Será que é amor?
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Ilustração de Luana Silva

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Reportagem

Eles estão perdidos no flerte?

Para especialistas, a paquera mudou — e muitos homens têm dificuldade de acompanhar os novos padrões

Ana Elisa Faria 14 de Setembro de 2025

Eles estão perdidos no flerte?

Ana Elisa Faria 14 de Setembro de 2025
Ilustração de Luana Silva

Para especialistas, a paquera mudou — e muitos homens têm dificuldade de acompanhar os novos padrões

“As mulheres hétero estão no mapa da fome”. A frase pode ser ouvida em rodas de conversas entre amigas de várias bolhas e vista estampada em inúmeros memes que circulam pelas redes sociais. É uma forma irônica de nomear a escassez de interações e dates agradáveis com homens minimamente interessantes ou dispostos a flertar fora dos aplicativos de relacionamento e de mensagens instantâneas — aquele match sem uma puxada de papo, a curtida numa foto antiga e o foguinho enviado aleatoriamente num story qualquer que o digam.

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A expressão “quem casou, casou”, que também tem circulado bastante por aí, reforça a impressão de que a paquera presencial, com troca de olhares, sutilezas e riscos de receber um “não”, virou uma experiência extraordinária.

Essa sensação de vazio afetivo, no entanto, não é unânime. Para algumas, a “oferta” masculina parece ter diminuído. Já para outras o que mudou foi a régua, com as exigências femininas ficando mais altas, e a tolerância com investidas invasivas, abusivas ou desinteressantes diminuindo drasticamente. De todo modo, uma pergunta ecoa: por que tantos homens parecem inseguros, desinteressados ou até desmotivados para flertar?

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Profissionais da psicologia e especialistas em comportamento apontam razões diversas: a insegurança diante das novas dinâmicas de gênero, o medo de ultrapassar limites e ser tido como invasivo, a influência de discursos masculinistas, o conforto oferecido pelos aplicativos, que reduzem o esforço do encontro ao vivo. O resultado é um jogo amoroso embaralhado, em que homens e mulheres muitas vezes não se encontram.

A crise do flerte e o narcisismo contemporâneo

Para Lígia Baruch, doutora em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC⎯SP) e coautora de “Tinderellas: O Amor na Era Digital” (2019), o fenômeno não pode ser lido apenas no plano individual, e é preciso ir além da psicologia e da psicanálise e adentrar na seara cultural.

Segundo ela, vivemos em um tempo marcado pela cultura do narcisismo e pela lógica da performance. “Quando Narciso entra no jogo amoroso, Eros sai pela porta dos fundos. A busca por conexões dá lugar a vínculos sintéticos e leves, tão leves que não dão trabalho nenhum”, afirma.

Quando Narciso entra no jogo amoroso, Eros sai pela porta dos fundos. A busca por conexões dá lugar a vínculos sintéticos, tão leves que não dão trabalho nenhum

Na mitologia grega, Narciso é o jovem arrogante que se apaixona pela própria imagem refletida na água, símbolo do excesso de amor-próprio e da incapacidade de se ligar ao outro. Já Eros, deus do amor e do desejo, representa a abertura ao vínculo, ao contato e à construção das relações. Com a metáfora, Baruch sugere que, quando o narcisismo predomina, o espaço para a conexão genuína desaparece.

Essa fragilidade dos laços, observa, tem gerado uma epidemia de solidão. Muitos homens que correspondem a padrões — malhados, financeiramente estáveis, aparentemente bem resolvidos — resistem a se comprometer. “Eles dizem: ‘Eu me basto, sou minha melhor versão sozinho’. Podem até ter uma parceira-troféu, mas um vínculo de verdade, não”, afirma Baruch.

Ressentimento e passividade

O psicólogo Frederico Mattos, autor de livros como “Pare de Brigar com a Vida” (Academia, 2025) e “Maturidade Emocional” (Paidós, 2021), acredita que, coletivamente, os homens têm reagido às mudanças sociais com ressentimento e silêncio, revelando mais uma dificuldade de adaptação masculina do que um excesso de expectativa feminina.

As mulheres hoje estão mais exigentes e, por isso, não aturam mais certos comportamentos e parceiros incapazes de se comunicar sobre as próprias emoções

“Os homens estão ressentidos coletivamente e a maneira deles reagirem a esse ressentimento é silenciando”, diz. Esse silêncio, de acordo com o especialista, encontra terreno fértil nos aplicativos de namoro e nas redes sociais, meios em que o ego não é colocado tão à prova. “Reagir a uma foto custa emocionalmente menos do que abordar uma mulher no bar e arriscar tomar um fora.”

Essa busca por uma proteção egoica, acrescenta, fez com que parte dos homens se “destreinassem” a lidar com a frustração — algo que faz parte da vida adulta. “Além disso, o homem heterossexual tem uma fantasia de disponibilidade, como se ele tivesse uma prateleira afetiva infinita à disposição”, comenta.

O avanço feminino e a estagnação masculina

A psicóloga Lizandra Borges, terapeuta de mulheres com atuação em sexualidade, assinala que as mudanças no comportamento feminino também ajudam a explicar a sensação de “escassez”. Agora, o que aparece como uma “exigência maior” delas, nada mais é do que o direito de querer vínculos saudáveis e recusar relações que não atendam ao mínimo de respeito e abertura.

