Katharina Volckmer fala de autoconhecimento a partir de traumas coletivos — Gama Revista
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Katharina Volckmer: 'Quando visitei campos de concentração, pensei: essa sou eu, é de onde venho'

Autora do livro ‘A Consulta’ discute o impacto de traumas coletivos sobre quem somos e a importância de cutucar feridas antigas para poder seguir em frente

Leonardo Neiva 14 de Agosto de 2022

Katharina Volckmer: ‘Quando visitei campos de concentração, pensei: essa sou eu, é de onde venho’

Leonardo Neiva 14 de Agosto de 2022
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Autora do livro ‘A Consulta’ discute o impacto de traumas coletivos sobre quem somos e a importância de cutucar feridas antigas para poder seguir em frente

Você é onde você nasce? Talvez não exatamente, mas, de acordo com a escritora alemã Katharina Volckmer, 35, traumas e feridas vividos em nível nacional acabam entranhados em você, quer você queira quer não. Sua estreia como escritora, o livro “A Consulta” (Fósforo, 2022) é um monólogo que explicita o quanto questões como o nazismo e o Holocausto afetam a psicologia de sua protagonista alemã até hoje — e, como a autora parece indicar, também da população alemã como um todo.

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Livro “A Consulta” (Fósforo, 2022)  Divulgação

Trabalhando como agente literária em Londres, onde vive há 16 anos, Volckmer acredita que a visão de fora de seu país, assim como o fato de escrever em outra língua, foi o que permitiu criar o distanciamento necessário para poder escrever um livro como esse. “Se você vive fora do seu país por algum tempo, sua visão muda automaticamente. É um processo bastante comum. Você se torna mais crítico e é capaz de enxergar da perspectiva estrangeira. Se não tivesse feito isso, eu provavelmente não pensaria em escrever o livro”, afirma.

Divulgação

A protagonista de “A Consulta” narra sua história a um médico invisível e judeu que atende pelo nome de dr. Seligman. A ele, ela faz revelações surpreendentes sobre si mesma, seu gênero, seus traumas e sexualidade, com detalhes que vão desde sessões de masturbação guiadas pelo bigode de Hitler até a impossibilidade de gozar sem fazer ao mesmo tempo a saudação nazista.

O livro chocou leitores pelo mundo e foi considerado um dos principais destaques literários dos últimos anos, tocando em pontos complexos como a culpa alemã em relação ao Holocausto e à comunidade judaica, o silêncio que reina hoje sobre o assunto e o quanto essas feridas históricas, com mais de 80 anos de existência, ainda resistem à cicatrização. “A ideia de que superamos nosso passado é um mito que contamos a todo mundo. É impossível chegar a um ponto em que isso aconteça, sempre será uma ferida aberta.”

Ao abordar essa confissão a um médico invisível, Volckmer também evoca o trabalho de psicólogos e terapeutas, profissionais cada vez mais buscados hoje. Embora nunca tenha feito terapia na vida — “talvez devesse”, ela brinca –, a autora concorda que esses espaços podem estar entre os poucos onde ainda é possível se abrir totalmente, numa era em que tudo que se diz é minuciosamente analisado e criticado, principalmente nas redes sociais.

Apesar de constituir um processo doloroso ser sincero sobre traumas e desejos que na maior parte do tempo buscamos esconder, essa jornada também pode ter resultados muito positivos, na visão de Volckmer. “Para a protagonista, é uma posição complexa, mas que no final acaba sendo liberadora. A partir disso, imagino que ela será uma pessoa diferente.”

Na entrevista a Gama, a autora discute também essa nossa obsessão contemporânea por nós mesmos, a dificuldade da sociedade de deixar para trás visões antigas sobre gênero e o impacto dos traumas nacionais até sobre a linguagem corporal do povo alemão.

  • G |No livro, muitas das inseguranças e dificuldades da personagem principal parecem estar diretamente conectadas com problemas da sociedade alemã, especialmente na questão de lidar com o passado nazista e o Holocausto. Foi sua intenção fazer essa conexão desde o início?

    Katharina Volckmer |

    Sempre foi sobre o que podemos mudar na nossa identidade. Para mim, a identidade está muito ligada ao corpo, mas também, por causa da época em que vivemos, à nacionalidade. Então, mesmo que eu não queira, é um traço que define a minha identidade. Ser alemão não é algo muito sexy. Se você viaja pela Europa e diz que é alemão, a reação geralmente não é das melhores. Muitas das nossas inseguranças vêm desse traço que não podemos mudar em nós mesmos. Então a personagem até quer mudar seu gênero, mas não pode alterar sua nacionalidade. É uma experiência interessante tentar fazer isso. Porque ela quer sair do seu corpo e dessa coisa de ser alemã, porque não é uma posição maravilhosa de se estar.

