O que é a comida brasileira? — Gama Revista
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Wikimedia Commons/ Agostinho José da Mota

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Depoimento

O que é a comida brasileira?

Da biodiversidade e da abundância à fome, nomes como Ieda de Matos, Rosa Moraes, Marcos Nogueira e Ailin Aleixo, entre outros, contam o que pensam da cozinha feita no país

Isabelle Moreira Lima 25 de Setembro de 2022

O que é a comida brasileira?

Isabelle Moreira Lima 25 de Setembro de 2022
Wikimedia Commons/ Agostinho José da Mota

Da biodiversidade e da abundância à fome, nomes como Ieda de Matos, Rosa Moraes, Marcos Nogueira e Ailin Aleixo, entre outros, contam o que pensam da cozinha feita no país

A comida brasileira é diversa, rica, variada, colorida. Tem história: influências nativas e dos colonizadores, daqueles que já chegaram escravizados e dos imigrantes que chegaram livres já depois da independência – e dos que continuam chegando hoje. A comida brasileira é um meio de unir as pessoas, é símbolo de afeto; mas também é afetada pelo capitalismo de maneira cruel. É da riqueza de biodiversidade e da abundância, mas, ultimamente, tem faltado a muitos brasileiros. Como pode um país que produz tantos alimentos padecer de fome? Como falar de cozinha brasileira e ignorar a situação na qual mais de 33 milhões de brasileiros se encontram em 2022?

Wikimedia Commons/ Agostinho José da Mota

Considerando todas essa complexidade a que estamos imersos no país, Gama resolveu ouvir gente que trabalha com comida, seja cozinhando, pesquisando ou escrevendo sobre o assunto, de diferentes partes do Brasil para tentar definir o que é a comida brasilera. Como você pode imaginar, não chegamos a uma resposta única. Leia abaixo o depoimento dos profissionais ouvidos pela revista.

Como o país da fartura se tornou também o da fome? Essa é a grande questão ao falarmos de comida hoje no Brasil

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    ‘Nossos conceitos de alimentação passam por mentalidade colonizada’

    Ieda de Matos, chef da Casa de Ieda, em São Paulo

    “Gosto sempre de partir do princípio de que fomos colonizados por europeus. Muitos dos conceitos relacionados à alimentação que ainda carregamos passam por uma mentalidade colonizada. Sabemos da nossa matriz dos povos originários do Brasil, bem como da africana, no entanto, nunca é dado o devido valor à essa nossa herança alimentar. Definir a comida brasileira é uma tarefa difícil, o enfoque do regionalismo e o étnico não dão conta dessa complexidade. Não temos um conceito definidor, nem podemos cair nas simplificações, e temos que nos desfazer das visões eurocêntricas. Devemos valorizar nosso território, os povos que o habitam e suas técnicas no preparo de alimentos. Ao valorizar o nosso, passamos ao movimento de descolonização: não é acreditar que o que vem de fora não é bom, mas crer que o nosso é tão bom quanto.

    Vivemos num país que nos últimos anos voltou para o mapa da fome, não podemos normalizar uma situação dessa, precisamos cada vez mais pensar na distribuição de alimentos e políticas que priorizem a segurança alimentar. Na perspectiva da cozinha que represento, a sertaneja, ainda hoje percebo a discriminação e sua classificação como simples e pobre. Essa cozinha faz parte da formação culinária do Brasil, já que a migração de um contingente nordestino fez com que influenciasse a culinária dos grandes centros urbanos do Brasil. Antes de olhar pra fora, devemos nos permitir enquanto brasileiros celebrar essa cozinha brasileira tão diversa com sua extensão continental.”

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    ‘Como o país da fartura se tornou também o da fome?’

    Rosa Moraes, presidente do júri do 50th Best no Brasil

    “Dizem que dá para conhecer muito de um povo pela sua comida. Como vivem, pensam e se relacionam aquelas pessoas; de onde vieram, o que prezam, pelo que rezam, que sonhos têm. Mas quando o assunto é o Brasil, parece tarefa árdua ler a palma da mão. Eis que somos o país do acarajé, do caruru, do abará e do vatapá, mas também do baião de dois, da pamonha e do arroz de cuxá; somos o país do furrundu, do pão de queijo, do churrasco pantaneiro e do feijão tropeiro; mas também do cuscuz paulista, do tacacá, da maniçoba e do brigadeiro; somos barreado, bolo de rolo, buchada e sarapatel; somos feijoada, bobó de camarão, chimarrão e arroz carreteiro. Somos um mundo inteiro.

