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ConversasLeah Hazard: "O útero é o órgão mais legislado do corpo e evoca opiniões incrivelmente fortes"
Escritora e parteira do Serviço Nacional de Saúde britânico desvenda o útero em novo livro e fala sobre o uso do órgão como uma ferramenta de opressão social e política
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Leah Hazard: “O útero é o órgão mais legislado do corpo e evoca opiniões incrivelmente fortes”
Escritora e parteira do Serviço Nacional de Saúde britânico desvenda o útero em novo livro e fala sobre o uso do órgão como uma ferramenta de opressão social e política
Um pequeno punho cerrado. Uma pera de ponta-cabeça. Um músculo poderoso que, geralmente — e aproximadamente —, tem 7 centímetros de altura por 5 centímetros de largura, com paredes de 2,5 centímetros de espessura, e pode trazer dor, alegria e violência. Um órgão tão forte quanto o coração e tão complexo quanto o cérebro. Essas descrições estão nas páginas de “Útero – A História de Onde Tudo Começou” (Planeta, 2023), novo livro da parteira e escritora Leah Hazard.
Nascida e crescida nos EUA, Hazard se mudou para a Escócia em 1999, onde vive até hoje. Após se formar em literatura, trabalhou como pesquisadora para a BBC escocesa. Em 2003, porém, depois do nascimento da primeira filha, decidiu seguir por outro caminho, o de doula (profissional que acompanha a gestante durante a gravidez, no parto e no pós-parto). Fez treinamentos para o ofício e, por seis anos, forneceu apoio perinatal prático e emocional para famílias. Encantada com esse universo, no ano de 2013, ela deu um passo além e se formou pela Glasgow Caledonian University como parteira.
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Daí em diante, passou por diversas áreas da maternidade do Serviço Nacional de Saúde britânico, incluindo enfermarias de parto, enfermarias pré e pós-natais, triagem e clínicas comunitárias. “Tem sido o maior privilégio carregar centenas de bebês e apoiar milhares de partos e famílias”, conta.
Em “Útero”, obra que chegou há pouco ao Brasil, a autora narra toda a trajetória de vida do útero, desde a juventude à menopausa, e apresenta pesquisas sobre o futuro da saúde desse sistema reprodutor.
Ela fala ainda sobre histerectomia (cirurgia de remoção do útero) compulsória e reproducídio, termo cunhado pela ativista da justiça reprodutiva Loretta Ross para explicar o fenômeno do abuso às pessoas com útero em todo o mundo, em épocas diversas, como a esterilização de mulheres ciganas na Tchecoslováquia (e, mais tarde, na República Tcheca) de 1966 a 2012 até alegações contínuas de histerectomia forçada e contracepção coercitiva entre as mulheres muçulmanas uigures na China.
Embora as funções básicas do útero sejam inegáveis, o útero é muito mais do que isso
Para Hazard, governantes que estiveram no poder ao longo da história usaram o útero e o poder potencial desse órgão, o único capaz de desenvolver outro ser humano e outro órgão (a placenta) dentro dele, como uma ferramenta de opressão social e política.
“Vemos isso na esterilização sistemática de mulheres e pessoas com útero em vários países e na luta real e atual pelos direitos reprodutivos em todo o mundo. O útero é o órgão mais legislado do corpo e evoca opiniões incrivelmente fortes. No entanto, os políticos e os legisladores entendem muito pouco sobre o que esse órgão faz e o que ele significa“, diz.
Nesta entrevista a Gama, Leah Hazard conta curiosidades que cercam o útero, analisa o papel do órgão na sociedade e fala sobre a carreira de parteira no Serviço Nacional de Saúde britânico.
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G |Por que escrever sobre o útero?
Leah Hazard |Depois de publicar o meu trabalho anterior, “Hard Pushed: A Midwife’s Story” (Arrow, 2020) [“Intensamente Pressionada: A História de uma Parteira”, em tradução livre], um livro de memórias sobre a minha carreira como parteira, quis escrever outro livro que analisasse a saúde reprodutiva de forma mais ampla. Levei um tempo para descobrir exatamente como fazer isso de uma maneira nova e elegante, mas um dia percebi que, embora existam muitos livros populares sobre o corpo humano, não havia livros sobre o útero. Então, naquele momento, visualizei que o útero seria uma ótima lente por meio da qual poderíamos ver questões mais abrangentes sobre saúde e justiça reprodutiva. Além disso, metade das pessoas têm um útero, todos nós começamos a vida em um, e a maioria de nós tem uma opinião sobre o que deve e o que não deve acontecer dentro de um útero, mas poucas pessoas realmente sabem como esse órgão funciona.
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G |Você diz que o útero é “o mais milagroso e incompreendido órgão do corpo humano”. Por quê?
LH |O útero é o único órgão capaz de desenvolver outro ser humano e outro órgão (a placenta) dentro dele. Mesmo quando o útero não está gestando, todo mês ele passa por um complexo e fascinante processo de cura (menstruação) sem cicatrizes que só agora começamos a entender. Ele é tão forte quanto o coração, é tão complexo quanto o cérebro e é tão vital para a vida quanto qualquer outro órgão, mas a maioria de nós sabe muito pouco a respeito.
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G |Após tantas pesquisas e a publicação do livro, qual foi a coisa mais surpreendente que você descobriu sobre o útero?
