Jason Schreier: “O modelo de produção de videogames é insustentável” — Gama Revista
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Conversas

Jason Schreier: “O modelo de produção de videogames é insustentável”

Autor de livros que denunciam práticas abusivas na indústria de jogos eletrônicos discute o estado atual do mundo dos games

Daniel Vila Nova 21 de Agosto de 2022

Jason Schreier: “O modelo de produção de videogames é insustentável”

Daniel Vila Nova 21 de Agosto de 2022
Divulgação

Autor de livros que denunciam práticas abusivas na indústria de jogos eletrônicos discute o estado atual do mundo dos games

Poucos jogos foram tão esperados pelo público gamer quanto “Cyberpunk 2077” (2020). Anunciado em 2012 pelo estúdio polonês CD Projekt Red, a obra foi acumulando expectativas à medida que os anos iam passando. Após o sucesso estrondoso de “The Witcher 3: Wild Hunt” (2015), jogo desenvolvido pelos poloneses e considerado por muitos uma das melhores produções de videogame já feitas, os fãs estavam muito ansiosos. Os trailers anunciavam gráficos ultrarrealistas, mapas gigantescos e até mesmo a participação do ator Keanu Reeves como o personagem Johnny Silverhand.

O lançamento, que estava previsto para o começo de 2020, teve de ser adiado porque, segundo seus criadores, ainda era necessário mais tempo para polir o jogo. E então, o game foi adiado mais uma vez. E depois, mais uma vez. Os motivos listados pelo estúdio eram os mesmos de antes, os criadores pediam apenas mais alguns meses para acertarem os últimos detalhes e garantirem que o game estaria em boas condições no dia do lançamento. Em dezembro de 2020, “Cyberpunk 2077” finalmente viu a luz do dia. E o que se seguiu foi uma catástrofe.

Os jogadores que ligaram os seus consoles no dia do lançamento encontraram uma obra inacabada. A história e a jogatina até estavam ali, mas os gráficos penavam em comparação ao que lhes fora prometido. Erros e bugs infestavam a produção e, a todo momento, o jogo deixava de responder e parava de funcionar. A situação foi tão feia que a Sony retirou o game de sua loja virtual, a PlayStation Store, e reembolsou todos os jogadores que estavam insatisfeitos com a produção.

Esse é só mais um dos inúmeros casos que vem assolando a indústria dos videogames. Cada vez mais, grandes produções se deparam com calendários apertados, expectativas gigantescas e um ambiente de trabalho tóxico e explorador. Se o hobby de jogos eletrônicos é visto como uma forma de escapar da realidade por alguns, existem aqueles que encaram esse mundo com seriedade. Após o lançamento desastroso de “CyberPunk 2077”, o jornalista Jason Schreier investigou e publicou uma reportagem que explicava como as coisas deram tão errado para a desenvolvedora de jogos eletrônicos, CD Projekt Red.

Nos últimos anos, Schreier se tornou famoso por seu trabalho de jornalismo investigativo no mundo dos games. Seu primeiro livro, “Sangue, Suor e Pixels: os dramas, as vitórias e as curiosas histórias por trás dos videogames” (HarperCollins, 2018), conta as histórias de falhas e sucessos de estúdios de jogos grandes e pequenos. Já seu livro mais recente, ainda sem tradução brasileira, aborda o quão inconstante o mercado dos jogos eletrônicos pode ser e como isso afeta os desenvolvedores que trabalham na indústria.

Em “Press Reset: Ruin and Recovery in the Video Game Industry” (Grand Central Publishing, 2021), Schreier denuncia uma prática particularmente comum no mundo dos jogos — o crunch. O termo descreve uma cultura de trabalho nociva, que demanda horas extras de trabalho dos desenvolvedores de games, com jornadas que chegam a 100 horas semanais. A prática se torna particularmente comum quando a data de lançamento de um jogo se aproxima.

“Você trabalha até mais tarde porque todo mundo ao seu redor está trabalhando até mais tarde. Muitas vezes, isso sequer é declarado ou discutido. Só se torna parte da atmosfera da empresa”, diz o jornalista a Gama. Além das denúncias trabalhistas, as reportagens de Schreier também trazem o tema do assédio sexual no mundo dos games. Nos últimos anos, diversos executivos de grandes estúdios de jogos foram denunciados por comportamentos abusivos, em movimento similar ao #MeToo da indústria cinematográfica.

