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Reportagem

Crianças e games: como lidar

Com o isolamento social e o avanço da tecnologia em nossa rotina, o que fazer para proteger as crianças no universo dos games

Leonardo Neiva 21 de Agosto de 2022

Crianças e games: como lidar

Com o isolamento social e o avanço da tecnologia em nossa rotina, o que fazer para proteger as crianças no universo dos games

Leonardo Neiva 21 de Agosto de 2022

Olhos vidrados na luz esbranquiçada, dedinhos voando rapidamente pela tela, a cabeça num outro mundo, repleto de frutinhas de cores vívidas, personagens estilosos e seres mágicos. Seja numa festa de família, na rua ou simplesmente ao caminhar pelos corredores de um shopping, a imagem se repete. Apesar de recomendações como a expressa pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), que desaconselha o uso de telas ao menos até os dois anos de idade, se tornou uma cena comum ver para todo lado crianças pequenas de cabeça abaixada, jogando em seus celulares ou tablets.

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Um dos principais inimigos de outros tempos, a TV hoje é o menor dos males. Segundo as regras da SBP, celulares e tablets estão na linha de frente e não devem ser vistos como brinquedos por pais ou responsáveis, muitos menos distribuídos como presentes aos pequenos. Já os games são associados à dependência, ao vício — recentemente, o distúrbio de games passou a ser considerado uma doença pela Organização Mundial de Saúde –, além de perda de sono, estresse e uma série de outros males.

Mas manter as crianças afastadas das telas é tarefa ainda mais árdua num momento em que os games online vêm se aperfeiçoando e criando mecanismos que não só as estimulam a permanecer dentro deles por várias horas como também a voltar constantemente nos dias e semanas seguintes. E recentemente houve um fator complicador: o isolamento forçado goela abaixo durante a pandemia, que obrigou pequenos por quase dois anos a ter contato até com professores e amigos somente pelas telas.

“A geração atual ficou dois anos imersa na tecnologia, então o tempo que as crianças passam usando as telas vem aumentando exponencialmente”, aponta a especialista em ciberpsicologia Andréa Jotta, da PUC-SP. Apesar de não desaprovar as recomendações da SBP — “Estar fora da tecnologia para a criança pequena é sempre melhor do que estar dentro” –, ela considera que hoje são particularmente complexas de seguir. “O manual da pediatria demorou muito para sair e é super restritivo. Se você mora no campo, onde a internet é difícil e as coisas acontecem de outra maneira, até dá para seguir. Agora, se a criança ficou esse tempo todo trancada num apartamento de 40 m² com os pais e mais três irmãos, é muito difícil deixá-la fora da tecnologia.”

Além do uso excessivo de telas, a enorme atenção dada aos games ainda pode prejudicar os jovens de outras formas. “Enquanto famílias permaneciam em casa durante a pandemia, pais não tinham que levar seus filhos à prática esportiva quatro vezes por semana”, afirmou o presidente da Associação da Indústria do Esporte e Fitness americana, Tom Cove, em entrevista ao New York Times. “Eles gostaram. E decidiram que deve haver uma opção melhor.” Essa opção, como apresentada na reportagem do jornal, são os e-sports.

Nem tanto ao céu nem tanto à terra, o ideal não é excluir ou proibir os games dentro da rotina, mas sim incentivar um equilíbrio, como aponta a psicanalista Samiza Soares. “Para evitar efeitos negativos, é importante que os pais incentivem os filhos a apostar também em outras formas de lazer, como brincar com amigos, praticar um esporte, ler um livro ou aprender a tocar um instrumento musical”, explica a especialista, que lembra que hoje os pequenos brincam menos na rua e há mais filhos únicos do que no passado, o que concorre para esse estado de coisas.

Entre 2020 e 2021, o número de crianças que não estavam interessadas em esportes físicos nos EUA saltou de 19% para 28%, segundo uma pesquisa do Programa de Esportes e Sociedade do Aspen Institute. Não à toa, quando questionado pela reportagem do Times se os personagens do game que estava jogando eram mais importantes para ele do que lendas recentes do basquete como LeBron James, o jovem David, 13, não titubeou. “Com certeza, sim, porque é com eles que tenho que jogar se quiser ganhar uma partida ou um campeonato.”

A conta chega para todos

Quando Ricardo Teperman, 43, liberou a filha de sete anos para gastar dinheiro de verdade em alguns dos seus joguinhos preferidos de celular, lá no início de 2021, foi com a recomendação expressa de não ultrapassar um limite de cento e poucos reais — valor do presente de Natal dado pelo avô. Desde que a pandemia começou, ele e a esposa acabaram cedendo às vontades da pequena, pensando no longo período de isolamento pelo qual ela teria que passar em relação a amigos e família. “Não somos favoráveis a dar celular para criança, mas também sem radicalismo. Só que na pandemia liberamos muito mais do que era praxe.” Assim, a jovem acabou adentrando por mais tempo universos como os dos jogos “Toca Life” e “PK XD”.