  • G |Como os alemães lidam com seu passado?

    KV |

    Existe uma palavra, Vergangenheitsbewältigung, que significa lidar com o passado. A ideia de que superamos nosso passado é um mito que contamos a todo mundo. É impossível chegar a um ponto em que isso aconteça, sempre será uma ferida aberta. A Alemanha é um país profundamente racista ainda hoje. Não lidamos bem com as consequências do Holocausto ou a continuidade do nosso fascismo, porque ele não desapareceu em 1945. Faz parte da nossa linguagem, da forma como olhamos e lidamos com outras pessoas. E há o grande problema do neofascismo, se quiser chamar dessa forma, porque não acho que ele seja novo. Desde a reunificação, 200 pessoas foram mortas por fascistas na Alemanha. É uma narrativa que está muito emperrada. Hoje existe um relacionamento perverso entre alemães e judeus. Recentemente, aconteceu uma exibição de arte chamada Documenta, em que um coletivo indonésio expôs uma obra antissemita. Tiveram que retirá-la, mas antes não houve nenhum tipo de comoção pelo assunto. Então não tenho grandes esperanças. Não acho que esse passado vai simplesmente desaparecer.

  • G |Numa entrevista para o The Guardian, você diz que não poderia ter escrito o livro em alemão. Foi mais fácil tocar nesses assuntos morando longe de seu país natal?

    KV |

    Estou na Inglaterra há 16 anos, quase o mesmo período que vivi na Alemanha. Se você vive fora do seu país por algum tempo, sua visão muda automaticamente. É um processo bastante comum. Você se torna mais crítico e é capaz de enxergar da perspectiva estrangeira. Se não tivesse feito isso, eu provavelmente não pensaria em escrever o livro. Porque, uma vez que você está dentro de um país, vai cair sob sua influência. Sobre o idioma, é uma coisa meio idiota, mas acho que é mais difícil escrever um livro como esse em alemão. Ele não teria sido engraçado. Hoje o inglês é minha língua cotidiana. Às vezes sou convidada a escrever algo em alemão, mas sempre respondo que não. Seu idioma muda com você.

  • G |Enquanto estava escrevendo, você teve medo das reações que ia gerar ou chegou a imaginar que o livro não seria publicado?

    KV |

    Nunca achei que ia ser publicado. Quando meu agente na França disse que o livro ia sair, tive um momento de descrença. Quando você está escrevendo, não pensa muito sobre isso. Estou bastante acostumada a viver dentro da minha mente, então não me surpreendo com as coisas estranhas que saem dela. Mas me surpreendi, quando o livro foi finalmente publicado, com o quão calorosamente ele foi recebido. Foi uma coisa tocante. No fim do dia, não se trata só de provocação, apesar de a personagem dizer algumas coisas realmente ultrajantes. Mas ela também está vulnerável, e acho que os leitores responderam bem a isso.

  • G |E o livro foi publicado na Alemanha? Como foi a reação por lá?

    KV |

    Por um ano, ninguém quis publicar. Os editores alemães achavam que eu estava louca. O argumento mais comum: não seria engraçado para um leitor alemão e era de mau gosto tocar no assunto. E misturar questões corporais e sexuais a esse tema seria realmente desagradável. No ano passado, uma pequena editora decidiu publicar, com uma tradução muito boa. E ficou tudo bem, ninguém morreu. Mas eu não quis comparecer a eventos na Alemanha, seria um pouco estranho. Eles obviamente odeiam que você, como alemã, escreva em outra língua. Há uma hierarquia de idiomas, e desistir do bom alemão para escrever em inglês é algo que você simplesmente não deve fazer.

  • G |Você escreveu um livro centrado numa investigação da identidade e psicologia da protagonista, num período em que há muito medo de cancelamento ou falar algo problemático. A terapia hoje é um dos únicos espaços seguros para fazer esse tipo de autoanálise?

    KV |

    É um espaço muito íntimo e que também foi se metamorfoseando com o tempo. No contexto católico, você compartilharia com seu padre. Depois passou a falar com seu médico e hoje um terapeuta. É algo com que a personagem brinca constantemente, porque ela às vezes trata o interlocutor como terapeuta e às vezes como padre. Hoje muita gente se diverte com essa “pornografia identitária”, uma obsessão com a própria identidade. Ao mesmo tempo, as pessoas têm medo de falar certas coisas abertamente. Apesar de apreciar muito do que vem acontecendo no mundo nos últimos anos, sinto que os espaços se tornaram limpos demais, o que impede que tenhamos conversas de verdade. Como artista, me sinto até feliz caso as pessoas se incomodem de uma maneira ou de outra. É uma linha tênue, mas não acho que a arte esteja ali para massagear seu ego. É bom falar mais abertamente, ainda que com alguns limites. Talvez seja por isso que tanta gente faz terapia, porque tem medo de falar abertamente e gerar reações indesejadas. Algumas coisas me interessam, como as fantasias sexuais da personagem com Hitler. Vários editores alemães se incomodaram com isso, mas a sexualidade de uma pessoa pode muito bem contrariar suas posições políticas. Isso torna a coisa mais complexa, e acredito que precisamos dessa complexidade.

