Quem define os temas que as escolas devem discutir?
Essenciais na educação básica, comunidades escolares têm sua força testada por divergências políticas e desigualdade social
Foi em 2020, mesmo ano em que o assassinato de George Floyd por um policial branco nos EUA gerou uma onda de protestos contra o racismo, que a advogada Evie Barreto, 51, começou a prestar atenção à desigualdade racial num ambiente fundamental para ela: a escola de seu filho. “Numa reportagem sobre professores negros em escolas particulares, o [colégio] Equipe frustrantemente deu uma resposta muito evasiva”, lembra.
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Com perfil reconhecidamente progressista, o Colégio Equipe, localizado no bairro de Higienópolis, região nobre do centro de São Paulo, chegou a admitir numa matéria do El País além da baixa diversidade de seu corpo docente, também não saber quantos eram os alunos negros matriculados na escola.
A partir dessa informação, Barreto reuniu, em conversas por Whatsapp, um grupo de pais preocupados com o assunto. “Fizemos uma carta manifesto falando do problema e estabelecendo diretrizes que a escola deveria seguir”, conta a advogada. Esse grupo acabou se transformando na atual Comissão Antirracista do Equipe, formada para ajudar a definir e fazer avançar uma agenda de diversidade e luta contra o racismo no colégio.
Em quatro anos de existência, a comissão vem pressionando não só pela contratação de mais professores negros. Hoje o Equipe tem 22 alunos negros bolsistas, vindos de um projeto de habitação social. “Nosso programa de cotas relaciona a questão racial a uma luta política e social pela moradia, que já era presente no nosso currículo”, afirma a diretora do Equipe, Luciana Fevorini. Além disso, o colégio vem numa tentativa de “decolonizar” o currículo escolar, incluindo mais conteúdo relacionado à história e cultura afro-brasileira e africana — em 2023, a lei que estabelece o estudo de história e cultura da África completou 20 anos no país.
“Hoje, meu filho fala de questões raciais com uma desenvoltura que não tinha antes”, aponta a advogada. Embora reconheça que isso se deve a múltiplas influências, considera que a ação da comissão e as mudanças promovidas no colégio tiveram uma contribuição importante. “A gente mobiliza e atua dentro da escola. Os alunos, principalmente negros, se sentem mais acolhidos e empoderados. Já está tudo maravilhoso? Não. Mas vejo que hoje eles têm uma narrativa e estão inseridos no conteúdo, num movimento de valorização.”
Não existe educação infantil de qualidade se a participação dos pais não for grande
O Ministério da Educação hoje inclui em seu conceito de comunidade escolar, da qual Barreto faz parte, não só professores e alunos, mas também pais ou responsáveis e os colaboradores que participam de alguma forma do ambiente educacional. Trata-se, portanto, de uma comunidade que engloba questões de aprendizado e temas extraclasse, mas que são parte essencial das relações e do desenvolvimento dos estudantes.
Mas, afinal, como definir os assuntos extracurriculares que devem ser discutidos dentro da escola? Para começar, a participação dos familiares é um ponto fundamental dessa equação.
“É sempre interessante ter um grupo de famílias mais organizado discutindo um tema, compartilhando com a escola suas preocupações”, aponta Fevorini a respeito das atividades da Comissão Antirracista. “Para uma escola, é fundamental ter a adesão das famílias à proposta pedagógica e educacional, que traduz uma visão de mundo. Se você acredita que escola e família são parceiras, não pode ter um distanciamento.”
Diferentemente de algumas escolas particulares, o colégio paulistano não possui uma associação fixa de pais ou responsáveis. Em vez disso, as trocas acontecem a partir do dia a dia da escola, em reuniões com docentes e familiares, eventos culturais e esportivos. Por isso, a participação nesses eventos é essencial e costuma ser incentivada, diz Fevorini.
“A gente não fica cobrando, mas problematiza quando a pessoa não vem”, reforça. “Algumas famílias não se dão conta de que era tão importante. À medida que falamos, elas se organizam para estar mais presentes.”
