Por que as mães estão tão cansadas?
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Ilustração de Isabela Durão

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Reportagem

A mãe Odete Roitman

Na nova versão de “Vale Tudo”, a personagem reaparece menos vilã com os filhos. Será que ela mudou ou hoje as mães são vistas com menos julgamento

Ana Elisa Faria 11 de Maio de 2025

A mãe Odete Roitman

Ana Elisa Faria 11 de Maio de 2025
Ilustração de Isabela Durão

Na nova versão de “Vale Tudo”, a personagem reaparece menos vilã com os filhos. Será que ela mudou ou hoje as mães são vistas com menos julgamento

Ela entra em cena pomposa, implacável, com indiferença no olhar e palavras cortantes. Reprova os filhos, exige perfeição, desdenha de fraquezas. Em 1988, quando “Vale Tudo” foi ao ar pela primeira vez, a empresária Odete Roitman (interpretada na época por Beatriz Segall) se tornou um ícone da vilania da teledramaturgia nacional, e também o retrato de um tipo materno temido e reconhecível: o da mãe crítica, autoritária e controladora.

Na nova versão da novela, atualizada para o Brasil de 2025, é Debora Bloch quem dá vida à personagem — menos feroz nas falas, com preconceitos suavizados, mas ainda dura nas atitudes. Mesmo assim, o público não consegue odiá-la de cara como odiou a vilã das vilãs de 37 anos atrás. Se antes aquela mãe durona chocava, hoje ela é recebida pelo telespectador com um pouco mais de empatia.

Será que foi Odete que mudou tanto? Ou fomos nós que aprendemos a olhar as mães de outra forma?

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De lá para cá, a sociedade transformou a maneira como compreende a maternidade. A figura materna idealizada como naturalmente amorosa, abnegada e sempre disponível deu espaço à mulher que, assim como os homens, falha no cuidado com as crias, tem ambivalências, trabalha mais fora de casa e tem outras ambições.

É nesse contexto diferente que Odete Roitman ressurge, ainda símbolo da mãe megera, porém envolta por camadas de complexidade e compreensão que não existiam nos anos 1980. Há quem ainda quem a odeie muito. Só que há também quem enxergue suas atitudes com uma visão não tão simplista.

 Reprodução/TV Globo

Por que as mães são mais vilanizadas?

Noveleira, a psicóloga e psicanalista Fê Lopes inicia a conversa com uma ponderação. Odete Roitman é uma grande vilã. Ponto. Ela lembra, no entanto, que a construção da autoestima e da autonomia dos filhos não deve depender exclusivamente da figura materna. “Ao pensar só na mãe, reforçamos um estereótipo de que essa mulher é a única responsável por formar, criar, educar e garantir a felicidade e o bem-estar das crianças”, diz.

A profissional comenta que essas obrigações não devem ser colocadas apenas na lista de responsabilidades das mães, pois a parentalidade precisa ser pensada como um cuidado coletivo que envolve tanto as instâncias sociais, garantindo direitos, quanto os demais cuidadores, sejam pais, avós e a rede de apoio no geral.

“É muito fácil odiar uma mãe. Dentro e fora da novela, gostamos de botar tudo na conta da mãe, o que é um problema. Como se ela fosse a única responsável pelo sucesso ou pelo fracasso emocional dos filhos. Isso é uma violência simbólica”, afirma.

Lopes reforça que, como telespectadores, criticamos essa personagem do mal, mas não questionamos as outras pessoas que cuidam, tal como a tia Celina (Malu Galli), ou já cuidaram, como o falecido marido de Roitman. Nem pensamos na trajetória de vida da chefe da TCA. “Eu não quero desvilanizá-las, mas tudo é culpa da dona Odete. Culpar a dona Odete é fácil. Perguntar como era o seu Roitman, ninguém pergunta.”

Culpar a dona Odete é fácil. Perguntar como era o seu Roitman, ninguém pergunta

Além disso, a especialista lembra que Odete está sempre sozinha e sobrecarregada, cuidando dos negócios e fazendo girar o dinheiro que toda a família adora usufruir. “Alguns comportamentos talvez contem a história dela. Será que Odete foi cuidada por alguém? Ou será que ela entendeu que a boa mãe é a que garante o sucesso dos filhos, custe o que custar? Ao dizer o que eles têm de fazer, ela quer garantir que os filhos não serão diferentes do que ela idealizou para os dois, o que é uma das tarefas mais difíceis da parentalidade: você permitir que o outro seja o outro e não só um reflexo das suas projeções”, frisa.

Quando a mãe não acolhe, só controla

Mães controladoras e frias, como Odete Roitman, costumam ser retratadas na tevê, no cinema, no teatro e na literatura com tintas fortes, até caricaturais. Fora da ficção, porém, genitoras com essas características podem agir de formas mais sutis e silenciosas: com cobranças constantes, ausência emocional, desdém diante das emoções dos filhos, competição velada ou elogios que vêm acompanhados de uma crítica.

Fê Lopes conta que essas atitudes travam o desenvolvimento da autonomia. “Porque você está sempre andando num terreno movediço ou num campo minado. Você não sabe onde pisa, tudo pode cair ou explodir a qualquer momento.”

No caso da filha de Odete, Heleninha (Paolla Oliveira), uma artista plástica fragilizada, que vive em clínicas de reabilitação para tratar o vício em álcool, esse temor é constante. Lopes descreve a personagem como uma criança de 40 anos. “Isso é mostrado em muitas cenas: o medo que ela tem da mãe, a carinha de assustada, o pavor de errar e a sensação de que é insuficiente, mesmo quando entrega aquilo que a mãe gostaria. Ou que ela acha que a mãe gostaria. É como se a linha de chegada sempre mudasse de lugar. Ela entregou isso, mas faltou aquilo”, exemplifica.

