Para a jornalista Petria Chaves, a escuta é o segredo para uma boa conversa — Gama Revista
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Paul Gauguin / The Art Institute of Chicago. Via Rawpixel

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Conversas

Petria Chaves: “Estar com os ouvidos abertos para o outro é um treino de conduta ética e de saúde”

Com tantos estímulos ao redor fica difícil escutar o outro e a si mesmo. Mas com um pouco de treino e intenção é possível melhorar.  A jornalista da CBN, Petria Chaves, fala sobre essa tema no livro que acaba de lançar e na entrevista a Gama

Dolores Orosco 30 de Julho de 2023

Petria Chaves: “Estar com os ouvidos abertos para o outro é um treino de conduta ética e de saúde”

Dolores Orosco 30 de Julho de 2023
Paul Gauguin / The Art Institute of Chicago. Via Rawpixel

Com tantos estímulos ao redor fica difícil escutar o outro e a si mesmo. Mas com um pouco de treino e intenção é possível melhorar.  A jornalista da CBN, Petria Chaves, fala sobre essa tema no livro que acaba de lançar e na entrevista a Gama

Petria Chaves é especialista em manter uma boa conversa. Há quase 20 anos a âncora da rádio CBN entrevista em seus programas personalidades de diversas áreas – de política à tecnologia, passando por educação e meio ambiente – com a difícil tarefa de prender a atenção dos ouvintes. Uma missão hercúlea, considerando que somos bombardeados o tempo todo por estímulos externos, principalmente aquele irresistível de deslizar o dedo pela tela do celular. Mas foi durante o processo de escrita do livro “Escute teu silêncio – Como a arte da escuta nos torna melhores profissionais, pais mais presentes e pessoas mais interessantes” (Ed. Planeta; 269 págs; R$ 55,28), que a jornalista fez uma imersão no desafio que é aquietar a mente e estar realmente presente para ouvir – aos outros e a si.

Para isso, Petria foi atrás de quem entende do assunto em suas mais profundas camadas. Entrevistou para o livro neurocientistas como Claudia Feitosa-Santana, especialistas em psicanálise como Leo Fraiman e Rossandro Klinjey, grandes empresários como o sírio Elie Horn, e até líderes religiosos como a Monja Coen e o babalorixá Rodney William. “Não sou guru de nada, sou jornalista. Mas ao mesmo tempo, o livro não é um apanhado de entrevistas. Então o defino como uma busca jornalística, misturada com minhas próprias experiências no tema”, explica.

A Gama, Petria conta em qual ponto a sociedade se tornou tão ruidosa, defende que a cultura do cancelamento é a doença exposta do narcisismo moderno, que papel a falta de escuta tem em males como a depressão e o burnout e explica por que, apesar dos nomes pomposos, as técnicas de mindfulness estão ao alcance de todos e podem nos fazer melhores ouvintes

Não conseguimos nem ter uma escuta da nossa própria voz interior com tanto ruído externo

  • G | Podemos dizer que o antagonismo político-ideológico que se instaurou no país nos últimos anos, potencializado pelas redes sociais, foi gatilho para que nossa capacidade de escuta se tornasse tão limitada?

    Petria Chaves |

    O problema começa bem antes disso. As mulheres da geração anterior à minha viveram um empoderamento muito capenga. Saíram para o mercado de trabalho sem nenhuma ajuda dos homens, com um acúmulo de funções bizarro e uma pressão estética absurda em cima de seus corpos. Claro que vemos um feminismo se fortalecendo, cada vez mais forte e engajado, mas as relações familiares seguem desiguais, sem uma divisão justa de tarefas entre pai e mãe, principalmente na educação dos filhos.

  • G | Então o problema da falta de escuta passa pela desigualdade de gêneros?