Para quem tem tempo
Se ter uma comunidade escolar atenta e fortalecida é sempre importante, essa relevância aumenta consideravelmente na educação infantil, na visão do gerente de pesquisa e inovação do Instituto Unibanco, João Marcelo Borges. “Esse é o período de construção da personalidade e do desenvolvimento das capacidades físicas, motoras, mentais e emocionais dos indivíduos. Não existe educação infantil de qualidade se a participação dos pais não for grande”, afirma Borges, que também é pesquisador de políticas educacionais da FGV.
Embora haja poucas pesquisas de fato representativas sobre o tema nas escolas públicas brasileiras, o que salta aos olhos, diz Borges, é que o tempo que pais ou responsáveis e educadores têm à mão para se engajar em atividades além do ensino dentro da sala de aula costuma ser escasso. O fato de muitos professores estarem em mais de um emprego limita consideravelmente o período disponível para planejar e realizar essas atividades, de acordo com o especialista. E o mesmo vale para pais ou responsáveis que trabalhem longe de casa e por horários muito prolongados.
Outro ponto relevante, na visão de Borges, são as condições da região em que a escola está localizada, que acabam impactando mais alunos de instituições públicas e em bairros periféricos. “A disponibilidade de transporte público depois do horário escolar, o trânsito nas cidades grandes, a violência… isso tudo tende a afetar a realização dessas atividades”, aponta.
A depender da escola e dos fatores socioeconômicos de quem responde pelo estudante, fica muito difícil acompanhar a rotina do filho
A educadora Gina Vieira Ponte, do Distrito Federal, lembra que, num país onde tantas mulheres precisam criar seus filhos sozinhas, há camadas extra de dificuldade para que elas participem até das tradicionais reuniões escolares. “A depender da escola e dos fatores socioeconômicos de quem responde pelo estudante, fica muito difícil acompanhar a rotina do filho”, afirma. Há inclusive um projeto de lei em tramitação no Congresso que permite aos pais se ausentar do trabalho uma vez a cada seis meses para comparecer à escola dos filhos.
De acordo com Alberto Lima, diretor da EMIA (Escola Municipal de Iniciação Artística), projeto que leva o ensino gratuito de artes para as periferias de São Paulo, a ação da comunidade escolar em instituições públicas ajuda também a assegurar a permanências dos jovens na escola. Toda semana, as instituições do projeto realizam reuniões entre professores, que compartilham suas observações sobre o comportamento e as necessidades particulares de cada aluno. “Há uma troca constante entre os professores, e a assistente pedagógica encaminha um plano de trabalho segundo esse contexto”, explica.
Se no passado as principais reclamações de educadores pelo país estavam ligadas à falta de insumos e de uma infraestrutura adequada para o ensino — problemas crônicos na educação pública brasileira —, Borges aponta que hoje elas também incluem o envolvimento, ou a falta dele, por parte das famílias nas atividades da comunidade escolar.
“As condições para isso acontecer vêm diminuindo, especialmente nas áreas periféricas”, revela o especialista. “E, quando há esse envolvimento, costumam ser famílias que chegam com uma postura limitadora da liberdade escolar, com posições que reforçam as restrições ao fazer pedagógico.”
Quem decide
Em janeiro, foi sancionada uma lei que criminaliza o bullying no Brasil. Uma mãe percebeu recentemente que a plataforma de games Roblox, bastante popular entre as crianças brasileiras, vem permitindo simular práticas como tráfico de drogas, a criação de facções criminosas e até a compra de armas, tudo dentro do jogo à primeira vista inofensivo. E, em 2023, o governo federal anunciou que alunos do ensino básico no país devem voltar a ter aulas de educação sexual e reprodutiva.
Embora não necessariamente conversem entre si, há uma gama de questões como essas e outras que nem sempre fazem parte do conteúdo letivo, mas perpassam de maneira crucial o ensino e o desenvolvimento infantil. Porém, ao reunir a comunidade de educadores e gestores escolares a pais e responsáveis, com origens e pensamentos diversos, ainda mais em torno de um tema já naturalmente complexo como a educação, tomar decisões e construir consensos sobre o que precisa ser abordado se torna uma tarefa desafiadora.
Para uma escola, é fundamental ter a adesão das famílias à proposta pedagógica e educacional, que traduz uma visão de mundo
A educadora Gina Vieira Ponte defende que todos os temas ligados às relações humanas que colaboram para a aprendizagem, o desenvolvimento e o pensamento crítico, devem ser discutidos de forma interdisciplinar e transversal ao currículo dentro da comunidade escolar. “Embora hoje haja a ideia de que o único papel da escola é instrumentalizar os estudantes para o mundo do trabalho, não é isso que está sinalizado nas teorias pedagógicas e nem no aparato legal que rege a educação brasileira”, declara.