O medo que ela [Heleninha] tem da mãe, a carinha de assustada e a sensação de insuficiência, mesmo quando entrega o que a mãe gostaria, é mostrado em muitas cenas

Já a resposta de Afonso (Humberto Carrão) é bem diferente. Enquanto Helena tenta acertar e agradar, o irmão triatleta tem certa rebeldia, bate de frente, não quer se adaptar e deseja romper com o que é esperado dele. “Ao mesmo tempo em que continua preso à mãe, porque ele não pensa em uma identidade desvinculada dela. Ele quer ser o oposto de Odete, ou seja, a mãe ainda está no centro”, analisa a terapeuta.

A psicanalista de crianças e mães Mônica Pessanha, colunista da revista Crescer, destaca que a falta de afeto e as ações rígidas e de controle extremo costumam impactar diretamente o desenvolvimento emocional, físico e mental das crias.

“Também surgem sentimentos de abandono, desconfortos, solidão e vazio, tudo decorrente dessa necessidade afetiva não atendida.” Para ela, não há muito espaço para o amor-próprio. “As crianças crescem inseguras e, devido à baixa autoestima, apresentam dificuldades em gerir emoções e de organizar afetos.”

Tem tanta mãe narcisista por aí mesmo?

“São quatro tipos de narcisismo: vulnerável, comunal, maligno e grandioso. A minha mãe é uma mistura de narcisista grandioso e maligno”, explica Afonso à namorada Solange (Alice Wegmann) em um capítulo recente de “Vale Tudo”, quando Odete tentou formar um conchavo com a nora para que o filho aceite morar na França para tocar a empresa da família de lá — e não do Brasil, “um país chinfrim”, como pensa a matriarca dos Roitman.

Apesar da patologização da personagem de Debora Bloch na trama das 21h, a psicóloga e psicanalista Fê Lopes se preocupa com a banalização do termo “mãe narcisista” na internet como um rótulo pronto para explicar qualquer tipo de conflito materno-filial.

Isso porque, de acordo com ela, esse é um diagnóstico que isola a mulher do contexto em que ela vive e transforma em sintomas em uma identidade. “Muitas vezes, é uma estratégia de sobrevivência de mulheres que foram ensinadas a ter que se apegar para conseguir sustentar a sua existência e a existência do outro.”

Conforme elucida, a psicanálise pondera sobre o narcisismo no contexto da maternidade. “Ele é necessário para a constituição subjetiva de todos. Eu preciso que a mãe olhe para aquele bebê e se envaideça: ‘Ele é tão inteligente como eu, é tão bonito como eu, é tão bom nos esportes como eu’. Ela precisa disso, o bebê precisa disso para sobreviver.”

O cenário problemático é quando a mãe percebe que o filho não vai seguir o caminho projetado por ela, e não aceita. “A gente precisa poder estar com os nossos filhos de modo que eles possam desejar coisas diferentes, sem que isso os deixe culpados ou faça com que a gente os rejeite”, sinaliza.

“O Afonso precisa poder trabalhar no Brasil [que é a vontade do personagem], e não trabalhar em Paris, por mais que isso pareça uma oferta incrível. Não é sobre o emprego, é sobre respeitar a identidade do filho, que não pode ser uma rachadura no espelho da mãe”, compara Lopes.

Crescer é aprender a impor limites, inclusive à própria mãe

Compreender certas características, entretanto, não significa aceitar abusos emocionais como normais ou permanecer em vínculos que fazem mal. Lopes enfatiza que crescer é aprender a impor limites, inclusive à própria mãe. “É sair dessa lógica bancária de que a gente está sempre devendo algo.”

Odete Roitman não pensa assim. A vilã vive falando para a prole: “Eu fiz tudo por vocês”. Mas Lopes pontua que comprar roupas, cuidar e garantir os estudos não é uma benevolência, é a função básica de pais, mães e cuidadores. “O Afonso e a Heleninha não devem nada para a Odete. Ela acha que eles devem, porém, ninguém deve nada para ninguém.”

 Reprodução/TV Globo

Tudo bem se distanciar da mãe

Muitas pessoas que viveram relações difíceis com suas mães se sentem culpadas por se afastar ou impor limites. Ficam presas ao ideal de que “mãe é sagrada”, mesmo que a realidade seja de violência simbólica, manipulação emocional ou constante sensação de inadequação.

Fê Lopes é direta: “Às vezes, é necessário cortar vínculos. Não é porque é família que não podemos cortar. Mas também dá para criar uma distância psíquica diminuindo a convivência intensa, visitando menos.” Ela garante que a chave está em rever as próprias expectativas. “O principal é desidealizar essa relação.”

Como escreveu Carol Tilkian na coluna Amor Crônico, da Folha de S.Paulo: “Não gostar da mãe é não ter a ilusão do paraíso perdido. É não ter pra quem ou pra onde voltar e, pior, punir-se por acreditar que a culpa da queda livre no mundo sem rede de afeto e proteção é sua.”

Às vezes, é necessário cortar vínculos. Não é porque é família que não podemos cortar

E quem cresceu com uma mãe difícil, à la Odete Roitman, e teme estar repetindo os mesmos padrões com os filhos? Fê Lopes diz que se perguntar sobre isso já é um sinal de ruptura. “Repensar o modo de agir é o primeiro passo para construir outros modos de existir no mundo.”

Mônica Pessanha fala sobre a autocompaixão nesse momento, que envolve reconhecer a própria dor, validar as emoções e tratar a si com cuidado e aceitação. “Isso pode ajudar essa mãe a se libertar do ciclo de autocrítica, promovendo resiliência e autoestima saudável.”

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