    Queria me estender sobre a fartura da nossa mesa, suas ancestralidades e sotaques. Mas, ao menos por hoje, escolho falar sobre o contraste entre essa fartura e a fome que assola o país. Entre 2019 e 2021, o número de brasileiros que entraram em situação de insegurança alimentar grave saltou para 15,4 milhões – número quatro vezes maior do que o apontado pela ONU entre 2014 e 2016. Isso numa nação de medidas continentais, uma das maiores produtoras e exportadoras de alimentos do mundo.

    Como o país da fartura se tornou também o da fome? Essa é a grande questão ao falarmos de comida hoje no Brasil. Somos um mundo inteiro, e faminto. E nosso papel como educadores, comunicadores, pesquisadores e especialistas em comida é não nos calarmos até que toda e qualquer família brasileira tenha acesso à fartura deixada de herança pelos próprios antepassados – e surrupiada pela falta de justiça social.”

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    ‘Comida brasileira é afetividade e mistura’

    Raphael Vieira, chef do 31 Restaurante, em São Paulo

    “Comida brasileira é afetividade. Essa visão se aplica inclusive para questões políticas e sociais mais amplas. Se alguém passa fome e pede comida, grande parte das pessoas – com poucas excessões – fica tocada e tenta comprar marmita, fazer alguma coisa. Além disso, o país ter voltado ao mapa da fome é um dos fatores que mais deixa o povo indignado.

    Mas além de afetividade, a comida brasileira é mistura. A quantidade de influência do mundo inteiro é incrível: os nativos e colonizadores, os escrasvizados, depois outros imigrantes e até hoje, com os sirios, os bolivianos, é tudo muito rico. A comida brasileira é muito complexa, afinal tudo o que é criado no Brasil é de comida brasileira. Por que um sushi não pode ser uma comida brasileira em termos práticos? Uma paella acaba sendo uma comida brasileira. Essa mistura de culturas que é muito significativa.

    Tem ainda a famosa frase de que comer é ato político. A partir do momento em que se escolhe o ingrediente e onde se vai comprar a comida. É o que mais tenho me perguntado: até que ponto você pode se privar ou limitar de alguma forma a alimentação por conta do que você acredita?”

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    ‘O quilão, uma amostra caótica do caos que é o Brasil’

    Marcos Nogueira, jornalista e autor da coluna Cozinha Bruta na Folha de S.Paulo

    “A melhor representação da cozinha brasileira está no bufê dos restaurantes por quilo.
    Dá para sacar da cartola um sem-número de clichês para descrever a pluralidade das cozinhas do Brasil: país de dimensões continentais, caldeirão de influências, nação jovem etc. etc. Um diabo de um território gigantesco e desigual. Hábitos alimentares que podem ser fatiados por região, por classe social, por cidade versus campo, por festa versus lida diária.

    Um possível ponto de encontro de todos esses recortes é o quilão. Tem sushi, tem lasanha, tem feijoada, tem batata sorriso e nuggets de frango, tem ovo de codorna, tem tutu de feijão e vatapá, tem o cantinho do churrasco, tem pudim e brigadeiro, tem os recorrentes e onipresentes arroz, feijão e farofa. Uma amostra caótica do caos que é o Brasil.”

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    ‘Pensar nas cozinhas do Brasil é pensar também questões sociais, de sustentabilidade e políticas’

    Aline Guedes, chef e pesquisadora

    “Historicamente, a cozinha brasileira era representada pela tríade dos povos que a originaram, de acordo com pesquisadores conceituados como Câmara Cascudo. No entanto, literaturas atualizadas e, devo dizer, extremamente polêmicas, alimentam uma possível não contribuição dos povos africanos escravizados, visto as condições em que estes foram trazidos ao Brasil. Mas um pesquisador deve sempre buscar diversas fontes, autores que mostram perspectivas diferentes de uma mesma história. Nossas cozinhas são ricas em sabores, cultura, história, tradição, identidade e nos permitem nos reconectarmos com quem somos pelo resgate de nossas raízes.

    As técnicas das cozinhas brasileiras são ancestrais, no uso do pilão que indígenas e africanos dominavam, antes mesmo da colonização. Ingredientes diversos, como dendê, quiabo e pimentas vieram da África para cá por meio das grandes navegações. Foram um indício da globalização no mundo e acabaram sendo inseridos na alimentação brasileira pelos escravizados.

    Nós, brasileiros, representamos as cozinhas do Brasil. Elas nos representam e, por este motivo, pensar nestas cozinhas é pensar também questões sociais, de sustentabilidade e políticas. Cozinha é isso! E em adição, manter vivos os saberes e fazeres tradicionais culinários brasileiros só será possível se compreendermos que, para vislumbrarmos o futuro que esperamos, precisamos nos voltar antes para o passado. O futuro é ancestral.”

