Como os games fazem um profissional melhor — Gama Revista
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Mariana Simonetti

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Reportagem

Como os games podem fazer um profissional melhor

A ciência já provou que games ajudam no desenvolvimento de habilidades. Agora, empresas têm usado os jogos em seus processos seletivos e avaliações anuais, identificando competências e talentos

Cesar Gaglioni 21 de Agosto de 2022

Como os games podem fazer um profissional melhor

Cesar Gaglioni 21 de Agosto de 2022
Mariana Simonetti

A ciência já provou que games ajudam no desenvolvimento de habilidades. Agora, empresas têm usado os jogos em seus processos seletivos e avaliações anuais, identificando competências e talentos

Sete dias por semana, o ritual é o mesmo. Ela tem uma garrafa d’água ao seu alcance. Veste uma roupa confortável. Coloca um travesseiro ou almofada sob as pernas e passa de duas a três horas jogando o que for, os olhos castanhos mel focados na tela, os ouvidos ignorando o barulho do tráfego intenso de uma das avenidas mais movimentadas da capital paulista e o nariz indiferente ao cheiro da lanchonete de uma rede de fast food ao lado do prédio.

“Se eu não tivesse jogado videogame, eu não estaria aqui agora”, diz à Gama Julia Bassetto, 29, publicitária e gerente de parcerias e talentos no Instagram Brasil. Quando não está trabalhando, lendo ou brincando com suas cachorrinhas, Anna e Elsa, Julia é a fada Bramble no universo de fantasia medieval do RPG “Dungeons & Dragons” ou então Imogen Temult, uma Au’ra, raça fictícia que descende dos dragões em “Final Fantasy XIV Online”.

Os games apareceram na vida de Julia quando ela tinha quatro ou cinco anos. O primeiro vislumbre desse universo foi com um jogo da Copa do Mundo, visto no antigo computador com tela de tubo de seu avô. Depois disso vieram outros títulos. “Super Mario”, “Muppets na ilha do tesouro”, e aquele que ela considera que mudou sua relação com os games: “Assassin’s Creed”, de 2007. “Comprei um videogame por causa desse jogo”, exclama, sorrindo. É uma memória doce.

Para além de passatempos, Julia considera que os games foram decisivos em sua carreira, dando a ela habilidades como ferramentas de criatividade, capacidade de resolução de conflitos, o talento para ler a reação emocional das pessoas e a competência para tomar decisões – aptidões essenciais para alguém que ocupa o cargo dela, gerenciando parcerias estratégicas dentro de uma parte significativa do império global de Mark Zuckerberg.

“Quando estou comandando uma partida de ‘D&D’ [o apelido de ‘Dungeons & Dragons’], estou contando uma história em parceria com seis, sete pessoas, que querem fazer coisas diferentes e eu tenho que trabalhar para que elas joguem em conjunto”, diz.

Em “Dungeons & Dragons”, os jogadores vivem uma história em conjunto. Um deles assume o papel de “Mestre” – o narrador da trama – e os outros criam personagens que vão povoar e se aventurar naquele mundo. Tradicionalmente, “D&D” é jogado ao redor de uma mesa, com folhas de papel e dados. Nos últimos anos, migrou para o ambiente digital, mas manteve seu espírito original. “Em entrevistas de emprego, eu sempre faço questão de dizer que eu sou mestre em ‘D&D’”, conta Julia. “É um diferencial, em termos de habilidade, mas também é algo muito importante de quem eu sou.”

Os games podem desenvolver e aprimorar habilidades que são importantes na carreira e na vida pessoal

Apesar de anedótico, o caso de Julia não é único, e a ciência já descobriu que os games podem desenvolver e aprimorar habilidades que são importantes na carreira e na vida pessoal. A percepção já chegou aos recrutadores, que cada vez mais têm percebido que os games podem ser usados, em diferentes níveis, para se encontrar talentos.

“Com o game, podemos identificar habilidades e os valores dos candidatos”, diz a Gama Leonardo Avelar, gerente comercial da Lugar de Gente, empresa que presta serviços de RH para organizações como a Claro e o Itaú.

Nos jogos usados pelo RH, os candidatos são colocados em situações hipotéticas e devem tomar decisões. A partir delas, os recrutadores conseguem determinar a capacidade de resolução de problemas, o relacionamento interpessoal e outras competências.

“Nesses jogos, não há resposta certa. Fizemos para a Olimpíada do Rio 2016 um game para recrutar voluntários. Então dizíamos: ‘Você vê uma idosa atravessando a rua e vai ajudá-la. No mesmo momento, o ônibus da seleção brasileira passa. O que você faz? Você continua ajudando? Ou vai tirar foto com o ônibus? Com isso mapeamos se o candidato está alinhado com os valores da empresa.”

Hard skills e soft skills

“Eu comecei cedo”, explica a Gama o programador Lucas Coppio, 33, engenheiro de software na Syngenta, multinacional que já foi parte da AstraZeneca, que estampou os noticiários pela vacina contra a covid-19. Ele se ajeita na cadeira de escritório, os cabelos ondulados escorrendo pelo ombro. Está prestes a entrar na alameda das próprias memórias. “Comecei no Atari, com quatro ou cinco anos”, ele vaga os olhos pelo ambiente. Um gato mia ao fundo da conversa.

Lucas, assim como Julia, adquiriu habilidades como liderança e tomada de decisões a partir dos games. No léxico corporativo, tais competências são chamadas de soft skills. Ele, no entanto, também conseguiu adquirir as chamadas hard skills – aquelas usadas diretamente no dia a dia profissional – com os games, especialmente a partir dos jogos da empresa americana Zachtronics.