“O que devemos buscar como país, visando a qualidade da educação, é uma formação integral, humana e cidadã, que prepare sim os estudantes para o mundo do trabalho, mas não despreze o fato de que um bom profissional é aquele que entende de diversidade, direitos humanos, valores plurais e democracia.”
Em 2015, quando dava aula para uma classe de alunos do 9º ano da rede pública, a educadora percebeu que o uso das redes sociais vinha sendo uma das principais fontes de desentendimentos entre eles. Então, decidiu abordar o uso consciente e ético das redes a partir do próprio conteúdo das aulas.
“Discutimos aspectos da língua portuguesa, como gênero textual e tipo narrativo, abordamos o debate e criamos um júri simulado, incentivando os estudantes a elaborar roteiros de vídeos e peças de teatro em torno do uso responsável das redes sociais”, conta. Ao final, a classe organizou uma mostra de vídeo para as outras turmas com os resultados do trabalho, segundo a educadora, democratizando a discussão para todo o colégio.
A Pedagogia Waldorf, criada pelo filósofo austríaco Rudolf Steiner (1861-1925) e hoje presente em mais de cem escolas públicas e particulares pelo Brasil, é outro exemplo de educação baseada numa comunidade escolar forte, com participação central de pais e responsáveis. O método prevê inclusive a criação de grupos de trabalho de pais e familiares, que ajudam a fazer desde a manutenção da instituição até a organização de eventos e reuniões sobre assuntos que afetam o cotidiano escolar, como bullying ou o uso excessivo de celulares.
Essa participação voluntária pode impactar a personalidade das crianças tanto pelo lado social quanto na criação de um vínculo afetivo das famílias com o ambiente escolar, diz a articuladora pedagógica da Federação das Escolas Waldorf no Brasil, Valéria Nogueira. “Esses temas são e devem ser da escola, é uma questão de saúde para as crianças. Se pais e as escolas trabalham em cooperação, estamos criando seres humanos mais saudáveis.”
Política e a educação sexual
Apesar da recente inclusão da educação sexual no currículo escolar, a sexualidade e as discussões sobre identidade de gênero vêm sendo alvo há alguns anos de ataques por parte de movimentos de direita e projetos de lei que buscam proibir totalmente a prática. “Isso limita a possibilidade dos educadores públicos fazerem a educação sexual nessa etapa da vida, uma introdução à autoproteção das crianças contra violência e abuso”, afirma Borges.
Segundo o gestor e pesquisador de políticas educacionais, há uma pressão cada vez maior sobre os educadores e a comunidade escolar para limitar debates a respeito do assunto, em especial da parte de pais com tendências conservadoras e religiosas. “Essa resistência política travestida de valores conservadores compromete a capacidade de as escolas serem mais propositivas em informar os pais e crianças sobre o tema de maneira lúdica.”
Pesquisas já mostram que a maioria dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil acontece dentro do ambiente doméstico, em geral causados por familiares. “Ao comprometer [a educação sexual], você aumenta o risco de exposição das crianças a práticas violentas”, declara Borges.
Por conta desse e de outros fatores, o especialista considera que há hoje uma espécie de geografia política na forma como certos temas são debatidos pelas comunidades escolares. Ou seja, escolas em regiões mais conservadoras ou de tradição religiosa tendem a refletir esses valores, e vice-versa.
Até por esses desafios, ele diz, é impossível esperar uma homogeneidade nos debates. Afinal, colégios em regiões com forte desnível social ou territórios marcados pela violência, por exemplo, precisam criar estratégias específicas para lidar com essas realidades de acordo com as próprias possibilidades e demandas — estratégias que também vão ganhando forma a partir de características locais.
“A escola sempre foi um campo de disputa política e social, porque tem a função de conservar conhecimentos relevantes à humanidade e passá-los adiante”, afirma Borges. “Quando essas forças adotam posições irreconciliáveis, a escola sofre, pois precisa reduzir cada vez mais o escopo das temáticas que são aceitáveis para os pais.”
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