Conheça a comida de terreiro — Gama Revista
O que o brasileiro cozinha?
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Reportagem

Já provou a culinária de terreiro?

Em alta, pratos dedicados aos orixás vêm conquistando a cena gastronômica nacional, mas ainda sofrem com preconceito e intolerância

Leonardo Neiva e Andressa Algave 11 de Junho de 2023
Rogério Gomes

Já provou a culinária de terreiro?

Em alta, pratos dedicados aos orixás vêm conquistando a cena gastronômica nacional, mas ainda sofrem com preconceito e intolerância

Leonardo Neiva e Andressa Algave 11 de Junho de 2023

“Nós temos uma comida afro-brasileira, mas também uma comida africana no Brasil, que foi preservada nos terreiros de candomblé.” Com essa frase, o professor de antropologia da Universidade Federal da Bahia, Vilson Caetano, introduz o seu “Banquete Sagrado”, jantar para convidados no restaurante Casa da Tanea, na Vila Romana, zona oeste de São Paulo.

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O cardápio, preparado em frente aos convidados, vai do ekuru — massa de feijão fradinho enrolada na folha de bananeira e cozida no vapor — aos mais amplamente conhecidos abará e acarajé. Enquanto dobra com destreza a massa numa folha, feito um origami, o antropólogo, que estuda a alimentação das populações afro-brasileiras, lembra que o ekuru é uma comida geralmente ofertada a Iemanjá, orixá conhecida como rainha do mar.

Em outro momento, lembra que na Nigéria, por incrível que pareça, o acarajé costuma ser frito no óleo de soja, e não no azeite de dendê. “Por lá, o dendê passou por um processo de demonização. Não podemos esquecer que as religiões tradicionais são uma minoria. Então eles não comem, porque é de orixá”, diz Caetano, que é também babalorixá do Terreiro Ilê Oba L’okê, em Lauro de Freitas (BA).

Embora a refeição pudesse se confundir apenas com um jantar tipicamente baiano, as origens e influências religiosas vão pipocando naturalmente durante a apresentação e em meio às conversas ao longo da noite. Isso porque até pratos com os quais já estamos familiarizados integram o que vem se convencionando chamar “culinária de terreiro”. “Nada mais é do que a cozinha dos orixás, comida de santo”, explica o antropólogo.

Não existe candomblé sem comida

E por comida de santo pode-se entender os alimentos usados em rituais dentro de terreiros regidos por religiões como candomblé, umbanda, ifá e vodu pelo Brasil. Pratos que, de acordo com Caetano, são sacrificados aos orixás e divididos com os presentes, numa ideia de comunhão com os ancestrais, como se todos estivessem compartilhando uma única mesa farta de quitutes. “Não existe candomblé sem comida. É uma religião que gira em torno de comer, daquilo que se oferece aos orixás e da maneira como nos relacionamos com essa comida.”

O antropólogo é um dos principais estudiosos do tema no Brasil, autor de livros como “O Banquete Sagrado” (Atalho, 2009) e “Comida de Santo que se Come” (Arole Cultural, 2018), caderno de receitas baseadas em orixás que ele escreveu ao lado do chef paraibano Carlos Ribeiro. Ribeiro, que esteve por mais de uma década à frente do restaurante Na Cozinha, em São Paulo, hoje também é estudioso do tema — mas o assunto esteve presente em sua vida desde a infância. “Meu tio-avô tinha casa de santo, então cresci frequentando o terreiro”, conta.

Foi sob orientação de Caetano, aliás, que o chef passou a servir comida de terreiro em seu restaurante. Em abril, fazia sucesso sua feijoada de Ogum. Quando chegava setembro, era a vez do caruru dos meninos, para Cosme e Damião. Já no dois de fevereiro, dia de Iemanjá, Ribeiro servia frutos do mar com manjar de sobremesa, todos pratos apreciados pela orixá. “Boa parte da comida que a gente come faz parte do sagrado, com ou sem ritual. Em todas as religiões, a comida é sagrada. Sem ela, não tem vida, não existe espírito”, afirma o chef.

O que é que o tabuleiro tem

Segundo Caetano, nos terreiros de candomblé, que geralmente vêm à mente quando se fala dessa culinária, a base é composta por um pequeno punhado de ingredientes: milho, feijão fradinho, quiabo, algumas raízes como o inhame, e folha de bananeira, usada para enrolar e preparar certas iguarias.

“Com inhame, você prepara muitos pratos, como pirão ou o africano afarô. À base de feijão, não podemos esquecer do acará, que chamamos de acarajé, o abará, o omolokum, o ekuru e o adalu, que é feito com feijão descascado. Com milho, tem desde o milho cozido, num prato chamado axoxó, até o pilado e transformado em pó, chamado de adum. Das verduras, a mais importante é o quiabo, através de uma preparação chamada obé-ilá, em que obé é faca e ilá quiabo, então quiabo cortado. Uma sopa vulgarmente conhecida como caruru.”

