Coluna da Winnie Bueno --O luto e a luta das mães negras — Gama Revista
COLUNA

Winnie Bueno

O luto e a luta das mães negras

Eu não sou mãe. Não me recordo, mas se algum dia tive o desejo de ser, esse desejo foi soterrado a cada criança negra que some, que morre, que é violentada  

 

21 de Junho de 2021

Neste 2 de junho completou-se um ano da morte de Miguel Santana, filho de Mirtes Souza. Miguel era um menino de 5 anos e caiu do nono andar do prédio em que sua mãe trabalhava como doméstica. Miguel estava sob o cuidado da empregadora de Mirtes, Sari Corte Real, mulher branca e ex-primeira-dama da cidade de Tamandaré. Um ano depois, Mirtes precisou transformar seu luto em luta e, como ela, milhares de mães negras precisaram fazer o mesmo.

Os filhos e filhas de milhares de mães negras são assassinados país afora cotidianamente. Há uma espécie de naturalização nessas mortes e uma eterna tentativa de culpabilização das mães. Mesmo no sistema de justiça, muitas vezes essas mães são lidas como negligentes, ausentes, mães que não realizam a maternidade conforme os padrões definidos pela lógica da feminilidade branca.

Há uma espécie de naturalização nessas mortes e uma eterna tentativa de culpabilização das mães

Mães negras historicamente têm seu direito à maternidade rompido de várias formas. Mas, indiscutivelmente, não há forma mais violenta de roubar o direito à maternidade de uma mãe do que matando seu filho. O assassinato de crianças negras por patrões, senhores e pelo Estado é um trauma histórico e segue operando na contemporaneidade. A angústia de nossas ancestrais, que tinham sua maternidade destruída pelas lógicas escravocratas, é presença concreta nas mães negras no agora.

Eu não sou mãe. Não me recordo, mas se algum dia tive o desejo de ser, esse desejo foi soterrado a cada criança negra que some, que morre, que é violentada. A cada vez que se naturaliza a morte de crianças negras e que mães negras precisam transformar o luto em luta, me recordo que a maternidade de mulheres negras é profundamente atravessada pelo racismo e pelo sexismo. Não é mais possível ignorar a realidade sobre a experiência da maternidade para mulheres negras. O romance da pureza e da proteção das mães nunca esteve disponível para nós.

As imagens de controle destinadas a criminalizar a maternidade de mulheres negras têm contornos de classe. A maternidade de mulheres negras trabalhadoras é especialmente vulnerabilizada, o caso de Mirtes deixa isso evidente. Quando a patroa de Mirtes negligenciou o cuidado de seu filho para que ela desempenhasse o cuidado do cachorro da dona, fica latente o que pensam as classes abastadas da maternidade e da vida de pessoas negras. Para os detentores do poder, o cuidado de crianças negras têm menos importância que o cuidado de animais. Essa também é uma potente forma de animalização dos corpos negros. Não obstante, a imagem de controle da mãe forte e guerreira também desempenha um papel importante na manutenção da negligência
social com crianças negras. A romantização dos esforços que mães negras precisam ativar para cuidar de seus filhos também atua na naturalização da inexistência de equipamentos públicos adequados para o cuidado de crianças negras, como creches e escolas de educação infantil em tempo integral.

Mirtes não teve a oportunidade de, durante um dos momentos mais críticos da pandemia de covid-19, estar em casa com seu filho como muitas mães brancas de classe média fizeram. A ineficácia de programas de bem-estar social destinados à maternidade de mulheres negras e trabalhadoras é cúmplice do crime que levou o pequeno Miguel dos braços de Mirtes. A total e completa irresponsabilidade de Sari com o cuidado de Miguel é uma forma explícita e cruel do cotidiano de mulheres negras trabalhadoras. A sociedade evidencia que seus filhos valem menos que os filhos da elite. O caso do desaparecimento dos meninos de Belford Roxo é outro exemplo evidente do que significa a dura necessidade de luta desempenhada por mães negras, em busca da humanidade de seus filhos. Outro triste caso, é o de Kathlen Romeu, jovem negra e grávida, que no último dia 8 de junho foi morta em mais uma ação criminosa da polícia durante a pandemia. Kathlen havia anunciado a gravidez recentemente em suas redes sociais e era visível sua alegria com o novo momento da sua vida. Dentro disso, Kathlen não é um caso isolado. Desde 2017, 15 mulheres grávidas foram baleadas na Região Metropolitana do Rio, segundo dados do Instituto Fogo Cruzado. Conforme a ONG Rio de Paz, 10 bebês foram baleados dentro da barriga de suas mães nos últimos 5 anos. Essa é mais uma faceta cruel do genocído, a de impedir que filhos de mães negras sequer nasçam, matando nossas esperanças de futuro desde o ventre.

Mães negras não deveriam precisar ser fortes, mães negras não deveriam precisar lutar por justiça pela vida de seus filhos

As imagens de controle articuladas a partir do estereótipo da mãe negra negligente, má, descuidada, surgiram no contexto estadunidense no momento em que as crianças e jovens negros se tornaram dispensáveis. Simplificando, na era pós-direitos civis, as crianças negras pobres tornaram-se supérfluas como trabalhadoras. Sob a escravidão e a segregação de Jim Crow no sul rural, a necessidade de mão de obra barata e não qualificada e a impotência política dos afro-americanos fomentaram políticas populacionais que incentivaram as mulheres negras a ter muitos filhos. Uma vez que os próprios afro-americanos absorveram os custos associados à criação dos filhos, uma população negra numerosa, desprivilegiada e empobrecida correspondeu ao interesse percebido das elites. As crianças negras custam pouco aos empregadores porque as crianças realizavam trabalho não qualificado e não eram elegíveis para os benefícios de bem-estar social existentes. É também a partir da ideia de que crianças negras são dispensáveis e pouco importantes que há mais de seis meses aguarda-se respostas sobre o paradeiro dos três meninos negros desaparecidos em Belford Roxo, cidade da baixada fluminense. A morosidade das investigações é uma forma de o sistema de justiça dizer em alto e bom som que crianças e jovens negros são
descartáveis.

Mães negras não deveriam precisar ser fortes, mães negras não deveriam precisar lutar por justiça pela vida de seus filhos, mães negras não deveriam perder noites de sono pensando nos perigos que seus filhos e filhas correm em uma sociedade extremamente racista como a sociedade brasileira. Nenhuma mãe deveria precisar mobilizar seu luto em luta. Mirtes decidiu cursar direito para lutar por justiça para Miguel e para que todas as mães tenham garantido o seu direito de ver seus filhos crescerem em segurança. A luta de Mirtes é por ela, por Miguel, mas também para que esse cenário de negligência e violência para mães e filhos negros cessem. A nós cabe lutar com Mirtes e com todas as mães negras desse país.

Winnie Bueno Winnie Bueno é iyalorixá, pesquisadora e escritora daquelas que gostam muito de colocar em primeira pessoa sua visão do mundo e da sociedade. É criadora da Winnieteca, um projeto de distribuição de livros para pessoas negras

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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