Alguns dias depois de liberar a compra dentro do aplicativo, o susto veio na forma de uma conta de celular de mais de R$ 4 mil. Teperman acabou descobrindo tarde demais que, uma vez que deu sua autorização, se descortinou na tela de celular da criança um mundo novo incluindo milhares de diamantes, gemas e unicórnios virtuais que custavam dinheiro de verdade. “Não fica muito claro o que custa e o que não custa, pelo menos não o suficiente para que uma criança de sete anos tenha condição de avaliar. Aí ela comprou kits de R$ 20 e R$ 30, como os que eu tinha autorizado, mas também outros de R$ 89,90, R$ 129,90, R$ 299,90 e até R$ 499,90.”

A fundadora e CEO da empresa de games infantis Explot, Luiza Guerreiro, faz críticas aos modelos de monetização de jogos digitais para crianças hoje existente no mercado. “A estratégia para ganhar dinheiro influencia a forma como os jogos são feitos”, explica a empreendedora, responsável pela criação do game “Truth and Tales“. Além da venda de produtos digitais, boa parte dos jogos se financia com a inserção de propagandas direcionadas aos pequenos. “Diferentemente dos canais infantis, que hoje têm uma regulamentação, nos jogos a publicidade ainda não é regulamentada.” Por isso, ela recomenda que todo pai e mãe verifique antes a forma como o game se mantém financeiramente, para ter certeza de que a atenção dos filhos não está sendo usada de forma indevida.

A história de Teperman, ao menos, teve um final feliz. Após passar mais de uma hora no telefone com um representante da Apple — “Saí falando ao telefone pela praça do lado de casa, porque estava tão puto que, se ficasse no escritório, ia ter uma síncope” –, a empresa deu razão ao pai indignado e concordou em cancelar os pagamentos. E a jovem nem chegou a perder os produtos que comprou digitalmente. “Eles devolvem o dinheiro porque não tem custo nenhum, é uma virtualidade”, explica. Ainda assim, o incidente deixou uma marca. “Minha filha ficou muito chateada. Por mais que a gente tenha tentado poupá-la, porque a culpa não era dela, ela percebeu que nos colocou numa saia justa que levou 15 dias para resolver. Até lá, eu podia estar com uma dívida. Hoje a gente nem toca nesse assunto com ela.”

Entre duendes e fadas

Logo de cara, a criança pode escolher as cores, o tipo de juba — que pode ser até em formato de coração — e do nariz do leão, adequadamente chamado Leo. Conforme vai acompanhando a história do rei das selvas, que se impressiona com o perfume das flores mas tem pouco tato social e uma certa dificuldade para se comunicar com outros bichos, o pequeno precisa interagir com a tela e balançar o celular para fazer com que o personagem solte seu rugido impressionante. “Muitas das mecânicas que a gente via nos jogos para crianças não eram tão fáceis para elas e podiam fazer até mal”, declara Guerreiro. Para criar o “Truth and Tales”, a Explot buscou o auxílio de médicos, pedagogos e psicólogos, com o objetivo de desenvolver dentro do jogo dinâmicas que auxiliassem o desenvolvimento cognitivo de pequenos entre cinco e dez anos.

“A criança não consegue mudar a história, mas pode brincar dentro do conto. Por exemplo, se a personagem está fazendo uma sopa, ela consegue procurar os ingredientes, mexer o caldeirão, assoprar para o fogo subir”, explica a CEO. A mecânica do game também permite extrapolar a tela do celular, incentivando atividades físicas bem reais. Na opção “Mexe-Mexe”, que é avulsa aos contos infantis, a criança imita posições baseadas nos animais das fábulas. “Avaliamos com uma fisioterapeuta que a postura em que a criança joga é muito repetitiva e cansativa. Então algumas atividades que a gente faz obrigam ela a levantar e se mexer, como no ioga ou alongamento.”