LH |O que me surpreendeu foi o quão pouco eu realmente sabia! Achei que, como parteira e mãe, sabia muito sobre esse órgão, mas a maior parte do que está incluído no livro era completamente novo para mim. Como sociedade e como indivíduos, somos incrivelmente ignorantes sobre esse órgão, seu poder e seu potencial, e eu me incluo nesse julgamento.
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G |O livro explora as diferentes fases e os diversos propósitos da vida do útero, desde o “útero em repouso” à menopausa, quando você escreve que “o silêncio final do órgão também pode ser o abrir das portas da alegria para uma mulher”. Você tem uma fase predileta do útero?
LH |Como parteira, acho a gravidez e o parto particularmente fascinantes, mas, ao fazer pesquisas para o livro, fiquei igualmente cativada por todas as outras fases do ciclo de vida do útero. Aprendi muito sobre o microbioma uterino, o potencial diagnóstico do tecido menstrual, a conexão útero-cérebro e o útero como um nexo de controle social.
Ao longo da história, aqueles que estiveram no poder usaram o útero e esse poder potencial do órgão como uma ferramenta de opressão social e política
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G |De que maneira o útero “está inextricavelmente ligado aos nossos destinos biológicos, sociais e políticos”?
LH |É muito fácil ter uma visão reducionista da fisiologia feminina e dizer que as mulheres são definidas pela sua biologia. Embora as funções básicas do útero sejam inegáveis, o útero é muito mais do que isso. Ao longo da história, aqueles que estiveram no poder usaram o útero e esse poder potencial do órgão como uma ferramenta de opressão social e política. Vemos isso na esterilização sistemática de mulheres e pessoas com útero em vários países e na luta real e atual pelos direitos reprodutivos em todo o mundo. O útero é o órgão mais legislado do corpo e evoca opiniões incrivelmente fortes. No entanto, os políticos e os legisladores entendem muito pouco sobre o que esse órgão faz e o que ele significa.
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G |É possível livrar o útero do machismo e da sociedade patriarcal?
LH |Eu gostaria de pensar que, em algum momento, a saúde reprodutiva se libertará do machismo e da sociedade patriarcal. Entretanto, o machismo e o patriarcado estão arraigados na medicina e na sociedade há milhares de anos, e levará muito tempo para que isso seja revertido. As pessoas sempre me perguntam se estou otimista em relação à saúde das mulheres e, embora haja algumas pesquisas empolgantes em andamento, também é um momento tremendamente difícil para os direitos reprodutivos em todo o mundo.
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G |Como colocar fim ao uso de terminologias médicas dolorosas para algumas mulheres, além de misóginas, sobre o órgão, como “colo do útero incompetente” [se dá quando há uma abertura indolor do útero, o que resulta no parto prematuro do bebê durante o segundo trimestre de gestação], “útero irritável” [ou útero reativo, condição caracterizada pela ocorrência de contrações antes da hora] e “útero hostil” [uma das principais causas da infertilidade feminina, vem a ser uma reação adversa do útero ao processo de fecundação]?
LH |Na verdade, isso não deveria demorar muito para mudar — só precisamos usar uma linguagem diferente —, no entanto, essas frases estão totalmente arraigadas na longa história misógina e paternalista da medicina. Precisamos entender o efeito que essa linguagem tem sobre as pessoas com útero e fazer um esforço — um esforço bastante pequeno até, em comparação ao contexto geral — para usar termos mais precisos e compassivos.
É um músculo poderoso, mas também um órgão que pode trazer dor, alegria e violência
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G |O sistema reprodutor feminino é frequentemente descrito em termos culinários, conforme você cita: o útero como uma pera, os ovários como amêndoas. Em um trecho do livro, você diz que o útero é um “pequeno punho cerrado”, uma imagem que remete a lutas. Por que a escolha dessa imagem para descrever o órgão?
LH |Eu adoro a imagem do útero como um punho porque é algo que as pessoas podem visualizar e entender imediatamente e, em um nível metafórico, também representa o poder desse órgão. É um músculo poderoso, mas também um órgão que pode trazer dor, alegria e violência.
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G |Como foi a sua rotina de trabalho como parteira do Serviço Nacional de Saúde britânico em meio ao caos da pandemia de Covid-19?
LH |Ser parteira durante a pandemia foi incrivelmente difícil. A saúde no Reino Unido já vive sob muita pressão, e a Covid-19 apenas exacerbou esse cenário. Tivemos que nos adaptar a novas formas de trabalhar, ao mesmo tempo em que tentamos nos proteger a nós mesmos, nossas famílias e nossos pacientes de uma doença potencialmente mortal. Sei que a situação também foi muito desafiadora no Brasil e gostaria de estender minha solidariedade a todos os profissionais de saúde do seu país.
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G |Como uma pesquisadora de TV se tornou parteira? De onde surgiu a vontade de mudar de área?
LH |Sempre me interessei pela saúde da mulher e, após o nascimento da minha primeira filha, em 2003, minhas prioridades realmente mudaram. Acabei deixando meu emprego na televisão e levei algum tempo para me reagrupar e me reciclar como doula. Continuei esse trabalho por seis anos, apoiando famílias em partos, em lares e hospitais, na região central da Escócia e, por fim, chegou o momento certo para voltar à universidade e me requalificar novamente como parteira.
- Útero – A História de Onde Tudo Começou
- Leah Hazard
- Planeta
- 425 páginas
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