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Conversas

Nana Queiroz: "Vivemos em uma sociedade em que os meninos estão imersos em violência"

Autora do livro “Os Meninos São a Cura do Machismo” fala sobre criação feminista amorosa,  os problemas da repressão emocional masculina e os perigos de deixar os garotos à deriva em uma cultura machista

Ana Elisa Faria 13 de Julho de 2025

Nana Queiroz: “Vivemos em uma sociedade em que os meninos estão imersos em violência”

Ana Elisa Faria 13 de Julho de 2025
Foto de Carol Pedrosa

Autora do livro “Os Meninos São a Cura do Machismo” fala sobre criação feminista amorosa,  os problemas da repressão emocional masculina e os perigos de deixar os garotos à deriva em uma cultura machista

Em 2017, ao saber que seria mãe de um garotinho, a jornalista fundadora da revista AzMina e escritora Nana Queiroz entrou em uma espécie de luto. Ela lamentava, não porque as mulheres fossem seres superiores, mas porque o homem era a criatura mais triste que conhecia. “Eram masculinas as guerras, as cadeias, as brigas de bar”, escreveu. “Sentia angústia e medo. Pensava que meu filho teria limitadas as possibilidades de quem ele poderia ser”, conta a Gama.

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O incômodo serviu de combustível para uma investigação sobre como criar um menino que pudesse viver uma masculinidade que desse orgulho e que não fosse engolido pela lógica machista e patriarcal que estrutura a nossa sociedade. O resultado dessa busca é o livro “Os Meninos São a Cura do Machismo” (Record, 2021), um chamado para uma educação feminista amorosa, que promova liberdade emocional, empatia e felicidade sem rótulos.

A partir de entrevistas com 600 homens, a obra aponta que muitos deles carregam traumas pouco elaborados — da repressão sentimental e à sexualidade à iniciação sexual forçada ainda na infância, passando pela cobrança para serem fortes, “machos”, hipersexuais e autossuficientes.

O conflito psíquico ficou evidente quando a autora perguntou aos entrevistados se eles, alguma vez, se sentiram impedidos de ser quem são por conta do conceito do que significa ser um homem, e a vasta maioria disse que sim. “Essa luta íntima e essa violência interior são exaustivas. É cansativo ficar tentando ser quem você não é, leva à expressão da violência”, afirma.

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Para Queiroz, transformar essa realidade exige uma mudança cultural profunda, que começa dentro de casa, mas não pode recair apenas sobre as mulheres. Pais, tios, avôs, professores e outros homens do entorno têm de assumir a responsabilidade de formar novas referências e acolher os pequenos com escuta e orientação.

Criar rapazes feministas, ao invés do que muitos podem imaginar, não significa censurar brincadeiras ou rejeitar as ditas “coisas de menino”, mas permitir que eles explorem livremente o mundo — de espadas a bonecas, de futebol à cozinha — sem amarras de gênero. Hoje mãe de dois, Jorge e Vicente, Queiroz comenta que é feliz e que conseguiu transformar o receio em oportunidade de fazer diferente. “Quando não dizemos que eles não podem e não devem fazer tal coisa, vemos que as potências dos meninos são bem diferentes do que o senso comum quer fazer a gente acreditar”, comenta.

Nesta conversa, Nana Queiroz reflete sobre os desafios da parentalidade antissexista, a radicalização masculina na internet, a necessidade de uma educação sexual verdadeira e o poder de uma criação centrada no respeito à individualidade de cada menino.

Há uma repressão da expressão das emoções, sendo a agressividade a única emoção que se é permitido expressar

  • G |Em “Os Meninos São a Cura do Machismo”, você conta que se sentiu decepcionada e entrou numa espécie de luto ao descobrir que estava grávida de um menino. O que passou pela sua cabeça naquele momento?