Engana-se quem pensa que fazer jogos de videogame é um paraíso. A indústria, que movimenta bilhões de dólares por ano, é o sonho profissional de muita gente. As condições trabalhistas, no entanto, estão longe de serem ideais. Em conversa com Gama, Schreier falou sobre o estado da indústria de jogos, a fixação por produções cada vez mais megalomaníacas, os desafios trabalhistas que o mercado enfrenta e o futuro dos videogames.

  • G |Nos últimos anos, vimos uma quantidade considerável de jogos grandes serem lançados em estado inacabado. Apesar das centenas de milhões de dólares gastos nas produções dessas obras, muitos desses títulos estão sendo publicados com problemas técnicos que chegam a estragar a experiência de um jogador. Por que isso vem acontecendo?

    Jason Schreier |

    A pandemia prejudicou a lógica de trabalho, de organização e o calendário dos estúdios de videogame. Trabalhar de casa pode ser ótimo para muitas pessoas, mas oferece uma série de dificuldades na comunicação interna e problemas técnicos na criação de um jogo. Essa é uma das principais razões pela qual vimos jogos serem lançados em estados inacabados. Além disso, os jogos estão ficando cada vez mais complexos. A cada ano que passa, eles estão maiores e mais complicados. Quanto maior o jogo, mais difícil é encontrar bugs e erros e deixá-lo em um estado funcional.

  • G |Esse modelo de produção, onde jogos estão ficando cada vez maiores, mais complexos e mais caros, é sustentável?

    JS |

    Estamos vendo sinais de que isso não é sustentável. A cada ano que passa, a expectativa por uma maior qualidade gráfica só aumenta. Ao menos é isso que as distribuidoras de jogos pensam. É claro, é possível argumentar que existem maneiras de ser bem sucedido apostando em jogos criativos, que não necessariamente são os jogos mais bonitos. Mas essa é uma conversa que a EA, a Sony, a Activision e a Microsoft não costumam ter. Fidelidade gráfica é algo que todas elas exigem em seus produtos, mas essa corrida por jogos cada vez mais bonitos não é nem um pouco sustentável. Não acredito que vamos ver um crash da indústria de jogos, mas já estamos vendo muitas empresas menores sendo compradas por companhias maiores ou fechando as portas.

  • G |A indústria de jogos nunca faturou tanto dinheiro. Porém, inúmeros estúdios de videogame estão fechando as portas ou sendo vendidos. Por que isso acontece?

    JS |

    Uma das principais razões é essa corrida por produtos maiores e melhores, logo, por projetos mais caros. Quanto mais caro for um projeto, mais cópias ele tem que vender para justificar o investimento. Quanto mais cópias você tem que vender, maior o risco de falhar e não vender tanto quanto precisa. Se isso acontecer, o que fazer? Você não tem mais dinheiro para manter o jogo. Essa é a principal razão pela qual os estúdios fecham, mas existem outras. Algumas vezes é uma decisão da empresa mãe ou às vezes é porque a companhia é administrada por pessoas que nunca produziram um videogame.

  • G |E qual é o preço dessa dinâmica de trabalho, onde tudo tem de ser maior e melhor?

    Jason Schreier |

    Chegamos em um ponto em que muitos profissionais que trabalham com jogos estão sofrendo de burnout. Meu livro mais recente, “Press Reset”, é sobre a inconstância na indústria e as condições precárias de trabalho. Muitas pessoas perderam empregos, seja porque se demitiram ou porque foram demitidas, e algumas até optaram por nunca mais trabalhar na indústria. É um ambiente que te faz acreditar ser impossível ter uma carreira saudável e duradoura, mas existe um custo humano muito alto na forma com que essa indústria opera.

  • G |O quão presente é essa prática do crunch, do trabalho excessivo, na indústria?

    JS |

    Todo mundo tem que fazer hora extra vez ou outra, e contanto que você seja pago por isso, não é nenhum problema. A questão é que em muitas companhias de videogame isso se torna algo recorrente, especialmente quando o projeto está chegando perto da data de lançamento. Quando esse comportamento se torna parte da lógica de trabalho é quando você entra em um território perigoso. Isso se torna algo que faz parte da lógica de trabalho da companhia. Enquanto companhia, você tem que trabalhar bastante para não criar esse tipo de atmosfera. Caso contrário, acaba entrando nessa cultura. É um tema muito mais complicado do que simplesmente um trabalhador fazendo hora extra.