    PC |

    Não quero fazer panfletagem, mas quando a gente fala de uma sociedade machista, que durante muito tempo sufocou totalmente os meninos e delegou somente às mulheres o direito de poder chorar e mostrar vulnerabilidade, você tem uma sociedade que, em geral, não sente e se cala. As mulheres são caladas por um lado, por não terem sua voz ouvida e respeitada, e os homens de uma outra maneira, calados nessa voz interior e crescem sem desenvolver inteligência emocional. É uma sociedade que não ouve a si mesma. Desde a minha geração, que hoje tem entre 35 e 40 anos, passamos muito tempo em frente a telas, primeiro com os programas infantis, sendo bombardeados com propagandas que incentivam o consumismo sem parar. Brinco que Xuxa foi minha babá do maternal, mas para as crianças de hoje são os games, o celular… São crianças enfurnadas em telas, que crescem cada vez mais enclausuradas em apartamentos, ficando cada vez menos umas com as outras. Onde fica o diálogo nisso? Com quem mais elas trocam e têm acesso a opiniões e valores diversos? O impacto disso é a construção de um narcisismo e de um desejo de felicidade irreal. Tem também uma cultura de auto-ódio no ar, do “eu preciso ter um corpo magro”, “eu preciso comprar esse carro”, “eu preciso ter um emprego melhor”. Estabeleceu-se um “ter para ser” e um consumismo exacerbado que levou a uma falta de letramento emocional. E tudo isso, claro, afeta a maneira como nos comunicamos e ouvimos. Muitas vezes, a resolução dos conflitos entre pais e filhos passa pelo consumo: “Eu dou se você…”. É o objeto. A satisfação dos nossos desejos passou a vir de fora, porque não conseguimos nem ter uma escuta da nossa própria voz interior com tanto ruído externo. As redes sociais foram só um amplificador desse narcisismo que a infância da minha geração já trazia.

  • G |É uma ideia romântica pensar que, antes das redes sociais, havia mais escuta e éramos mais tolerantes com quem pensasse diferente?

    PC |

    Não é que havia mais escuta. Eram outras condições de vida, às vezes até muito mais agressivas e menos conscientes do que somos hoje em vários pontos. Mas a rede social potencializou tudo o que temos de bom e de ruim. Quando as redes sociais começaram, tudo era brincadeira. O Orkut e o Facebook eram lugares onde trocávamos fotos. Mas, aos poucos, fomos nos dando conta de que ali era lugar onde nossa voz era amplificada. Mas junto com isso vieram também os discursos de ódio, cresceram os movimentos de extremas. As redes vêm e amplificam também nosso pior lado. Afinal, a humanidade em si é o que é, com seus paradoxos. E as redes têm esse lado narcisista, onde as pessoas dialogam com elas mesmas e acabam presas em bolhas, onde não lidam com o diferente. Só trocam com quem pensa igual. Quem acredita em uma determinada linha político-ideológica, não vai estar em contato com quem pensa o oposto dela. E aqui nem estou falando de visões políticas extremistas ou criminosas. Estou falando de visões moderadas, mas distintas entre si.

  • G |A falta desse exercício de escuta é uma das causas da cultura do cancelamento?

    PC |

    Se eu não tenho esse exercício de diálogo constante com quem tem visões diferentes das minhas, quando esses pensamentos se apresentam, tenho o ímpeto de destruí-los. Aquilo não pode coexistir porque é errado, é uma ameaça à minha existência. O outro, aquele diferente de mim, não pode existir porque me ameaça. Tem que ser bloqueado, cancelado. É quase como se fosse uma reação do sistema imunológico a um corpo estranho, como se fosse uma alergia. A cultura do cancelamento é a doença exposta desse narcisismo que está na nossa raiz.

A pessoa escutada se sente imediatamente conectada. A escuta é sedutora

  • G |Você também cita outros males, os mentais, causados pela sociedade ruidosa atual.

    PC |

    O corpo dá sinais de aflições, tristezas e algumas gritarias internas que vão surgindo em nosso percurso e a gente não ouve. E quando se dá conta, não tem mais volta. O burnout é uma sensação de se incendiar por dentro. Quantas vezes nosso corpo, nossa mente ou nossa intuição apontaram: “Não vá por essa direção” ou “não insista nisso” e não ouvimos? A gente quer muito um cargo, subir na empresa, mas para quê? A gente se coloca em determinadas competições para quê? Pode nem ser o que a gente quer de verdade e é o mundo que está falando onde temos que chegar e não o que de fato queremos para ter contentamento. E aí, quando chega lá, vem o burnout. Tem também um outro lado que é a maneira como a gente recebe o que vem do outro. Acontece de alguém dizer alguma coisa e a gente ficar muito ardido, tomar como se fosse uma agressão e pode nem ser o caso. Quando não temos esse treino de se silenciar, ficamos vulneráveis às pressões externas, tanto pra gente ir onde não quer, quanto para tomar palavras alheias de maneira pessoal. No livro falo um pouco sobre depressão e suicídio, que são alguns dos sintomas dessa sociedade que não sabe se ouvir, nem ouvir o outro. O CVV (Centro de Valorização da Vida) nada mais é que um número de telefone que as pessoas ligam para ser escutadas. E já salvou muitas vidas assim. Estar com os ouvidos abertos para o outro é um treino de conduta ética e de saúde.

  • G |Transtorno de ansiedade e burnout são doenças geralmente causadas pela sobrecarga e pressão no trabalho. Como a escuta de um líder de equipe pode fazer a diferença?