  • G |Você faz terapia? Isso te inspirou de alguma forma na escrita do livro?

    KV |

    Nunca fui a um terapeuta na vida. Talvez devesse. Para mim, a escrita é bastante terapêutica. Às vezes sinto como se as outras pessoas fossem meio loucas por não terem encontrado um escape, uma forma divertida de incorporar o mundo ao redor. Tenho muitos amigos que fazem terapia, mas nunca senti vontade de ir. Claro que o livro brinca com isso. No começo, muita gente pensa que ela está falando com um terapeuta. Em algum momento, ela até tentou, mas não funcionou. E desconfio que, para muita gente, também não funcione, porque acaba se transformando numa atividade básica e regular, como uma aula de ioga.

  • G |Hoje parece haver uma obsessão com a identidade e o autoconhecimento, que viraram temas comuns para influenciadores e coaches. De onde vem esse interesse coletivo?

    KV |

    Parece horrível dizer isso, mas obviamente virou moda. Muitos sentem que precisam de algum tipo de identidade, de lugares aos quais possam pertencer. Uma religião ou partido político não são mais suficientes. Pareço uma idosa falando esse tipo de coisa, mas as redes sociais também fazem com que as pessoas olhem muito para dentro de si. Elas buscam mais novidades sobre si mesmas do que sobre o mundo lá fora. Quando acordam, a primeira coisa que fazem não é ler um jornal, mas checar quem deu like na foto de seu gatinho. É uma atividade muito interna e também profundamente perversa, especialmente os mecanismos que incentivam esse modo de vida. As pessoas encaram como uma maneira de parecer interessantes, mas às vezes se torna absurdo, e há coisas importantes que ficam soterradas em meio a isso. Existem movimentos e conversas relevantes hoje sobre racismo e sexismo, num momento em que reavaliamos nossa história, mas elas vêm acompanhadas de um monte de besteira. Tudo bem, esse talvez seja o preço a pagar. No sentido político, a obsessão com a identidade pode ser problemática, pois leva ao nacionalismo — motivo pelo qual não me interesso particularmente pela minha identidade alemã. Por outro lado, políticas identitárias são uma ferramenta importante para populações oprimidas. O espaço público vem sendo dividido de maneira diferente, e pessoas brancas, especialmente homens, estão relutantes em compartilhar esse lugar. No Brasil, por exemplo, vocês têm uma sociedade tão complexa em termos raciais.

  • G |Na sua opinião, remexer em traumas e feridas é importante?

    KV |

    É por isso que me interesso tanto pelo corpo, porque ele guarda as cicatrizes. Herda o trauma das vítimas, mas também dos perpetradores, que é passado ao longo de gerações. É um grande fardo, considerando a linguagem corporal dos alemães. Se não falar sobre o assunto, aquilo sempre vai estar lá apodrecendo sem que as pessoas tenham consciência disso. Não passamos pelo luto. Gerações de perpetradores simplesmente congelaram nesse tema, e é o papel das gerações seguintes descongelar. Minha geração se tornou muito satisfeita consigo mesma em comparação com o hedonismo da década de 1990. Achamos que agora estava tudo bem e subestimamos a resiliência de movimentos como o fascismo. Hoje vivemos nessa bagunça. Mas podemos aprender com o passado. Não vale a pena viver obcecado com o assunto, mas precisamos aceitar que esse é o lugar de onde viemos. Quando visitei campos de concentração, pensei: essa sou eu, é de onde venho. Precisamos trabalhar nisso enquanto avançamos, porque ignorar o passado é o que causa problemas hoje. O mesmo acontece com a Inglaterra, que está começando a falar sobre suas colônias. A colonização causou tanta dor. É preciso abordar o tema também num nível pessoal. Isso é o mais doloroso, não poder tornar a coisa toda abstrata. É o que tento fazer no livro, trazer esse passado para um espaço pessoal. A personagem diz: essa sou eu. Acredito que isso te torne mais humilde.

  • G |A culpa está sempre presente no discurso da protagonista. Ao mesmo tempo, como leitor, me senti culpado por ler, como se estivesse entrando na intimidade de uma pessoa. Você tinha a intenção de evocar esse desconforto?

