Por que as mães estão tão cansadas?
Icone para abrir
Ilustração de Isabela Durão

2

Reportagem

O direito ao luto materno

Mães não têm tempo para se despedir de seus bebês em hospitais e sentem seu luto invalidado; nova política busca mudar esse cenário

Leonardo Neiva 11 de Maio de 2025

O direito ao luto materno

Leonardo Neiva 11 de Maio de 2025
Ilustração de Isabela Durão

Mães não têm tempo para se despedir de seus bebês em hospitais e sentem seu luto invalidado; nova política busca mudar esse cenário

Foi durante um ultrassom, em uma consulta de rotina, que a arquiteta e galerista paulistana Fernanda Resstom, 38, recebeu a notícia: seu filho Lucca, então com 36 semanas de gestação, tinha morrido dentro do útero. Até então, a gravidez corria com tranquilidade. A única diferença é que, nos últimos dias, ela não sentia mais o bebê chutando antes de dormir. “Eu não estranhei. Pensei: às vezes é porque está no final da gestação, ou ele está dormindo. Não imaginei que tivesse acontecido alguma coisa.”

Para Resstom, fundadora da Central Galeria, em São Paulo, o início do luto incluiu entender que precisaria fazer o parto de um bebê que não estava mais vivo. Até por isso, não teve tempo para processar de primeira o que estava acontecendo. “Foi tudo muito rápido”, lembra. A sorte foi ter acompanhado durante a gestação notícias e conteúdos que ajudaram a guiá-la nesse momento.

“Foi um parto triste, mas ao mesmo tempo teve momentos muito lindos. Segurar meu filho no colo… Tem um vídeo meu beijando ele que eu amo assistir”, conta a galerista. As imagens que registrou após o parto da criança, que nasceu com o cordão umbilical enrolado no pescoço, foram importantes para o processo de luto que enfrentou. “Você começa a se questionar várias coisas. Será que eu dei amor suficiente? E esse vídeo me ajudou muito porque, quando eu assisto, é nítido que é a demonstração mais pura de amor.”

A mãe chegou a apresentar o filho para os familiares próximos. “Tem foto minha, do meu marido, do meu pai segurando o Lucca”, conta. Também passou o máximo de tempo que pôde com o bebê no quarto até que a equipe do hospital indicasse a necessidade de se despedir. “São registros importantes. Teve algum momento nesse processo todo em que eu entendi que queria honrar a vida do Lucca, como se ele estivesse vivo.”

Imagens como essas ajudam muitas mães de crianças natimortas a lidar com o luto. Tanto que já existem mecanismos capazes de dar às famílias o tempo necessário para a despedida: um berço refrigerado que preserva o corpo do bebê por vários dias, durante os quais os pais podem segurá-lo no colo livremente e tirar fotos. Mas o aparelho ainda tem disponibilidade bastante restrita no Brasil.

Embora afirme que tudo correu bem, Resstom se surpreendeu depois ao descobrir que o hospital particular onde ficou, um dos mais conceituados da capital paulista, não tinha protocolo para casos como o seu. Na verdade, ainda são poucas as maternidades no país com regras de acolhimento definidas para famílias que perderam seus bebês durante ou pouco após a gestação.

Foi um parto triste, mas ao mesmo tempo teve momentos muito lindos. Segurar meu filho no colo

Mas esse cenário pode mudar em breve. Em abril, o Senado aprovou uma política voltada para o luto materno e parental, que aguarda sanção presidencial. O projeto deve garantir acolhimento humanizado da mãe e dos familiares em hospitais públicos e privados. Além do atendimento físico e psicológico, a nova política indica o treinamento de profissionais, campanhas de conscientização, exames para identificar a causa da morte e acompanhamento específico numa segunda gestação.

“Precisava ter um projeto de lei para cobrar das maternidades, das unidades de atendimento, do poder público, ações específicas para evitar potenciar esse sofrimento, que já é tão grave”, afirma a Gama a senadora Augusta Brito (PT-CE), relatora da proposta. Para ela, a nova política ajuda a fortalecer o debate sobre o tema, “chamando a atenção da sociedade para uma demanda que estava um pouco adormecida.”