Por ser pago — a assinatura sai por R$ 19,90 ao mês –, o “Truth and Tales” dispensa propagandas e produtos compráveis. Como não há publicidade, o game, que tem controle de luz azul para reduzir os impactos aos olhos, não precisa incentivar o pequeno a ficar muito tempo em frente à tela. A própria CEO não recomenda expor a criança aos games digitais antes dos quatro anos de idade e sugere aos pais que acompanhem de perto o que os filhos estão jogando, para ter certeza de que não são inadequados para sua faixa etária — até mesmo jogos infantis mega populares, como o Roblox, podem ocultar surpresas preocupantes. A entrevista de Guerreiro, que tem 33 anos, é interrompida algumas vezes pelo choro estridente do filho, que passou boa parte da conversa em seu colo e ainda está longe da idade de se preocupar com games. Ao final, ela ensaia uma tímida comemoração: “Consegui falar segurando um bebê de 45 dias, deu certo!”

Regras e limites

No mundo de hoje, proibir a criança de jogar videogame é pouco viável e pode ser até contraproducente, na opinião dos especialistas consultados. “Jogar não é o problema. O problema é o exagero”, sentencia a psicanalista Samiza Soares. Há sim, porém, uma série de restrições recomendáveis. Enquanto crianças com dois anos ou menos não deveriam ser expostas às telinhas de forma alguma, com cinco ou seis o ideal é permitir um máximo de 40 minutos por dia, segundo Soares. Dos seis em diante, ela afirma que deve haver um limite de até duas horas, de preferência distribuídas ao longo do dia. “Com o decorrer do tempo, a criança consegue uma certa maturidade para administrar o uso das telas, mas sempre sendo monitorada por pais ou responsáveis.”

Embora não existam dados suficientes para cravar qual o impacto de jogos violentos nos usuários, a psicanalista diz que devem ser evitados no geral. Soares também afirma que passar tempo demais com os games pode afetar a vida e as habilidades sociais. De acordo com a profissional, na hora de estabelecer as regras e limites, os pais precisam ser claros, diretos e trazer à tona sempre que possível o motivo daquilo, para que o pequeno não sinta que foi vítima de uma injustiça ou arbitrariedade.

Até porque a criança não vai ser sempre criança, como lembra a professora Andréa Jotta, da PUC-SP. Portanto, se você não ensina enquanto ainda tem controle sobre ela, quando crescer e ganhar autonomia será tarde demais. “Elas ficam acordadas a noite inteira, te enganam, mentem. Entre os dez e os doze anos é que começam a fazer esse tipo de coisa. Elas têm vontade e não entendem o motivo de não fazer.” Para evitar comportamentos excessivos, o ideal é ensinar pelo exemplo, diz a especialista. Ou seja, de nada vale proibir a criança de entrar na internet se você passa o dia inteiro conectado, sem interagir ou prestar atenção nela.

O que os games ensinam

Os primeiros dez anos de infância, diz a docente, são cruciais para definir a maneira de agir do indivíduo dentro e fora dos games. Ao mesmo tempo que é importante saber se, com quem e como ela está se relacionando dentro desses ambientes, também é preciso traçar um muro alto e firme separando fantasia de realidade. “Hoje temos adolescentes que falam em suicídio porque não conseguem aguentar as frustrações da vida real. Se seu filho passa a não acreditar mais em Papai Noel entre os cinco e os sete anos de idade, ele precisa de um acompanhamento para entender que o videogame é como o Papai Noel, não faz parte da realidade”, explica. Uma tarefa hoje mais difícil do que alguns anos atrás, pois as interações nas redes ou em videochamadas já integram nossa vida diária e não são menos verdadeiras do que as presenciais.

Os games, aliás, podem ter aplicações bem positivas, como aponta o professor de letramento digital e coordenador de projetos especiais do Colégio Visconde de Porto Seguro, Francisco Tupy. Especializado no uso de videogames na educação, ele considera a hegemonia dos games uma tendência sem volta. E, se não se pode vencê-los, junte-se a eles. “Um dos principais papéis do jogo é equalizar o diálogo. Os alunos percebem que a escola não é um mundo alheio às coisas que gostam e que fazem parte da vida deles.” Um exemplo disso foi como, para chamar a atenção dos estudantes dentro do complexo contexto da pandemia, Tupy criou mundos específicos no “Minecraft” com o objetivo de apresentar o conteúdo da aula de forma mais dinâmica e interessante.

Para o professor, a visão sobre os games ainda é muito restrita e negativa, com poucos olhares para seu potencial em outras áreas. “Não é que o videogame seja bom ou ruim, mas existem análises e trabalhos que colocam seu lado positivo e negativo. O senso comum é que tira a oportunidade de ensino. Minimamente, o game tem que ser um assunto discutido.” Também falta, segundo ele, um maior interesse e preparo dos pais para estar nesse universo lado a lado com os pequenos. “A principal forma de lidar com esse mundo emergente é o diálogo e a conscientização. Se é difícil para a criança, também é para a sociedade de modo geral e especificamente para os pais.”