    KV |

    A ideia é que fosse desconfortável em alguns momentos. Pude assistir a uma adaptação do texto para o teatro, na Itália, e foi incrível. Senti esse desconforto na plateia. Para mim, foi interessante, porque o livro foi publicado em muitos países e pude falar com vários leitores judeus. Do lado alemão, você costuma ter uma resposta bem vaga, do tipo “isso aconteceu e foi terrível”, mas eles não acham que se deva cutucar a ferida. Eu acredito que você deve ir aonde dói, mas o processo requer boa vontade. A não ser que façamos isso, não vamos chegar a lugar nenhum. Para a protagonista, é uma posição complexa, mas que no final acaba sendo liberadora. A partir disso, imagino que ela será uma pessoa diferente. Mesmo que continue alemã, vai ser um tipo diferente de alemã, porque foi capaz de dizer todas as coisas que achava que deveria.

  • G |É comum os leitores pensarem que o livro é sobre você? O que acha desse questionamento?

    KV |

    Sempre acho muito estranho. Houve um tempo em que não dava para ir ao cinema sem que o letreiro dissesse “baseado em fatos reais”. O que é besteira, porque a memória humana é uma coisa tão delicada, que se falsifica. As pessoas estão desesperadas por emoções. Nas próprias redes sociais, você encontra vídeos como “criança cega vê a mãe pela primeira vez”. Acho isso estranho e perturbador. Muita gente me perguntou se o livro era autobiográfico. O que mudaria se fosse? Minha resposta honesta é que nem sempre eu sei. Costumava pensar que ele estava próximo de mim, mas percebi que não está. O que você escreve contém apenas uma fração da sua vida, mas não está vivo de verdade. Acho triste que as pessoas queiram que seja real. Isso causa grandes problemas para a ficção, porque as pessoas acabam ficando decepcionadas. No livro, tem uma piada sobre um campo de concentração feito de Lego, chamado Freudenstadt. Meu editor americano entrou em contato comigo dizendo que esse campo de concentração não existia. Óbvio que não, é uma piada. Em alemão, Freudenstadt quer dizer Cidade da Alegria, o que é péssimo. Não é um lugar real. Acho que queriam tirar essa parte por conta disso, mas consegui mantê-la. Penso que muita gente não consegue se conectar com histórias de ficção. Espero que isso mude, porque não quero que a ficção seja real.

  • G |Ao longo da consulta, a personagem faz revelações sobre seu gênero. Hoje ainda é preciso coragem para olhar nosso corpo para além das definições mais binárias?

    KV |

    As pessoas acham isso incômodo. Na Inglaterra, estão procurando um novo primeiro-ministro, e as opções são desesperadoras. Fazem política dizendo coisas como: queremos garantir que sexo voltou a significar sexo biológico. Em primeiro lugar, isso é terrível. Além disso, afeta 0,73% da população. Mas parece que as pessoas querem obrigar o mundo a fazer sentido. E a questão de gênero é um truque fácil para que pareça assim. Se você tira isso delas, ficam perdidas. Não sei como é no Brasil, mas na Inglaterra temos figuras como JK Rowling, que é insana. O sistema está quebrado de muitas formas. Se você olhar para a violência que os homens cometem contra mulheres, é algo inimaginável. Temos muito a ganhar se começarmos a pensar em gênero de forma diferente. Mas as pessoas temem deixar essa última coisa escapar, algo que acreditam fazer a vida ter significado. Infelizmente, ainda não chegamos lá.

  • G |Um dos aspectos que mais geram controvérsia no livro é a atração sexual que a protagonista sente por Hitler. Por que essa questão desperta tantas reações?

    KV |

    Acredito que alguns sintam que estão sendo pegos no flagra. Esse ponto surgiu da ideia de que as pessoas são obcecadas por esse único personagem. Dizem que Hitler invadiu a Polônia ou que Putin invadiu a Ucrânia. Tecnicamente, não é verdade, porque tem muito mais gente que participou dessas invasões, são ações coletivas. Sempre que existe uma adoração por uma religião ou ditador, acredito que haja um elemento sexual. Existe uma trilogia no cinema austríaco chamada “Paraíso”. Nela, tem uma cena em que uma mulher se masturba com um crucifixo. Achei esse um momento tão verdadeiro. É um pouco o que as pessoas fazem com a religião. E, se há um ditador, os apoiadores também fazem isso. Mas essas coisas deixam as pessoas desconfortáveis, porque elas se escondem por trás disso e agora se sentem descobertas. Se você for a uma livraria, vai encontrar prateleiras e prateleiras de livros sobre Hitler. O que eu quis foi cutucar um pouco esse leão.