O fenômeno Lo-Fi e a música brasileira — Gama Revista

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O fenômeno Lo-Fi e a música brasileira

©Juan Pablo Machado

Conheça a nova geração que segue o mantra de Chico Science: ‘modernizar o passado é uma evolução musical’

Daniel Vila Nova 25 de Abril de 2020

O desenho de uma garotinha estudando, faça chuva ou faça sol, é transmitido ao vivo no YouTube por mais de dez horas por dia. O sucesso do canal vem das músicas que acompanham o anime da Garota Estudiosa, como é conhecida na internet, cujos vídeos contam com mais de 300 milhões de visualizações ao longo de cinco anos. Bem-vindos ao mundo das rádios amadoras Lo-Fi, fenômeno que tomou conta da plataforma de vídeo.

A premissa é simples, uma playlist de remixes e músicas originais de hip-hop na estética Lo-Fi (low fidelity, ou baixa fidelidade, algo meio caseiro), tocadas continuamente por horas a fio. As batidas, melancólicas e calmas, são sempre acompanhadas por um anime, geralmente de uma garota, fazendo coisas banais como estudar ou ficar deitada na cama, mexendo no celular. Os títulos dos vídeos são sugestivos, “rádio lofi hip hop – batidas para relaxar/estudar” ou “rádio 24/7 lofi hip hop – batidas para estudar/curtir/relaxar”.

A procura por uma trilha sonora digital capaz de acalmar e ajudar a focar tem se tornado constante no mundo digital, do ASMR ao White Noise. Mas o Lo-Fi é o método mais popular entre os millennials, e a música brasileira não escapou dessas batidas. No YouTube, existem vários remixes de artistas como Tim Maia e Tom Jobim. Uma playlist, que compila 68 versões, conta com mais de 1 milhão de visualizações. Apesar do boom recente, a prática é antiga e encontra raízes brasileiras anteriores aos remixes atuais.

No Twitter, uma colaboração entre artistas foi lançada onde cada um fez uma releitura brasileira da Garota Estudiosa

Faça você mesmo

Zeca Viana, músico indicado ao Aposta MTV e pesquisador brasileiro, define o Lo-Fi como um modo de fazer música. “Eu não vejo como um gênero musical específico, mas como um modo de utilizar o que se tem à mão para produzir música, geralmente equipamentos amadores.” Para o músico, a forma de fazer acaba criando uma linguagem, que pode gerar um forró Lo-Fi, um hip-hop Lo-Fi e até um metal Lo-Fi.

O termo foi cunhado em 1986, pelo DJ americano William Berguer, que batizou seu programa de rádio de Lo-Fi em contraste com o termo High Fidelity, ou Hi-Fi — jargão utilizado pela indústria fonográfica para referir-se ao material de alta definição. O programa tocava 30 minutos semanais de fitas K7 enviadas por ouvintes. “Foi aí que surgiu essa ideia como um termo bem específico, mas bandas gravam de forma precária desde os anos 1960”, diz o músico.

Inspirados na ética DIY (o faça você mesmo), a estética encontrou popularidade na década de 1970, com a K Records. “Alguns gêneros musicais se aproximam do Lo-Fi e é difícil diferenciar o que é efetivamente Lo-FI e o que é o gênero”, afirma Viana. O músico cita a banda Beat Happening, o início das gravações de Beck e Daniel Johnston como exemplos. “Entre esses artistas são produzidas sonoridades muito diferentes, mas a ideia da gravação caseira é o que os une.”

As horas dedicadas ao estudo se tornaram piada na web. Afinal, à qual assunto a Garota Estudiosa dedica tanto seu tempo?

Meu Brasil brasileiro

No Brasil, o Lo-Fi começa com gravações da Baratos Afins, como o Disco Voador do Arnaldo Baptista, gravado em fita cassete, conta Viana. Bandas como Fellini, um grande nome da gravação caseira, se tornaram influência para Chico Science e Nação Zumbi. A primeira versão da música “A Cidade” foi gravada em Lo-Fi, sendo lançada posteriormente em Hi-Fi no álbum “Da Lama Ao Caos”, de 1994.

Hoje em dia, bandas novas como Boogarins e até mais antigas como o Fresno apostam nessa pegada. Desde 2010, Zeca produz a coletânea Recife Lo-Fi, onde faz um mapeamento de bandas e artistas que gravaram em casa nos últimos dez anos. O artista também tem um programa de rádio que divulga a produção musical independente dos estúdios caseiros pernambucanos.

A relação do Lo-Fi com o rádio não é nova. Nascido no veículo, o estilo encontrou uma nova vida em rádios piratas no YouTube. Felipe Satierf, criador do canal S?†IERF, faz parte dessa nova leva. Ele é um dos jovens que estão revisitando a música brasileira através de versões Lo-Fi.

Autor de remixes de Seu Jorge, Legião Urbana e Tribalistas, o YouTuber afirma que não conhece a estética há muito tempo e que se inspirou em outros canais. “Eu já mexia com música e queria fazer algo mais relaxante, percebi que o Lo-Fi se encaixa perfeitamente com as músicas mais antigas, como a Bossa Nova.” Ele vê seus vídeos como uma maneira de apresentar músicas consagradas para uma nova geração. “Você coloca uma batida contemporânea em uma música que já é hit, é certeza de sucesso.”

Satierf compartilha que, quando descobriu o estilo, estava triste, procurando músicas que o reconfortassem. Para o YouTuber, o Lo-Fi é cultuado por muitos jovens que estão tristes ou deprimidos. A percepção não é exclusiva de Felipe. Em 2019, a Vice se juntou com um dos maiores canais do YouTube Lo-Fi, College Music, e fez uma campanha contra o suicídio. A ideia veio após os criadores do canal perceberem a quantidade massiva de comentários sobre tristeza, estresse e suicídio em seus vídeos.

Para Zeca Viana, a nova geração procura no Lo-Fi um passado não vivido, a saudade de algo que não se teve. “O jovem está no meio de um turbilhão estético gigante, a nostalgia é um aglutinador que dá um horizonte pra quantidade de informações existentes.” O músico vê o boom do Lo-Fi como uma necessidade da nova geração de ressignificar e demarcar seu território estético. Ele acredita que a linguagem está sendo utilizada para que os mais novos encontrem sua própria identidade.

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