Uma série de violências

Além do acompanhamento psicológico, segundo Brito, a política engloba ações básicas que podem fazer diferença nos primeiros momentos após a perda. Por exemplo, evitar que os pais permaneçam num ambiente com outras mães e seus bebês recém-nascidos. “Para não potencializar a dor de ver aquela criança com a mãe, e ela sem poder fazer o que tanto esperou.”

Um dos muitos cuidados que a produtora cultural Nana de Carvalho, 41, não recebeu quando perdeu o filho Caio já em trabalho de parto. No hospital do SUS que a atendeu em Salvador, em 2022, ela conta que o médico deu pouca importância a um quadro de pressão alta e ignorou seus constantes pedidos para checar os batimentos cardíacos da criança. Após horas de espera, quando um profissional finalmente veio fazer a medição, não encontrou os batimentos. Só aí ela foi levada para fazer uma cesárea de emergência.

“Eu seguro o braço do médico e digo: Tem chance do meu filho nascer vivo? Porque, a essa altura, já estava há sete horas sem medir os batimentos. E ele responde: Nós vamos fazer o possível.” Foi a irmã de Carvalho, ainda na sala de cirurgia, quem deu a notícia de que a criança havia nascido morta. “Eu tinha saído de casa linda, esplendorosa, com a roupa de maternidade. Quando cheguei lá, os batimentos cardíacos e tudo mais ainda estava bem.”

A produtora pôde permanecer apenas um tempo bem restrito com o bebê. “Eu só consegui ver o rostinho e segurar ele. Fiquei cinco minutos com ele nos braços.” Não conseguiu nem tirar uma foto da criança, registro que só teve mais tarde, no momento do enterro. “No hospital não me falaram sobre isso, e lembro de ter saído da maternidade arrasada, achando que logo iria esquecer o rostinho dele.”

Acompanhada pelo pai, Carvalho foi levada para uma sala com outras mães em trabalho de parto ou segurando seus bebês no colo. “Olho para o meu pai e digo: pai, eu não quero ficar aqui.” No fim, ela acabou sendo transferida para outro lugar: um quarto com uma mulher grávida, onde ainda conseguia ouvir o barulho de outras mães com seus filhos recém-nascidos, em salas próximas.

“Hoje, vejo que foi uma série de violências psicológicas e negligências”, conta Carvalho, que foi aconselhada por advogados a não processar o médico nem o hospital. “Foi muito traumático. Estou tomando antidepressivo até hoje e fazendo terapia.”

A culpa

O tema do luto parental está em voga até nas novelas. Em “Dona de Mim”, novo folhetim das 19h na Globo, a protagonista Leona, vivida por Clara Moneke, perde a filha no sexto mês de gestação. A morte é acompanhada por um luto profundo, que leva a personagem a abandonar a faculdade, cancelar o casamento e se afundar em dívidas.

Embora seja impossível medir essa dor, que é bastante particular, a psicóloga Mariana Clark, especialista no tema, afirma que a perda de um filho é uma das formas mais intensas de enfrentar o luto. “Ele é caracterizado por uma dor muito prolongada, porque vai contra a ordem natural da vida. Então gera muitas implicações emocionais, traz sentimentos de culpa, de muita impotência e injustiça”, afirma.

Apesar de não ter justificativa racional, a autorresponsabilização ocorre com frequência. Resstom sentiu esse peso após descobrir a morte do filho. “Naquele primeiro momento, você fala: nossa, o que que eu fiz? Como não percebi? Por que não corri para o hospital antes?” Mais tarde, entendeu que, mesmo se tivesse percebido antes, não haveria tempo para salvar a vida de Lucca.