Boa parte da comida que a gente come faz parte do sagrado, com ou sem ritual

Além disso, são pratos marcados pela presença constante do azeite de dendê, da cebola, da pimenta — um dos ingredientes preferidos de Exu — e de algo defumado, na maioria dos casos o camarão. “Se souber combinar todas essas notas, você é capaz de fazer qualquer preparação a partir dessas bases”, afirma o antropólogo.

Nos terreiros, além das preferências, há também as quizilas, alimentos aos quais cada orixá tem ojeriza. Às sextas-feiras, dia da semana consagrado a Oxalá, deve-se comer canjica branca, mas evitar o dendê — o orixá criador do universo é o único que não curte muito o ingrediente. Como filho de Xangô, Ribeiro hoje também precisa evitar a todo custo o feijão branco. “Eu gostava muito, mas se não pode, não pode. Então adeus, cassoulet.”

A chef e pesquisadora da cozinha afrodiaspórica Aline Chermoula destaca também as substituições e adaptações que esses pratos sofreram ao longo do tempo em solo brasileiro. Além do azeite de dendê, feijão fradinho e quiabo, originários da África, um cereal como o milheto, que abunda no continente, acabou sendo substituído por aqui pelos milhos verde, roxo e branco.

“No Brasil, chegaram africanos de diversas origens diferentes, que tiveram na alimentação e na representatividade religiosa um lugar de reencontro com a África”, diz a pesquisadora. “A mesma comida que ofereço para a divindade é a que alimenta meu corpo, ressignificando minha existência, me fortalecendo. É uma simbiose, tudo acontece ao mesmo tempo.”

Comidas de terreiro

“O que eu sei é o que foi passado por mainha”, conta a chef Solange Borges, que comanda o Culinária de Terreiro, em Camaçari (BA). Ao redor do empreendimento, se mantém uma comunidade de 120 famílias, que ajudam e se alimentam com a comida preparada todos os dias ali. No local, a tradição engloba também muitas outras, desde doces trazidos pelos colonizadores portugueses até as raízes utilizadas pelos indígenas e finalmente o dendê, de matriz africana. “Nosso conjunto perpassa esses três povos, e nós temos uma comida brasileira, porque o candomblé é brasileiro”, diz Borges, que no passado já trabalhou como faxineira, empregada doméstica, manicure, vendedora, e, assim como a mãe, baiana de acarajé.

Em todas as variações de ritos afro-brasileiros pelo país, a comida oferecida aos pés dos santos — que podem ser chamados de inquices, voduns e orixás — foi adaptada aos ingredientes disponíveis séculos atrás. “Essas comidas foram moldadas ao que tínhamos. Isso tem uma ligação também com os povos originários, os indígenas”, afirma a chef.

Nós temos uma comida brasileira, porque o candomblé é brasileiro

A casa exemplifica bem a multiplicidade que existe Brasil afora, o que torna impossível falar em uma única comida de terreiro — o mais adequado, no caso, é usar a expressão no plural. Afinal, as práticas culinárias variam de acordo com a região da África de onde esses povos vieram, o local do Brasil onde acabaram sendo instalados, o período em que isso aconteceu e as tradições com que entraram em contato.

O tambor de mina, o terecô e o xangô de Pernambuco são religiões afro-brasileiras que surgiram de trocas entre povos indígenas, colonizadores e a diáspora africana. A doçaria, parte importante do culto a orixás como Oxum e Iemanjá, também teve influência da culinária de povos não-negros. No festejo do Divino Espírito Santo, tradicional no Maranhão e parte das culturas afro de influência cristã, o doce de espécie — uma pequena torta recheada —, é exemplo da doçaria de influência europeia usada nos ritos do tambor de mina, umbanda e candomblé.

“A África é muito diversa e múltipla, e cada povo que veio para cá representou sua cultura de alguma forma”, aponta Chermoula. “Tem também o contato com as pessoas naquele momento. No Rio pré-República havia muitos europeus, então essa cultura já chega com toda uma influência europeia, diferente do período colonial.”

A umbanda, por exemplo, faz uso abundante de frutas nas oferendas aos orixás, prática diversa em comparação com o candomblé. Já nos terreiros da religião vodu, que existem em maior quantidade na região norte do Brasil, na América Central e no sul dos EUA, as diferenças são mais radicais. Lá se oferecem aos santos desde frutas e doces até café, refrigerantes e bebidas alcoólicas em geral.

Além das especificidades religiosas e regionais, há as tradições típicas de cada estabelecimento, cuja palavra final é sempre da mãe ou pai de santo. É o que ocorre no caso da chef do Culinária de Terreiro. “A farofa despachada no terreiro hoje é a mesma que se despachava antes. A gente até agora não teve evolução, continua a mesma comida que vi nos últimos 50 anos”, conta Borges.