É como se as mulheres tivessem avançado e os homens tivessem ficado estagnados

“As mulheres hoje são mais independentes, têm hobbies, carreira, vida social, muitas são arrimo de família. Elas estão mais exigentes e, por isso, não aturam mais certos comportamentos e parceiros incapazes de se comunicar sobre as próprias emoções. É como se as mulheres tivessem avançado, conquistado um território, e os homens tivessem ficado estagnados”, pontua.

Conforme Borges, esse descompasso gera frustração dos dois lados. “Minhas pacientes dizem: ‘Por que vou me relacionar com alguém que não se interessa por autoconhecimento, que não consegue falar sobre assuntos sérios e discutir sobre o futuro?’. Quem consegue entregar o básico que as mulheres querem, não tem dificuldade em se relacionar. Mas quem não consegue, acaba se sentindo injustiçado e, muitas vezes, cai em papos de coachs da internet e migra para discursos masculinistas.”

Consentimento, feminismo e adequação masculina

Outro fator central é o impacto das discussões sobre assédio e consentimento. Se até poucos anos atrás comportamentos invasivos — como assovios, puxões de cabelo e passadas de mão no corpo da mulher como forma de aproximação — eram tolerados e até naturalizados, hoje são expostos e denunciados.

Para Frederico Mattos, trata-se de um ajuste necessário. “Os homens vão precisar descobrir maneiras mais sofisticadas de paquerar. Uma boa conversa despretensiosa pode ter mais efeito do que uma abordagem descarada e indelicada. As mulheres não querem deixar de ser paqueradas, elas querem se sentir confortáveis e olhadas como seres humanos.”

Essa dificuldade de adaptação aos novos tempos gera confusão. “Não vai ter um manual de etiqueta e boas práticas. O que o homem vai precisa fazer é simplesmente recuar do desejo de dominação irrestrita. Se ele conseguir fazer isso, já vai ter um resultado muito, muito, muito melhor”, frisa o psicólogo.

Os meninos precisam ter opções, modelos de homens nos quais se inspirar, precisam sentir o que é ser um cara legal

Se o feminismo ampliou a autonomia das mulheres e redefiniu padrões relacionais, o desafio atual recai sobre os homens aprenderem a se situar nesse novo contexto. Como explica Lígia Baruch: “O feminismo conquistou muito, e as mulheres não querem mais ser eco para o Narciso”. Esse avanço, fala a psicóloga, exige que os homens revejam antigas posturas e desenvolvam outras formas de se relacionar, mais baseadas em equidade, respeito, ética e gentileza, deixando o machismo e as objetificações para trás.

Em entrevista recente a Gama, a jornalista Nana Queiroz, autora do livro “Os Meninos São a Cura do Machismo” (Record, 2021), comentou que é preciso oferecer exemplos diferentes de masculinidade para quem está em formação.

“Talvez, a cura para as dores das mulheres esteja na cura do coração masculino. A nossa falta de generosidade e a agressividade tão acusatória com os meninos está fazendo com que a extrema-direita se alimente deles. Os meninos precisam ter opções, modelos de homens nos quais se inspirar, precisam sentir o que é ser um cara legal”, afirmou.

Ela continua: “A gente não tem só que falar o que não ser, temos que ajudar os garotos a entender o que ser, o que está no cardápio de possibilidades do que um homem livre pode ser, o que é bacana”.

Entre a emancipação e o conservadorismo

Frederico Mattos chama atenção para uma polarização de costumes que tem deixado alguns homens inseguros. “Por um lado, muitas mulheres se emanciparam e se sentem à vontade para tomar a iniciativa. Por outro, há um conservadorismo forte, que ainda reforça papéis específicos fixos. Como não há uma plaquinha no pescoço dizendo se a mulher é progressista ou conservadora, na dúvida o homem não faz nada”, analisa.

Essa incerteza, sinaliza ele, amplia a necessidade de abandonar fórmulas prontas. “Não vai haver um único estilo de abordagem. Isso também mudou ao longo do tempo e o homem não conseguiu decodificar ainda a existência da singularidade de cada pessoa, mesmo nesses movimentos mais coletivos de emancipação ou conservadorismo.”

Slow love: menos performances amorosas

Apesar do cenário de desorientação, Lígia Baruch enxerga sinais de reação. “Já vemos movimentos de retorno ao offline, de encontros diferentes, com grupos que se reúnem para correr, cozinhar, estudar sobre vinhos, por exemplo. É como um slow love, inspirado no slow food: relações mais presenciais, menos performáticas.”

Iniciativas como essas, aponta a psicóloga, mostram a necessidade de resgatar o espaço público como lugar de convivência — e de paquera. Em vez do condomínio fechado das relações sintéticas, é essencial criar brechas para conexões mais autênticas, com a dose inevitável de atrito que o encontro real traz.

“Eros é do mundo, é das conexões. Por isso é importante sair da zona de conforto, ir para novos grupos heterogêneos e experimentar conexões que não necessariamente têm uma meta, do tipo encontrar um homem para casar, encontrar uma mulher honesta.”

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