“Vivi os dias mais difíceis da minha vida. Eu senti cada chutinho, eu conversei com a barriga, eu idealizei e sonhei tantas coisas lindas pra gente”, escreveu a cantora Lexa em fevereiro nas suas redes sociais após perder a filha Sofia, que morreu três dias após um parto prematuro. “Às vezes, a gente quer se culpar de alguma maneira, mas eu paro e fico pensando: não tinha mais o que fazer”, falou ao Fantástico a artista, que correu risco de vida devido às complicações da gestação.

Além das implicações emocionais, os pais também podem sofrer impactos físicos no período do luto, como alterações no sono, falta de apetite, imunidade baixa e um risco maior de doenças cardiovasculares e crônicas, aponta a psicóloga. Todo esse quadro tem efeitos claros, em especial no cotidiano da mãe, como uma redução do foco e do desempenho.

Terapia do silêncio

Outras possíveis consequências, diz Clark, são essencialmente sociais: conflitos conjugais, porque cada um vive o luto de forma diferente, e também um certo isolamento em relação a amigos e familiares. “As pessoas ficam com medo de comentar com o casal, porque pensam que vão piorar a situação”, cita a especialista. “Esse silêncio é muito mais grave para a pessoa que está enlutada do que tentar se aproximar para trazer algum conforto.”

Por outro lado, é comum que a mãe em luto escute frases como “você é tão jovem, ainda vai poder ter outro filho” ou “pelo menos ele não sofreu”, exemplifica a psicóloga. São palavras que, segundo ela, ampliam o sentimento de desconforto e inadequação social, tornando invisível o sofrimento real dessas mães. “A negação e a indiferença dessas experiências são muito destrutivas, porque invalidam e desaprovam o que essas pessoas sentem.”

Carvalho, por exemplo, precisou lidar com falas invasivas e dolorosas já na maternidade. “Lá, as pessoas diziam: foi melhor assim. Ao mesmo tempo, funcionários do hospital vinham falar que, se isso aconteceu, era a vontade de Deus”, lembra a produtora. “Falei: eu não quero ouvir pregação, por favor.”

Clark afirma que essas são práticas típicas de uma sociedade que não tolera a tristeza e nem sempre reconhece esse luto como a perda efetiva de um filho. O despreparo de muitos hospitais para realizar os devidos rituais de despedida da criança, como no caso da produtora, também nega a muitos pais o direito de viver o luto de forma adequada. “É preciso reconhecer que essa é uma perda real e muito significativa, mesmo que tenha sido uma gravidez breve”, reforça a psicóloga.

Vivi os dias mais difíceis da minha vida. Eu senti cada chutinho, eu conversei com a barriga, eu idealizei e sonhei tantas coisas lindas pra gente

Questões da lei

A construção de uma política de acolhimento sobre o tema passa pela humanização de todos os processos que ocorrem após a perda do bebê, na visão de Lígia Aquino, fundadora do Instituto do Luto Parental. A organização, junto com outras ligadas à causa, trabalhou ao longo dos últimos anos ao lado do Ministério da Saúde em uma proposta para essa política, que foi incluída no texto final aprovado no Congresso.

Aquino fundou o instituto em 2018 depois de perder a primeira filha com 39 semanas de gestação. Hoje, ela busca impedir que outras famílias enfrentem as mesmas barreiras com que precisou lidar após a perda. “O que eu passei ali foram diversas camadas de violência, que tornaram ainda maior o trauma do luto.”

Ela se refere a questões cruciais nos primeiros momentos do luto, como a possibilidade de acompanhar o sepultamento do bebê. “Um pilar nosso é o atendimento de psicoterapia e o acolhimento psicológico, escutar o que a família precisa. Isso traz um contorno para a questão emocional.”

O passo mais importante após a sanção dessa política, diz Aquino, é garantir o cumprimento da lei. Para reforçar essa necessidade, o instituto elaborou uma cartilha de direitos, em parceria com o coletivo de luto gestacional Casa Manacá, de Minas Gerais, que deve ser distribuída em maternidades do SUS. Além disso, vem realizando uma formação em humanização do luto voltada para profissionais de saúde em maternidades públicas, e que já está em sua quarta turma — três delas em São Paulo e uma em Juazeiro do Norte (CE). A próxima deve acontecer em Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte da capital paulista.