“Um que me marcou muito foi o ‘TIS-1000’”, ele endireita a coluna e sorri, empolgado, mergulhando na lembrança. “É um jogo em que você é um garoto que ganhou um computador russo do seu tio e precisa programar para descobrir o que tem dentro. É muito legal.”

Para ele, os games foram uma porta de entrada. Aliado aos estudos, ele conseguiu ocupar o cargo que ocupa hoje. “Se não fossem os games, eu ainda seria eletricista industrial. Era um emprego que eu amava, mas não me dá a mesma satisfação e retorno do meu cargo atual”, conta, com o olhar de quem acabou de contemplar a própria trajetória e se orgulhar do que viu.

Participar da narrativa de um jogo pode abrir interesses para diferentes áreas

Lucas também mantém os games como seu principal hobby. “Eu jogo sete dias por semana. Quando estou de férias, tento emendar direto 17, 18 horas de jogatina. Paro somente para almoçar, ir ao banheiro, etc.”

Leonardo Avelar, da Lugar de Gente, ressalta que os games são capazes não só de encontrar talentos no processo seletivo, mas de também auxiliar no desenvolvimento do funcionário que já foi contratado.

“Uma das formas de fazer isso é aplicar, depois de um ano da contratação, um novo jogo de tomada de decisões. A partir daí, você consegue mapear quais são as lacunas no desenvolvimento daquele profissional e tratá-lo de forma individualizada.”

“Se a Claro contrata 2 mil vendedores e depois de um ano aplica um novo jogo, ela consegue saber o que cada profissional precisa. Às vezes um profissional precisa melhorar na comunicação. Outras, nas técnicas de negociação. Com o jogo e os resultados dele, você consegue saber exatamente como prosseguir.”

Os benefícios de jogar não são limitados aos adultos. David Simkins, professor de educação no Instituto de Tecnologia de Rochester, nos EUA, é categórico: jogar te torna mais inteligente, independentemente da idade.

“Participar da narrativa de um jogo pode abrir interesses para áreas como matemática, ciência, história, cultura, ética, leitura crítica e produção midiática. Quando os jogos são jogados em um ambiente seguro e encorajador, as possibilidades para o aprendizado são incríveis.”

O próximo Lionel Messi?

Nos esportes, olheiros estão antenados no que acontece nos games. Alguns dos casos mais emblemáticos envolvem o título “Football Manager”, que coloca o jogador na posição de técnico de times de futebol. No “Football Manager”, você precisa contratar jogadores, testar estratégias e conquistar títulos, sempre pela perspectiva do técnico.

Em 2014, Ole Gunnar Solskjaer, ex-técnico do Manchester United afirmou: para ele, “Football Manager” foi responsável por seu preparo para gerenciar um dos maiores times do Reino Unido. “Aprendi muito sobre futebol com o jogo”, disse ao jornal Daily Star em 2021, quando estava de saída do time. Em seu primeiro ano como técnico, o Manchester United ganhou 14 partidas do campeonato inglês, de um total de 19 jogadas.

Para além de preparar técnicos, o “Football Manager” também foi usado para encontrar talentos. Por motivos de sigilo contratual, casos específicos não são divulgados, mas eles acontecem. Tom Markham, CEO do estúdio Sports Interactive, que desenvolve as edições anuais de “Football Manager”, conta que já foi contatado várias vezes. “Uma vez, me ligaram do Liverpool para saber se um determinado jogador se daria bem no time”, afirma ao site da Red Bull.

O “Football Manager” conta com dados detalhados de jogadores de todo o mundo. Quando um determinado atleta começa a ser muito recrutado no ambiente virtual, os olheiros sabem que o potencial existe. A ESPN, maior rede de comunicação esportiva do mundo, afirma, sem rodeios: “o ‘Football Manager’ pode nos ajudar a encontrar o próximo Lionel Messi”.

Mais alto, mais longe, mais rápido

Além de ser usado para encontrar talentos, os games também são utilizados para treinar profissionais já contratados, especialmente quando a profissão traz algum tipo de risco.

Lançado em 1982, o jogo “Flight Simulator”, da Microsoft, uma das principais ferramentas usadas para o treinamento de pilotos de avião de todos os portes. Para conseguir o brevê – a carteira de habilitação da categoria – os pilotos passam pelo menos 30 horas voando pelo game, que consegue simular em detalhes o funcionamento e a dinâmica de uma aeronave real.

“O treinamento de simulador doutrina o aluno nas boas práticas da aviação, fazendo com que ele esteja padronizado para o voo real”, diz a Gama Alexandre Faro, coordenador do curso de aviação civil da Universidade Anhembi Morumbi, que conta com um simulador com “Flight Simulator” usado para treino. “Um piloto que passou por um treinamento adequado no simulador de voo estará mais familiarizado com o voo real.”

Na Fórmula 1, pilotos também usam games para treinar. O simulador mais popular é “F1”, o jogo oficial da modalidade, que ganha novas versões anualmente. “Tenho jogado todo dia”, afirma Lando Norris, piloto da McLaren. “Fico lá por horas e horas. Você consegue descobrir os truques de cada pista, saber onde precisa frear o carro, pequenas coisinhas que depois de dias e dias você já dominou”, disse.

“Quando estou jogando, consigo sentir a mesma emoção de quando estou na pista de verdade.”