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Mariana Simonetti

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Reportagem

Autoconhecimento e saúde mental no trabalho

Discussões sobre vida profissional e autoconhecimento são cada vez mais frequentes no mundo corporativo. Especialistas comentam a relação entre um e outro

Manuela Stelzer 14 de Agosto de 2022

Autoconhecimento e saúde mental no trabalho

Manuela Stelzer 14 de Agosto de 2022
Mariana Simonetti

Discussões sobre vida profissional e autoconhecimento são cada vez mais frequentes no mundo corporativo. Especialistas comentam a relação entre um e outro

O discurso do autoconhecimento e da saúde mental vem, pouco a pouco, inundando as redes sociais, as conversas de bar, as salas de terapia – e até as empresas. Desde que o burnout foi considerado pela OMS como um problema de saúde ligado ao trabalho, a demanda por programas de bem-estar no mundo corporativo deu um salto. E o autoconhecimento parece ser uma das ferramentas para cultivar bons relacionamentos profissionais e manter a harmonia nesses espaços.

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Ainda que tenha feito aparições importantes na mídia e pareça bem disseminado, o debate da saúde mental no trabalho é, muitas vezes, superficial. “Até ontem, falávamos sobre equilíbrio entre vida profissional e pessoal, como se fosse possível lidar com essas duas esferas de formas distintas, como se fôssemos máquinas”, explica a professora e psicóloga Mariana Holanda, ao lembrar também da série “Ruptura” (2022), justamente com esta temática. “O debate é mais profundo. A fórmula não é simplesmente aumentar o salário, promover happy hour, dar produtos com desconto e não falar de saúde mental e autoconhecimento.”

O trabalho constrói o autoconhecimento. É partir dos desafios de um ofício e conforme eu respondo a eles que me conheço

Uma especialista no assunto, a americana Tasha Eurich, também autora do livro “Insight” (Currency, 2018), investigou de que maneira a consciência sobre si mesmo e sobre como outras pessoas te enxergam é um recurso fundamental para tomar decisões e ter uma alta performance profissional. Ainda que o título simpatize com o gênero da autoajuda, não deixa de demonstrar a forte conexão entre autoconhecimento e trabalho.

Especialistas ouvidos por Gama explicam e comentam essa relação, além dos cuidados que devem ser tomados quando acredita-se que a fórmula para um ambiente corporativo saudável é, unicamente, o autoconhecimento dos trabalhadores.

Um não vive sem o outro

“O trabalho constrói o autoconhecimento. É partir dos desafios de um ofício e conforme eu respondo a eles que me conheço e me produzo”, explica a professora titular da Faculdade de Medicina da USP e especialista em saúde mental e trabalho, Selma Lancman. Ela entende que as duas coisas são indissociáveis, e não dá para pensar em um sem o outro. “É uma questão de constituição psíquica e identitária.”

De acordo com Lancman, “se tenho um trabalho que me permite pensar, também vou refletir sobre meu limite comigo mesma”. Mas se o ofício em questão “tira essa capacidade de mim porque entende que tempo é sinônimo de trabalho, que sou paga para fazer e não pensar, não tem autoconhecimento que sobreviva”. Pessoas e trabalho, na sua opinião, caminham juntos e não devem ser pensados em caixas separadas.

Para Mariana Holanda, que também é especialista em saúde mental organizacional, se conhecer é a chave para a própria independência: “É entender o que você quer, como, quais seus limites. Tem a ver com potência”. E como Lancman, ela enxerga autoconhecimento e trabalho como indissociáveis. “Os ambientes corporativos são recortes da sociedade. Muitas vezes, o que você vive do lado de fora, vive dentro também.”

Sociedade individualista, trabalho cooperativo

Em qualquer profissão, há o trabalho prescrito, o que idealmente cada funcionário deve fazer, suas tarefas e funções, e o real, que é o que de fato acontece durante esses afazeres. Um dificilmente vai coincidir com o outro, e é justamente essa discrepância que leva ao processo de autoconhecimento, como explica Selma Lancman. “É aqui que começa o problema: as empresas não fornecem ferramentas para administrar o trabalho real, não colocam essa diferença entre o real e o prescrito como parte da organização do trabalho.”

Os ambientes corporativos são recortes da sociedade. O que você vive do lado de fora, vive dentro também

A avaliação, ainda por cima, é baseada em números, metas e produtividade. “Mas isso é comparativo. Se um funcionário vendeu 10 produtos e outro 15, a empresa deve se perguntar sobre a diferença de recursos e condições de cada trabalhador.” Segundo Lancman, acredita-se que a competitividade é o que mantém as pessoas menos acomodadas, mais interativas e empenhadas. “Há essa teoria do estresse positivo, ou seja, gero o estresse porque ele induz a produzir mais. Mas se passar de um valor hipotético, começa a fazer mal.” E questiona: “Mas que valor é esse? É um tanto comum para todos? Assim, tratamos como se todos realizassem as tarefas no mesmo período de tempo e do mesmo jeito”.

A especialista acredita que o mais importante, no ambiente corporativo, é que as empresas abram espaços de reflexão – “que é coletivo, e não individual”. Dessa forma, diferentes perfis de trabalhadores podem conversar, trocar experiências e aprender estratégias, o que, invariavelmente, é uma porta de entrada para o autoconhecimento. “Esses espaços não devem ser considerados perda de tempo de produção e realização de tarefas.”

O buraco é mais embaixo

“Óbvio que se conhecer faz com que você entenda seus limites e evite chegar em uma crise como o burnout”, afirma a psicóloga Mariana Holanda. “Mas não dá para colocar essa responsabilidade só no indivíduo.” Até porque a legislação prevê como função do empregador evitar o adoecimento dos funcionários. A especialista explica que saúde mental é um conceito amplo, com diferentes variáveis, como estrutura familiar, formação escolar, histórico de relacionamentos. E que é difícil “imaginar ambientes de trabalho mais cooperativos, sendo que temos um sistema educacional tão competitivo e individualista”. Para ela, a questão é mais estrutural, e o assunto da saúde mental também é político.

“Ainda temos atitudes, recursos, símbolos dentros das organizações que remetem ao fordismo, ao taylorismo, e olha quantos anos se passaram”, relembra. “É uma barreira profunda, e como todo bom início, muita gente ainda investe nisso como propaganda.” Segundo ela, para que uma mudança aconteça, vai ser necessário que as lideranças se aprofundem em si mesmas, “ou vamos continuar enxugando gelo”.

Selma Lancman segue a mesma linha: “Se a empresa coloca essa questão [da sáude mental] nas costas do funcionário, pouco importa as condições de trabalho, as formas de avaliação, a pressão. O problema vira o quanto o indivíduo se conhece e se equilibra, embora a empresa leve ele ao desequilíbrio”. Ela diz que a mudança é conjunta: empresas que agem e trazem soluções e trabalhadores atentos e conscientes. Dessa maneira o autoconhecimento não se torna apenas um peso extra entre mil outras responsabilidades. “Além de me informar, trabalhar, entregar resultados, ter vida pessoal, tenho que me conhecer. E se não fizer, a culpa é minha. Que horas no seu dia você tem para isso?”