No curso, a organização também distribui caixas de memórias para serem entregues às famílias, onde elas podem guardar objetos e lembranças da criança. “A gente precisa trabalhar em vários setores para que não seja mais uma lei que não é cumprida, ou então em que a família nem sabe que tem esse direito.”

Esse é o principal desafio das autoridades, segundo a advogada Jordana de Carvalho, mestre em psicologia e membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). A proposta, diz Carvalho, é especialmente importante para famílias mais pobres, sem recursos inclusive para investigar os motivos daquela perda. “Ela perde o filho e fica com aquela grande interrogação”, acrescenta. “Isso dá uma materialidade à perda. É muito mais fácil passar pela dor e pelo sofrimento quando a gente consegue entender minimamente o que aconteceu.”

Segundo a advogada, a lei até então não garantia nem o direito a um acompanhante durante o parto da criança natimorta. Até as regras para registro desse bebê só foram definidas oficialmente em 2023. O fato de o projeto atender o círculo familiar em torno da mãe, na visão da especialista, é uma de suas principais virtudes. “Nas histórias parentais que envolvem luto, os pares são muito atingidos. Seja o pai ou um irmão mais velho que, com toda aquela expectativa, vê um irmãozinho que não chega.”

Trabalho e informação

O luto pela perda de um filho pode impactar várias áreas da vida, como o trabalho. Hoje, no caso do parto de uma criança natimorta, a lei estabelece uma licença de 120 dias de afastamento do trabalho para a mãe — mesmo período de um parto tradicional. Para o pai, são os mesmos cinco dias corridos da licença paternidade — mas que não valem em caso de aborto, por exemplo.

No entanto, ainda são poucas as empresas com uma política clara de luto parental, como aponta Michelle Terni, cofundadora da organização Filhos no Currículo, que promove a construção de culturas de cuidado parentais junto às empresas. “Na prática, o afastamento ou qualquer tipo de suporte costuma depender da sensibilidade da liderança”, afirma.

Com exceção de algumas poucas que oferecem atenção continuada a mães e pais, ela afirma que muitas pessoas que passaram por perdas gestacionais voltam ao batente como se nada tivesse acontecido. “Isso não é aceitável — e deixa marcas profundas. O suporte precisa ser estruturado”, afirma Terni, para quem o mínimo que uma empresa deve oferecer, além de um tempo digno de afastamento, é o acolhimento sem julgamento, escuta ativa e sigilo.

A advogada trabalhista Bianca Bomfim Carelli complementa que a legislação atual ainda deixa lacunas. Por exemplo, “se a perda gestacional ocorre no início da gestação, a profissional tem direito ao afastamento de apenas duas semanas”, afirma.

No caso de Fernanda Resstom, que é dona de sua empresa, ela não chegou a tirar licença maternidade, mas levou um tempo para voltar. “Eu lembro de sair do carro e chegar no meu trabalho já chorando”, conta. Hoje, está grávida novamente — no momento da entrevista, de nove meses. “Deve nascer a qualquer momento”, alerta.

Segundo a galerista, a segunda gestação foi bem diferente da primeira. “Eu acordo de madrugada para sentir o Martin chutar. Estou muito mais cautelosa, tenho feito todos os exames que quero.” Também diferente da gravidez de Lucca, em que não sentiu medo, ela conta que desta vez está “o tempo todo com o pé atrás”.

Hoje, Resstom fala abertamente sobre sua história, como forma de dar a outras mães informações que foram importantes para ela nesse momento de perda. “É claro, eu não espero que ninguém passe pelo que eu passei, porque é a pior dor do mundo. Mas tem algumas coisas na vida sobre as quais a gente não tem controle. E, para mim, foi muito importante ter lido e escutado sobre tudo isso.”

Um assunto a cada sete dias