  • G |Seja no cinema ou na música, os embates entre a visão artística e a visão mercadológica de um projeto são bem documentados. Como é essa realidade no setor de jogos?

    Jason Schreier |

    Depende muito da companhia. Em muitas delas, especialmente nas maiores, a tensão é a mesma. Quando você coloca 100 milhões de dólares em um jogo, você quer que ele seja o mais popular possível. E, para isso, vai seguir uma série de fórmulas que, na mente dos executivos, faz com que o produto seja mais apelativo para o consumidor. Eles querem jogos com um vasto mundo para ser explorado, onde você possa construir objetos e adquirir novas habilidades ao longo da jogatina. Como são esses executivos que investem no produto, eles demandam que os jogos sigam essas fórmulas, independentemente da visão artística dos criadores. Em outros casos, pode haver uma pressão para que o jogo seja finalizado o mais rápido possível. A distribuidora quer que o jogo fique pronto até o Natal, mesmo que essa data não seja viável. Esse é um dos fatores que contribui para que os jogos saiam em péssimos estados.

  • G |No último ano, uma série de denúncias sobre assédios trabalhistas, morais e sexuais afetaram grandes empresas no ramo dos videogames. Como essas denúncias mexem com a indústria?

    JS |

    Uma das maiores mudanças dos últimos anos tem sido que as pessoas estão se sentindo cada vez mais a vontade para falar e denunciar sobre os problemas que enfrentam em suas empresas. Seja nas redes sociais ou para a imprensa. Uma das formas de resolver esse problema é com transparência, criando um ambiente que acabe com essa cultura de silêncio. Não há como solucionar um problema se ninguém sabe que ele existe. Por isso, por mais doloroso que o processo possa ser, é importante falar sobre essas questões. Eu sempre me surpreendo com a coragem das pessoas que estão contando suas histórias. Acredito que a indústria melhora quando esse tipo de relato é compartilhado.

  • G |As conversas sobre abusos no ambiente de trabalho nunca foram tão comentadas entre desenvolvedores de videogames. Muitos apontam para a sindicalização como a melhor resposta para esse problema. Em que pé está esse processo? Ele pode ser benéfico para os trabalhadores?

    JS |

    Acredito que a sindicalização pode ser benéfica. Ela cria um mecanismo para você negociar com quem comanda as empresas, te permitindo ter uma voz e um assento na mesa de negociação.Eu só posso falar da situação na América do Norte, mas os desenvolvedores estão lutando para se sindicalizarem. Apesar disso, ainda não existe um movimento grande o suficiente para que essa sindicalização aconteça. Apesar de trabalhadores de grandes empresas estarem se movimentando, esse processo ainda não aconteceu em nenhuma das grandes companhias de videogame.

  • G |Você escreve reportagens que trazem denúncias sérias e complexas sobre um hobbie que é amado por muita gente. O público entende a importância do trabalho que você está fazendo? Ou eles só te enxergam como um “inimigo da diversão”?

    Jason Schreier |

    Eu sempre quis contar histórias interessantes, nunca foi o meu objetivo mudar a indústria e expor todas essas questões. Meu trabalho é entender o que está acontecendo no mundo dos videogames e informar as pessoas sobre isso. Tive a sorte de ter uma ótima recepção nas histórias que eu conto e, honestamente, não presto tanta atenção na repercussão negativa. Existem pessoas que querem saber a verdade sobre como videogames são feitos e essas pessoas são as que importam para mim. Claro, existem pessoas que só querem jogar jogos, mas eu não presto tanta atenção nisso.

  • G |Qual é o futuro da indústria de videogames? É possível pensar em um ambiente mais saudável para os trabalhadores nos próximos anos?

    JS |

    Nos últimos 10 anos, o videogame atingiu um novo público. Pessoas que antes não se interessavam pelo hobby, hoje em dia jogam. E não necessariamente em consoles ou no computador, mas muitas vezes no próprio celular. A audiência é cada vez maior e isso permite que haja uma maior uma exploração da criatividade de desenvolvedores. Em relação às condições de trabalho, eu acredito que as coisas vão melhorar. As pessoas estão falando sobre os problemas, o movimento trabalhista dentro da indústria tem crescido e muitas pessoas estão trabalhando para que esse ambiente melhore. Eu sou otimista.