    Nana Queiroz |

    Eu sentia angústia e medo. Pensava que meu filho, por ser menino, teria limitadas as possibilidades de quem ele poderia ser. Isso porque existem amarras sobre o que significa ser homem: “Homem não chora”, “homem não sente”. Na nossa sociedade, a gente apequena os homens porque, ao limitar o que as mulheres podem ser, limitamos também o que os homens podem ser. Essa era a minha tristeza, além de saber que, segundo estatísticas, a chance de um menino morrer antes dos 20 anos é maior que a de uma menina e as chances de ele se tornar violento e se envolver em brigas também são maiores. Vivemos numa sociedade em que os meninos estão imersos em violência, são criados para a violência — tanto psicológica quanto física —, e isso me causava bastante medo. Com o tempo, transformei o medo em oportunidade de fazer diferente. Hoje, sou feliz por ser mãe de dois meninos, tem sido a descoberta mais deliciosa da minha vida. 

  • G |Você afirma que “ninguém nasce machista, agressor, estuprador e insensível”, e que as pessoas são criadas em uma lógica machista. O que caracteriza essa criação machista?

    NQ |

    Existe um modus operandi de criar meninos que vem disfarçado de natureza. A gente se convence de que a natureza do homem é violenta, hipersexual, que o homem é dominante — enquanto a mulher é submissa, menos sexual. A verdade é que a natureza humana é muito mais complexa do que isso. Não somos definidos apenas pelos nossos hormônios. A gente é uma combinação de milhares de coisas, inclusive coisas que não entendemos. Por isso, existe a espiritualidade, as religiões, as tentativas de explicar a existência de uma alma. Mas também existe o meio, a vontade, as escolhas, a racionalidade. Todas essas coisas determinam diferenças muito marcantes entre os indivíduos. Cada ser humano é irreplicável. Não podemos dizer que os homens “são assim” e as mulheres “são assado”. É uma generalização grosseira. E a gente se convence dessa naturalização das coisas para dizer que não tem outro modo de existir. Por quê? Porque é difícil questionar o padrão, dá medo. O que eu vejo, por exemplo, é que já na infância há um modo de falar com os meninos pequenos. Para as meninas, todo mundo diz: “Ai, que bonitinha, que queridinha”, com vozinha de bebê. Com os meninos, desde muito cedo, dizem com voz grossa: “E aí, cara, chora não”, “homem não chora”, “seja macho”. Fora as brincadeiras “de menina” e “de menino”.

  • G |Como fazer para tentar trazer outros estímulos e interesses quando, sabemos, a criança está inserida na cultura do “coisa de menino”, “coisa de menina”?

    NQ |

    Quando você coloca meninos para brincar de cozinha desde pequenos — caso dos meus filhos, que pediram uma mini cozinha de madeira de presente —, eles se tornam amorosos, delicados e carinhosos com os assuntos relacionados à cozinha que é um interesse, tradicionalmente, tido como feminino. Cozinhar vira um gesto não só lúdico, mas uma expressão de amor. Meus filhos também têm bonecas e ursinhos de pelúcia. E eu vejo eles sendo muito amorosos com crianças menores, com os bichinhos na rua. Ao criar os filhos dessa maneira, vemos desabrochar neles coisas muito inéditas dos meninos “padrão”.

  • G |Quais as principais dificuldades de criar meninos menos machistas e mais seguros emocionalmente?

    NQ |

    É um desafio. Meu marido e eu nos monitoramos para ter certeza de que não estamos replicando padrões. Ao mesmo tempo, ninguém quer que o filho seja um deslocado da sociedade. Você quer que seu filho seja uma pessoa que se encaixa, que tenha amigos, um companheiro ou uma companheira no futuro. Alguma concessão, portanto, há de ser feita para se viver em sociedade. Quais as marcas culturais de masculinidade que a gente está disposto a manter? Os pais precisam fazer escolhas difíceis no dia a dia. Em casa, por exemplo, decidimos que pode brincar de espada e super-herói porque essas brincadeiras têm um nível de violência fantasioso, e acreditamos que a criança precisa poder, inclusive, elaborar a violência dela no brincar, mas proibimos brinquedos que emulem armas de fogo porque essas armas, de fato, matam pessoas no mundo real. O nosso limite foi esse, mas deu trabalho determiná-lo, tive que ler, estudar sobre a expressão da violência no brincar. Dá trabalho criar meninos e meninas de uma forma diferente, humana, amorosa, construtiva. Pai e mãe não vêm com manual, mas é possível criar o seu próprio manual com o seu filho. Olhar para aquele ser humano único e criar um manual único, adaptado a ele. Às vezes meus filhos falam: “Isso é coisa de menina”. E eu respondo que eles não têm que se preocupar com isso, mas se perguntar se aquela é uma coisa de Jorge ou de Vicente, não se é algo de menino ou de menina. Assim, eles vão descobrindo que é possível ser mais eles em vez de se encaixar na forma genérica do que é ser um homem.

