Somos todos narcisistas?
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Ilustração de Isabela Durão

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Reportagem

Você já teve um amor narcisista?

Da sedução à desvalorização: especialistas ajudam a identificar esse padrão de comportamento em relacionamentos amorosos

Ana Elisa Faria 25 de Maio de 2025

Você já teve um amor narcisista?

Ana Elisa Faria 25 de Maio de 2025
Ilustração de Isabela Durão

Da sedução à desvalorização: especialistas ajudam a identificar esse padrão de comportamento em relacionamentos amorosos

Uma pessoa charmosa, que parece o par ideal, perfeita demais para ser verdade, entra na sua vida de forma arrebatadora. Logo, você está completamente envolvido, verdadeiramente apaixonada, acreditando estar vivendo um amor especial e intenso, digno de um bom filme romântico. É mensagem com declaração açucarada para cá, flores para lá, presentinhos acolá, elogios aos montes, atenção plena. O famoso “love bombing” — um bombardeio amoroso.

Em pouco tempo, porém, o encanto se transforma em angústia, o enaltecimento é substituído por críticas constantes e a segurança emocional desaparece. Fica uma sensação estranha, de dúvidas em relação aos seus próprios sentimentos e às suas percepções. Essa experiência, além de desgastante e triste, pode indicar que você está se relacionando com um indivíduo narcisista — ou com uma personalidade marcada por esse traço.

Conforme explica a neuropsicóloga Andrea Lorena Stravogiannis, coordenadora da equipe de amor e ciúme patológicos do Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso (Pro-Amiti) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-HC-FMUSP), a personalidade narcisista é marcada pela necessidade excessiva de admiração, pela falta de empatia e por uma autoimagem grandiosa que, muitas vezes, mascara uma autoestima frágil.

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Stravogiannis, no entanto, faz um alerta sobre a banalização do uso do termo. Segundo ela, a palavra narcisista tem sido usada com muita frequência e nem sempre de forma precisa. “No senso comum, costuma-se descrever pessoas egoístas, vaidosas ou que se colocam em primeiro lugar. Mas, na psicologia clínica, o Transtorno de Personalidade Narcisista (TPN) é algo muito mais profundo, complexo e disfuncional”, comenta.

Ou seja, não é porque alguém tem comportamentos egocêntricos, frios ou manipuladores em um namoro ou num casamento que o diagnóstico é certo. Aliás, pelo contrário, menos de 2% da população mundial sofre com esse distúrbio. Há uma diferença entre características pessoais e o TPN propriamente dito. “Traços narcisistas podem surgir em situações de estresse, insegurança, imaturidade emocional ou como mecanismos de defesa momentâneos. Já o transtorno implica um padrão rígido e persistente que causa prejuízo significativo na vida da pessoa e na dos indivíduos à sua volta”, detalha.

A personalidade narcisista é marcada pela necessidade excessiva de admiração, pela falta de empatia e por uma autoimagem grandiosa que pode mascarar uma autoestima frágil

A profissional fala que essa distinção é essencial sobretudo ao falarmos de relacionamentos afetivos. “Muitos relatam ter vivido relações com parceiros ‘narcisistas’, mas é preciso avaliar cuidadosamente: tratava-se de um transtorno de personalidade ou de alguém com atitudes tóxicas, egoístas e imaturas, mas sem o padrão clínico do transtorno mental?”, questiona Stravogiannis.

Narciso acha feio o que não é espelho

Gisele Senne de Moraes, psicanalista, membro do Instituto Sedes Sapientiae e doutora pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), conta que, na visão psicanalítica, o narcisismo é um elemento estruturante: é o que permite, especialmente na infância, a construção de um senso de unidade, um eu coeso. “Ele dá união, uma integração para aquela pessoa.”

O problema surge, de acordo com Moraes, quando o indivíduo permanece fixado nesse processo inicial do desenvolvimento e passa a sustentar a identidade exclusivamente pela imagem de si que vê refletida no olhar do outro. “O narcisismo entra como uma questão defensiva, diante de algumas ameaças da vida. E há um grande sofrimento nisso. Imagina ter de ficar o tempo todo precisando do outro para bater palmas?”, exprime.

Especialista em relações amorosas, o psicanalista Gustavo Andrade Soares, mestre em psicologia social pela Universidade de São Paulo (USP), lembra que o termo, narcisismo — e derivados —, nasceu do mito de Narciso, o personagem da mitologia grega que se apaixonou pela própria imagem refletida na água. Essa fixação com o espelho é central para entender como se comporta um narcisista.

“Há uma relação muito forte com a imagem, tanto na questão da admiração, já que a pessoa sente necessidade extrema de ser admirada, quanto no excesso de autoimportância e demanda por atenção”, diz Soares.

Red flags pululando

Nos primeiros encontros, tudo parece lindo demais, intenso e apaixonante. “O narcisista costuma ser carismático, sedutor e, rapidamente, faz o outro se sentir único”, descreve Andrea Lorena Stravogiannis. Entretanto, passado um tempo desse período de mil maravilhas, alguns sinais soam como pequenos alarmes, as tais “red flags” (bandeiras vermelhas) relacionais.