Para viagem

Em março, a chef pernambucana Carmem Virgínia abriu na Vila Madalena, em São Paulo, uma filial do seu conceituado restaurante Altar Cozinha Ancestral, de Recife. O anúncio é mais um capítulo em meio a uma recente alta da culinária dedicada aos orixás na gastronomia do Sudeste, principalmente em São Paulo e Rio de Janeiro.

Além da iniciativa de Carlos Ribeiro em seu Na Cozinha, a chef Bel Coelho vem há alguns anos homenageando a culinária de terreiro no restaurante Clandestino. Na Casa de Ieda, restaurante premiado do bairro de Pinheiros, em São Paulo, é a chef baiana Ieda Matos quem resgata as memórias culinárias da Chapada Diamantina onde nasceu, por meio de pratos como o bolinho de pirão e o baião de dois. No Rio, bares abertos mais recentemente, a exemplo do Agô, Bar da Encruza, em Santa Teresa, também celebram as religiões de matriz africana.

Em geral, os pratos ganham nomes em português ou iorubá, em referência ao orixás, caboclos e itens usados nos ritos. Restaurantes como o jovem Cozinha Ancestral, do Maranhão, possuem menus semelhantes. Por tradição, assim como nos restaurantes, os festejos ou ladainhas também reúnem pessoas de dentro e fora da religião para aproveitar a comida.

Criamos comidas para representar nossos orixás, cultuá-los e manter essa energia viva

Nos terreiros, festas populares como o Cosme e Damião e as celebrações de Ogum e Iemanjá convidam ao consumo de refeições oferecidas aos orixás. A chef Solange Borges lembra que a comida de santo é feita para alimentar quem está por perto. “O terreiro é sempre um mantenedor, uma porta aberta, é acolhedor. Repartimos os sacrifícios e oferendas na nossa comunidade.”

Virgínia, que começou a cozinhar para os orixás aos sete anos de idade, afirma que a culinária afro-brasileira nada mais é do que a devolução daquilo que foi roubado pelos colonizadores. “Assim como tentaram apagar nossa religião, criamos comidas para representar nossos orixás, cultuá-los e assim manter essa energia viva”, diz a chef. “No terreiro, apresentamos a comida na sua versão mais pura, apenas com ingredientes naturais como pimenta, cebola, azeite de dendê, mel e o mínimo de sal.”

Ela também vê com alegria a popularidade dessa culinária — desde que quem a prepare seja realmente de terreiro. “E enxergo com preocupação caso sejam pessoas que estão usando e se apropriando da religião para atingir seus objetivos pessoais.”

Demônios invisíveis

Você já provou o “bolinho de Jesus”? Mesmo que não saiba, é muito provável que sim. Isso porque o tal bolinho é nada mais nada menos que o acarajé que conhecemos, mas que também vem circulando com esse nome pelas ruas de Salvador há mais de duas décadas. Geralmente comercializado por evangélicos, o quitute rebatizado vai contra a legislação local e escancara o conflito cultural que existe em torno das comidas de terreiro, assim como a intolerância em relação a tudo que vem das religiões de matriz africana.

“Quando você substitui ou tenta ressignificar, é uma maneira de negar o passado africano”, aponta Caetano “A substituição feita por algumas baianas neopentecostais é um exemplo forte desse ódio religioso, que quer a todo custo negar nossas origens.”

Outra abordagem que, de acordo com o antropólogo, manifesta esse preconceito é a visão da comida como pesada, gordurosa ou prejudicial à saúde. Um estigma que existe pelo menos desde o século 19, quando a Faculdade de Medicina da Bahia produzia teses apontando malefícios do azeite de dendê. Ao longo do século 20, o ingrediente também passou a ser fortemente associado ao demônio. Para o babalorixá, trata-se de “um discurso racista dessa modernidade alimentar que tenta negar comidas de origens africanas.”

Todo alimento ligado à cultura preta é visto com afastamento, como demoníaco

“Vemos isso em relação ao dendê, ao quiabo, que tem uma não aceitação da sua baba, e ao feijão fradinho, por não deixar o caldo grosso”, complementa Chermoula. Segundo a pesquisadora, se a baba do quiabo tem funções importantes, são as características únicas do feijão fradinho que permitem que o ele seja moído e usado de várias formas diferentes. “As pessoas não entendem o alimento que vem do continente africano e, por não entender, simplesmente recusam.”

Para deixar claro o racismo que existe na rejeição a essa cozinha, Chermoula faz uma comparação com a comida japonesa. Apesar de possuir ingredientes que não combinam com a cozinha brasileira, como algas e peixe cru, pratos típicos do país hoje são muito apreciados por aqui. Por outro lado, embora comidas que adoramos, como a moqueca e o bobó de camarão, venham da cultura africana, essa culinária como um todo ainda é encarada de forma pejorativa.

“O olhar que se tem para o japonês é diferente daquele que lançamos aos descendentes de pessoas escravizadas, porque somos ensinados assim. Todo alimento ligado à cultura preta é visto com afastamento, como demoníaco”, declara a pesquisadora.