  • G |Que tipo de violência simbólica (ou mesmo física) você enxerga na forma como meninos são criados?

    NQ |

    A criação dos meninos é recheada de violências, tanto simbólicas quanto físicas, o que leva a uma normalização da violência. Há uma repressão da expressão das emoções, sendo a agressividade a única emoção que se é permitido expressar. O cérebro e a personalidade dos meninos são moldados para funcionar de forma violenta. Não é à toa que a maioria dos assassinos do mundo são homens, que a maioria dos presos e criminosos do mundo são homens e a maioria dos suicidas do mundo também são homens. Existe ainda uma violência física inegável. Na pesquisa para o livro, a violência física aparecia como repressão à homossexualidade na geração de homens que entrevistei, dos 18 aos 70 anos. Principalmente os homens gays relataram que apanharam muitíssimo, por qualquer expressão que tinham da própria sexualidade. No entanto, isso não acontecia apenas com os homens gays, mas também com os héteros. Quando o menino está tendo reprimidas a individualidade e a personalidade, com frases do tipo “homem não faz isso”, você está dizendo que ele tem que ser menos ele mesmo e mais essa figura hipotética do homem. Essa já é uma violência à individualidade humana, à expressão do espírito humano.

Os meninos estão imersos em violência, são criados para a violência — tanto psicológica quanto física

  • G |Uma parte do seu livro gira em torno da iniciação sexual precoce e forçada de meninos. Por que esse momento é tão formativo — e problemático — na construção da masculinidade?

    NQ |

    Se eu disser que a mãe de uma menina de 12 anos pagou para um homem de 36 anos para desvirginar a filha dela, imediatamente a reação é de que aquilo é um estupro, que aquela mãe é uma louca. Só que pais, primos, tios e avôs fazem isso no Brasil com meninos há séculos e ninguém entende o tamanho dessa violência. Há uma geração de homens iniciados sexualmente a partir do que chamamos de estupro de vulnerável. E aí, esperamos que esses homens entendam as nuances do consentimento, porque existe o consentimento falado, como vemos em campanhas como a do “Não É Não”, que têm muito valor, mas há o consentimento que está nos olhares, na expressão corporal, na convivência. Os homens são completamente analfabetos nesses sinais do consentimento. Tem homem que não sabe que ter relação sexual com uma mulher muito bêbada é um comportamento problemático, um estupro. Há meninos tendo comportamentos de violência sexual sequer se dando conta de que aquilo está acontecendo porque essas situações foram normalizadas para eles. Se a gente tivesse uma educação sexual construtiva, que ensinasse as nuances do consentimento, que explicasse para os meninos sobre a sexualidade feminina e sobre outras formas de sexualidade, teríamos homens muito menos violentos, teríamos menos violência sexual.

  • G |Você diz que uma “educação feminista amorosa” é uma “vacina contra a nossa pandemia patriarcal”. Quais os pilares desse modelo de criação e como ele se aplica no cotidiano?

    NQ |

    A criação feminista amorosa é focada em criar indivíduos, almas, aquele ser humano único que está na sua frente. Aquele ser que, com a sua orientação, vai se expressar no mundo, se descobrir e se aventurar entre o que é certo e o que é errado em cada situação. Sem máximas generalistas que violam a expressão da personalidade daquele ser. Você não é um autor, você é um anfitrião daquela pessoa na Terra. A criação feminista amorosa permite que a criança seja ela e que ela descubra quem é, sem se preocupar, por exemplo, no que é ser um homem. Um homem é só uma construção cultural, um conceito como tantos outros. Para além da biologia que faz do macho, macho e da fêmea, fêmea, há muitas camadas em cima do que entendemos como homens e mulheres. Resumindo: é deixar que a criança se expresse e busque a sua felicidade, sem precisar se encaixar em amarras e rótulos que a sociedade cria para elas.