    PC |

    Um líder que escuta os funcionários do seu time, que sabe enxergar as pessoas, consegue fazer com que os projetos funcionem como um corpo. A pessoa escutada se sente imediatamente conectada. A escuta é sedutora. Quando um líder passa a escutar de verdade ele seduz toda a equipe em torno de propósitos, criando uma relação não de cargos, de peças de uma engrenagem, mas de pessoas que fazem parte daquilo. O que deixa a gente ansioso e deprimido? É sentir que a gente não está plugado na vida, sem se sentir pertencente. Tudo o que vai pro mecânico tira da gente a vontade de viver. Os grandes líderes param e escutam e acabam se tornando um campo fértil para ideias, porque ele é o motor que vai ajudar a prosperar.

  • G |No seu livro a filósofa Lúcia Helena Galvão diz que “o silêncio é a oportunidade de tirar de mim o que não é meu”. Por que o silêncio é tão importante em uma sociedade cada vez mais barulhenta?

    PC |

    O silêncio é um exercício de esvaziamento, que te dá uma uma percepção de você mesmo, da sua voz interior com mais qualidade. Quanto mais você pratica o silêncio, mais observa os caminhos dos seus pensamentos e das suas reações. E aí mais você se torna melhor em observar o outro de maneira neutra em um diálogo. Porque fica mais fácil entender de onde estão vindo os posicionamentos e os achismos sobre o que o outro está falando, sem precisar interromper ou julgar. Você passa a ter mais discernimento em um diálogo.

  • G |No momento de uma discussão é possível silenciar o cérebro a respeito de opiniões estabelecidas sobre o outro e o que ele está dizendo?

    PC |

    Não é que você vá se anular para ouvir o outro. O que precisa acontecer é um estado de quietude para ouvir o outro. Porque quando você está conversando com alguém, já julgando internamente aquela pessoa e pensando no que vai responder sem ela nem terminar de falar, já é uma maneira de interrompê-la. É preciso ser muito inteligente para fazer um exercício pleno de comunicação não-violenta, que não tem nada a ver com ser bonzinho ou aceitar tudo. Tem a ver com não ser reativo, em como é preciso esvaziar a mente e a percepção do outro para na hora que você estiver conversando com alguém você de fato estar escutando essa pessoa e não o que a sua mente está esperando que ela diga.

  • G |Você entrevistou de neurocientista a pai de santo para o seu livro. Existe algum ponto onde todos eles falaram a mesma coisa a respeito da escuta?

    PC |

    Apesar de a casca dos entrevistados serem bem diferentes entre si, na essência todos ressaltaram a importância de termos um ritual diário de auto-aperfeiçoamento da mente por meio do silêncio, seja com meditação ou alguma prática rotineira consistente, pode ser um esporte, uma oração. Cada um deve encontrar sua ferramenta. A gente tende a colocar um monte de nomes em coisas simples. Meditação, por exemplo. A Lia Diskin [jornalista argentina, presidente da Associação Palas Athena, de projetos assistenciais] tem a técnica da paisagem sonora, que é você acordar e fazer um treino da sua escuta ao redor, antes de levantar da cama. Prestar atenção em cada camada de som por cinco minutos. Outro entrevistado do meu livro, o Leo Fraiman [psicoterapeuta e escritor], pratica corrida diariamente e escreve um diário. Há um comércio em torno do mindfulness, mas o treino da escuta é o mais democrático: é você dedicar minutos de atenção plena a alguma coisa, onde você estiver. Pode ser andando de ônibus, prestando atenção total em todos os sons daquele percurso. No começo parece impossível, mas, como diz a Monja Coen, que também é uma das entrevistadas do meu livro, você não vai se jogar em uma piscina de cinco metros sem saber nadar. Você tem que criar algum tipo de ritual pessoal, onde o objeto de silêncio seja importante. Pode ser ficar cinco minutos sentado de frente a uma parede branca, depois aumenta para 10 minutos, depois para meia hora. Ao longo dos anos, a mente vai se educando. Não é que o objetivo seja silenciar a mente, mas aprender a observar os caminhos dos seus próprios pensamentos. A ideia é ser um observador de você mesmo durante aqueles instantes.

  • G |E a sua ferramenta de silenciar a mente, qual é?

    PC |

    A yoga. Pratico há mais de 15 anos. Foi a maneira mais intensa que encontrei de aquietar meu corpo de maneira intensa.

Produto

  • Escute teu Silêncio
  • Petria Chaves
  • Ed. Academia
  • 272 páginas

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