O narcisista seduz com intensidade e velocidade. Depois, surgem críticas, joguinhos de poder. Quando o parceiro está fragilizado, pode haver abandono, gerando sofrimento, e, às vezes, o recomeço desse ciclo

A neuropsicóloga cita comentários que denotam superioridade, falta de escuta genuína, histórias de relacionamentos passados que colocam o ex como “culpado”, ausência de autorresponsabilidade e reações desproporcionais diante de frustrações mínimas. Então, já sabe, se tudo gira em torno dele ou dela, e a culpa de todos os problemas é sempre do outro, ou do acaso, é preciso observar com atenção.

“Primeiro, o narcisista seduz com intensidade e velocidade, oferecendo uma conexão aparentemente mágica. Depois, surgem críticas, distanciamento emocional, joguinhos de poder. Por fim, quando o parceiro está emocionalmente fragilizado e dependente, pode haver abandono ou afastamento, gerando confusão, sofrimento e, às vezes, o recomeço desse ciclo”, Stravogiannis detalha o processo.

Outra característica marcante é a falta de empatia e de interesse pelas questões da parceria. Gisele Senne de Moraes observa que, normalmente, não há uma troca. “Por exemplo, o parceiro narcisista chega e começa a falar dos acontecimentos do dia, mas quando você vai contar as suas novidades, ele não escuta. Ele não está interessado no que você fala ou faz. A pessoa não consegue se ver na relação, e você está ali como um espelho.”

Todos podemos, eventualmente, apresentar atitudes egoístas. A diferença, analisa Stravogiannis, está na constância e na rigidez do modelo. “Um comportamento pontual pode ser reconhecido, revisto e reparado. Já no narcisismo, o padrão é persistente, há dificuldade em reconhecer falhas e uma inversão de responsabilidades.”

A relação, destaca a psicóloga, pode se tornar um circuito: encantamento → controle → desvalorização → culpa da vítima → nova fase de encantamento. “Isso acaba sendo exaustivo para o parceiro não narcisista e confunde emocionalmente, trazendo muita angústia.”

Narcisismo e gênero

Embora o cerne do narcisismo seja semelhante em ambos os gêneros, a maneira de expressão dos traços narcisistas na relação pode variar. De acordo Andrea Lorena Stravogiannis, homens tendem a exercer domínio por meio de imposição, competição e crítica direta. Já mulheres costumam usar estratégias mais relacionais, como manipulação sutil, vitimização e controle pela culpa.

“Vivemos em uma cultura que ainda associa masculinidade ao poder e, por isso, certos comportamentos narcisistas em homens são erroneamente vistos como ‘liderança’ ou ‘autoconfiança’. Em contrapartida, mulheres narcisistas, por usarem recursos emocionais e interpessoais para manipular, passam mais despercebidas. A vitimização feminina, quando usada de forma instrumental, também pode mascarar o narcisismo”, sinaliza.

Na própria lógica amorosa, o ‘papel’ de muitas mulheres é funcionar como um espelho narcísico para o homem

Gustavo Andrade Soares ressalta que o DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) mostra que o TPN tem prevalência de 50% a 75% nos homens. E, para ele, a principal complexidade da questão em relação ao gênero é a maneira como o narcisismo é patologizado em homens e mulheres. “É muito mais adaptativo para o homem, na nossa sociedade, ser um narcisista. Isso é até exigido, de certa forma, para performar socialmente um papel de líder.”

“Na própria lógica amorosa, o ‘papel’ de muitas mulheres é funcionar como um espelho narcísico para o homem. Elas servem de suporte para a identidade masculina”, frisa o psicanalista.

Impactos emocionais

Relacionamentos com narcisistas têm impactos emocionais profundos. A neuropsicóloga Andrea Lorena Stravogiannis comenta que, pouco a pouco, a vítima dessa pessoa vai sendo esvaziada. Ela lista os efeitos mais comuns: ansiedade, culpa, confusão mental, queda da autoestima, sensação de não ser suficiente e perda de identidade. Muitas vítimas também relatam sintomas semelhantes aos do estresse pós-traumático. “‘Será que sou eu o problema?’ é uma dúvida constante e é uma das marcas do vínculo abusivo”, reforça.

Romper esses elos, que podem se dar em um breve casinho, em um namoro ou até num casamento duradouro, costuma ser desafiador, justamente pela dinâmica estabelecida de dependência emocional.

A pessoa que tem um par narcisista é condicionada, ao longo da relação, a acreditar que precisa daquele amor — mesmo que seja um amor que machuca. “Há ainda o medo da solidão, a esperança de que tudo volte a ser como no início e a dificuldade de identificar os abusos emocionais por trás da manipulação sutil”, diz Stravogiannis.

A saída não acontece de uma vez; ela é construída com consciência, cuidado e fortalecimento

Identificar e validar o próprio sofrimento, além de buscar informação confiável, são os primeiros passos para sair de uma relação com uma parceria amorosa narcisista. Buscar apoio terapêutico também é crucial para se proteger emocionalmente e reconstruir a autoestima.

Stravogiannis pontua que cortar esse laço exige planejamento emocional e, às vezes, até estratégico, em casos de violência psicológica ou financeira. “A saída não acontece de uma vez; ela é construída com consciência, cuidado e fortalecimento pessoal. Reconhecer que amar alguém não é sinônimo de permanecer em relações destrutivas é um ato de coragem.”

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