  • G |A pesquisa que você conduziu para o livro revelou um grande sofrimento psíquico entre os entrevistados. Qual é a grande causa desse sofrimento?

    NQ |

    O conflito psíquico ficou muito claro quando perguntei para os homens se eles, alguma vez, se sentiram impedidos de ser quem são, de fato, por conta do conceito do que significa ser um homem, e a vasta maioria disse que sim. Pelo menos alguma vez na vida eles se sentiram impedidos de ser quem são. Essa luta íntima e essa violência interior são exaustivas. É cansativo ficar tentando ser quem você não é, leva à expressão da violência. Agora, uma pessoa que é plena consigo, que sabe navegar o próprio ser e as próprias emoções de maneira suave, tende a existir de forma suave no mundo, além de suavizar a vida dos outros, em vez de dificultar.

  • G |Como trazer o tema do feminismo para os meninos sem cair no tom acusatório e num embate de meninos versus meninas?

    NQ |

    Eu trabalho muito no combate à radicalização de meninos na internet, na ONG Avaaz, e o que temos visto nos estudos é que os meninos estão caminhando para o “red pill” e a extrema-direita está se alimentando disso porque esses garotos se sentem acusados nos ambientes progressistas. É pedido para os meninos que eles calem a boca e escutem, mas qualquer pessoa que leu Paulo Freire sabe que ninguém vai aprender sentado escutando, as pessoas aprendem quando digerem o que foi dito e se reapropriam daquilo.

  • G |Como abrir esse diálogo?

    NQ |

    É preciso que os homens possam falar sobre a experiência masculina dentro do feminismo. Não se trata de roubar o lugar de fala das mulheres, quem vai falar da experiência feminina é quem vive a experiência feminina, mas existe um viver masculino na nossa sociedade que sofre e é reprimido pelo patriarcado. O homem também é reprimido pelo patriarcado e, às vezes, gastamos tempo demais pensando em quem é mais reprimido. Não é uma competição de sofrimentos. O sofrimento não precisa ser comparado, precisa ser acolhido. Talvez, a cura para as dores das mulheres esteja na cura do coração masculino. A nossa falta de generosidade e a agressividade tão acusatória com os meninos está fazendo com que a extrema-direita se alimente deles. Os meninos precisam ter opções, modelos de homens nos quais se inspirar, precisam sentir o que é ser um cara legal. A gente não tem só que falar o que não ser, temos que ajudar os garotos a entender o que ser, o que está no cardápio de possibilidades do que um homem livre pode ser, o que é bacana.

  • G |Os homens, então, são aliados fundamentais na criação de meninos menos machistas e mais sensíveis?

    NQ |

    Todo menino é criado pela sociedade inteira que o cerca, não só pelas mães. Então, sim, é preciso que os homens se envolvam e que os pais entendam a responsabilidade que têm na formação desses meninos como o primeiro modelo masculino que está disponível. É preciso criar uma rede de homens que falem abertamente sobre sentimentos, sobre erros do passado e como consertaram, que acolham esses meninos na iniciação sexual deles e deem conselhos. É importante que a gente crie um “red pill” ao contrário, um movimento online para acolher esses meninos que estão perdidos porque o que está sendo posto os deixa confusos, sem referências. Os meninos não sabem mais como paquerar. Eu vejo dúvidas constantes entre meninos na iniciação sexual. “As mulheres querem que eu roube um beijo ou não?”, “A mulher quer que eu tome iniciativa ou não?”, “Ela quer que eu insista ou não?”. E são perguntas justas, afinal, o que as mulheres esperam? Essas perguntas deveriam poder ser feitas, sem pregação. O movimento progressista, às vezes, é “pregatório”, parece que está proclamando um sermão. Temos que parar com tanto sermão.

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