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    ‘A cozinha brasileira é uma união avassaladoramente linda de biodiversidade’

    Ailin Aleixo, jornalista e apresentadora do podcast Vai Se Food

    “Não existe, em nenhum lugar, a comida de um país, mas uma união de comidas regionais. Ainda mais num país tão grande como o Brasil. Aqui, o que une tudo é a biodiversidade, que nos faz ter uma comida colorida, variada, com fruta, verdura, legumes, grãos, e que é extremamente rica ecologicamente. Não consigo falar de comida brasileira pegando como premissa o arroz e feijão porque em alguns lugares eles não o são. No Sudeste, não tem farinha de mandioca fermentada, algo cotidiano do Norte. A cozinha brasileira é muito variada para ser reduzida a um prato ou técnica.

    Quanto mais viajo, mais vejo que a comida brasileira deve preservar a cultura e a biodiversidade; ela deve se adaptar aos tempos, a 2022, com mudança climática – não dá mais para consumir tanta carne, ovo, queijo, leite. A comida brasileira tem que conversar com questões sócio climática e ambientais. A carne de sol é supertradicional e não precisamos parar de consumi-la de vez, mas é sensato que seu consumo seja reduzido se quisermos viver em um planeta habitável. As cozinhas regionais não são imutáveis, elas precisam acompanhar as profundas questões socioambientais do planeta.”

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    ‘Temos culinárias peculiares que se aproximam pelo contexto abstrato, mas familiar de Brasil’

    Dante Bassi, chef do restaurante Manga, em Salvador

    “Cozinha brasileira é o resultado da interação da cultura gastronômica de diversos povos, em contextos sociais e econômicos diferentes, unificados pelo vasto terroir brasileiro. É algo que evoluiu ao longo do tempo, de acordo com as mudanças na estrutura da sociedade, e continua em constante amadurecimento. Esta evolução reforçou as particularidades das regiões e sub-regiões, diversificando o cenário gastronômico do país de acordo com as diferenças na relação de cada terroir com o momentos histórico, econômico e social daquele território. O resultado são culinárias extremante peculiares e diferentes umas das outras que se aproximam pelo contexto abstrato e ao mesmo tempo familiar de Brasil.”

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    ‘A união de culturas única e a diversidade alimentar faz uma das culinárias mais ricas do mundo’

    Hervé Witmeur chef do Éllo, em Jericoacoara (CE), e do La Cozinha, em Barra Grande (PI)

    “Para mim o resumo da cozinha brasileira é abundância e uma diversidade alimentar presente em um país tão grande. O Brasil é um dos maiores produtores de alimento do mundo, mas a grande desigualdade faz com que tenhamos muitas pessoas ainda no mapa da fome. Ainda pretendo conhecer muitas outras culturas espalhadas por esse país. Essa diversidade aguça muito minha criatividade, a qual busco sempre levar para minha cozinha, aprendendo com essa natureza incrível.

    Eu acho que os alimentos que representam o Brasil em geral são a mandioca e o feijão, vindos da cultura indígena, e presente de norte a sul do Brasil, em todas as mesas, das mais humildes às mais sofisticadas. O Brasil tem uma união de culturas única, e, aliado à diversidade alimentar, faz com que seja uma das culinárias mais ricas e diversas do mundo, com uma personalidade única.”

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    ‘Comida brasileira é uma mistura de sobrevivência com miscigenação’

    Caio Soter, chef do Pacato, em Belo Horizonte

    “Comida brasileira, para mim, é uma mistura de sobrevivência com miscigenação. O brasileiro teve que lutar para sobreviver, foi um país descoberto e que foi sendo ocupado. Nas bandeiras e durante o movimento tropeirismo, para se avançar para dentro do país, não havia cultura de nada, de roça. O brasileiro, na sua origem, teve que ser muito criativo. Desde sempre, pela história do Brasil teve que ir ocupando territórios e sendo criativo para se alimentar. Foi o indígena que mostrou como funcionava a terra e o que dava certo para cultivar. Tivemos uma grande surpresa pela frente que foi encontrar riqueza do solo brasileiro, da terra, e do povo, os indígenas. Por conta dessa riqueza, a gente conseguiu transformar um momento de dificuldade numa cozinha muito rica. No país inteiro, temos essa cozinha abundante, farta, nutritiva, saborosa e é o grande mérito da nossa terra e do nosso povo.”