficam com medo de atrair muita gente para aquele lugar?

    GH |

    Claro que há um conflito. Se colocamos um parque no nosso mapa e as pessoas começam a visitá-lo, ele não deixa de ser silencioso? Não somos uma autoridade regulatória nem estabelecemos regras, simplesmente reconhecemos as condições mais favoráveis de alguns lugares. Será que estamos planejando a extinção sistemática de todos os parques silenciosos no mundo? Minha resposta é que, quando você atrai pessoas que buscam o silêncio, elas permanecerão quietas. Até hoje, isso tem se provado real. É por isso que, numa igreja ou templo, não é preciso instalar placas pedindo silêncio. Porque o propósito do silêncio é a adoração. Escutar é como adorar algo.

  • G |Vocês são a única instituição desse tipo no mundo? Por que não há outras?

    GH |

    Falar sobre como a poluição sonora é pouco saudável é uma conversa chata. Toda vez que saio na rua, escuto barulho. Digo para meu neto de sete anos que não devemos falar sobre o que não queremos, mas sobre o que desejamos. Por isso, falamos sobre como trazer o silêncio de volta para nossas vidas, e assim lidamos com o barulho. Podemos conversar sobre as vantagens de ser saudável e não sobre como o caminho para chegar lá é doloroso. Somos a única organização no planeta voltada à preservação do silêncio, o que pode fazer parecer que queremos reduzir o barulho no mundo. Só que, se você diminuir pela metade o ruído de uma estrada, ainda não vai alcançar o silêncio. Então mudamos o foco para falar de como o problema pode ser resolvido. Somos uma organização jovem, com apenas três anos de existência, espero que outras ainda surjam.

  • G |O público costuma ter dúvidas sobre a importância de preservar o silêncio?

    GH |

    As pessoas imaginam que, se um lugar já é silencioso, não é preciso preservá-lo. Em 1990, conversei com o superintendente do Olympic porque queria nomeá-lo um parque silencioso. Ele me perguntou por que salvar um lugar que não mudaria nunca. Ali, o intervalo sem barulho durava muitas horas por dia, era difícil imaginar que esse canto de Washington algum dia enfrentaria problemas. Nenhuma estrada cruzava o parque e poucos aviões o sobrevoavam. Mas hoje o tráfego aéreo na região quadruplicou. 90% dos voos são militares, que vêm usando a região como área de treinamento. Então o futuro é definido pelas decisões que tomamos hoje. Temos uma lista considerável de candidatos sendo considerados. Se seus leitores souberem de algum lugar que considerem silencioso, podem nos procurar.

  • G |Você já veio ao Brasil, certo? Como acha que o silêncio casa com a nossa cultura?

    GH |

    Eu amo sua língua, o português, um idioma que é tão redondo e cheio. E os brasileiros são um povo apaixonado. Vejo o silêncio se encaixando perfeitamente no estilo de vida de vocês, com uma exuberância expressiva e o volume alto contrastando com uma calma quietude. Essas duas coisas são muito poderosas num diálogo.

  • G |Foi no parque Olympic que você instituiu a polegada quadrada de silêncio, que deu título ao seu livro. Pode falar mais sobre o que ela significa?

    GH |

    Depois de décadas atuando em meu trabalho dos sonhos, viajando o mundo e gravando sons, perdi minha audição. Os médicos recomendaram aguardar para ver se ela voltaria naturalmente. Depois de 18 meses, ela voltou. Fiquei tão cheio de gratidão que decidi dedicar minha vida a preservar o silêncio. Como cidadão, caminhei por todo o parque, que ficava próximo de onde morava, e depositei uma única pedra num tronco coberto de musgo, prometendo defender essa polegada quadrada de toda poluição sonora. Eu ia diariamente até esse ponto, quando comecei a ouvir a invasão do tráfego aéreo. Então anotava o horário e registrava o som. Escrevi cartas às linhas aéreas que circulavam na região, a Alaska, Hawaiian e American Airlines, e todas disseram que passariam em torno do parque em voos de teste e manutenção, mas continuariam voando por cima em voos agendados, porque as autoridades tinham estabelecido essa rota. Aí a imprensa se interessou pela minha polegada de silêncio, e o tema começou a aparecer nas rádios, TV e jornais.

  • G |O lugar acabou ficando bastante movimentado, não?

    GH |

    As pessoas chegavam de fora do país, da Austrália, Itália e da Ásia. Tinha gente que vinha para pedir o namorado em casamento ou jogar as cinzas de um ente querido, porque o silêncio ali expressava algo mais profundo. Qualquer um que experimenta o verdadeiro silêncio na natureza não esquece. Antes da covid-19, a pergunta que mais me faziam era por que o silêncio importa num mundo onde há aquecimento global, lixo tóxico e espécies ameaçadas. Com a covid, pela primeira vez desde a Revolução Industrial, sentimos o silêncio em escala global. Hoje, a pergunta que mais ouço é: o que faremos agora? Paga-se um preço ao perder o silêncio, o preço de não conseguir pensar os próprios pensamentos, sentir os próprios sentimentos ou chegar às próprias conclusões. Isso mostra o quanto a poluição sonora reduz a qualidade de vida. É uma perda sem sentido. Não precisa gastar trilhões. Fiz as contas e descobri que voar ao redor do parque Olympic elevaria no máximo um dólar o preço da passagem e em menos de um minuto o tempo de voo. Um dos benefícios de viver na cidade é ter salões de concerto, catedrais e instituições de ensino silenciosos, assim como parques devem ser.

  • G |Desde o afrouxamento das medidas de distanciamento, as pessoas têm se mostrado mais interessadas em viajar ou se mudar para lugares silenciosos?

    GH |

    Com a covid, o turismo praticamente deixou de existir no mundo todo. Recentemente, na África do Sul, o contato com a natureza ficou em quarto lugar na lista de fatores mais importantes para a recuperação econômica do setor pós-pandemia. Agora que sabemos os custos do barulho e os benefícios do silêncio, as pessoas já começam a viajar por motivos diferentes, tanto pelo bem da saúde quanto pela conexão com a natureza, o que te faz sentir parte do mundo novamente. Dá para ver o aumento no interesse pela cobertura de imprensa que o Quiet Parks International vem recebendo. A imprensa, aliás, é um ótimo indicador de tendências, e temos aparecido frequentemente em veículos como National Geographic quando se fala em lugares silenciosos para viajar.