O que outros países nos ensinam sobre reconciliação — Gama Revista
É tempo de reconciliação?
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Reportagem

O que outros países nos ensinam sobre reconciliação

Para refletir sobre o momento político do Brasil e a polarização, pesquisadores apontam exemplos de como outras nações lidam com seus conflitos

Leonardo Neiva 11 de Dezembro de 2022

O que outros países nos ensinam sobre reconciliação

Para refletir sobre o momento político do Brasil e a polarização, pesquisadores apontam exemplos de como outras nações lidam com seus conflitos

Leonardo Neiva 11 de Dezembro de 2022

Não existe reconciliação sem conflito. E conciliar dois indivíduos com pontos de vista diferentes em qualquer situação já é uma tarefa difícil — afinal, implica resolver e superar um problema que envolveu visões de mundo diferentes ou até opostas. Pior ainda é quando se fala sobre uma reconciliação coletiva — a nível nacional, por exemplo –, quando a questão ganha camadas de complexidade a perder de vista.

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Basta abrir um livro sobre a história do Brasil para pinçar uma série de momentos em que algum nível de reconciliação foi necessário para que o país seguisse funcionando. Da independência à abolição da escravatura, da proclamação da República à redemocratização, os embates e mudanças que geraram cisões na sociedade também motivaram negociações de conciliação para retornar a uma estabilidade.

E, claro, deixaram marcas com as quais a sociedade lida até hoje, como o racismo estrutural, a desigualdade e as consequências de um processo mais brando de redemocratização, que não lidou com crimes e violências ocorridos durante o período ditatorial.

Os embates que geraram cisões também motivaram negociações de conciliação para retornar a uma estabilidade

Hoje, após as eleições mais acirradas da história do país, num momento em que manifestantes bolsonaristas ainda acampam em frente a quartéis, questionando a integridade da votação e clamando por uma intervenção militar, parece restar uma distância considerável para conciliar as visões políticas e ideológicas na sociedade brasileira. “O Brasil ainda passa por um fenômeno de direita nacionalista populista, que vem acontecendo em outros países e não tem comprometimento com a democracia”, resume o professor de relações internacionais da FGV Vinícius Vieira.

Embora se identifique em muitos aspectos com a ascensão da extrema-direita que levou ao poder figuras como o ex-presidente americano Donald Trump e o atual primeiro-ministro indiano Narendra Modi, entre muitas outras, Vieira afirma que há também diferenças relevantes no caso brasileiro.

Apesar de na Europa e Estados Unidos serem todas manifestações políticas baseadas num forte senso nacionalista, assim como aqui, no Brasil elas não são puxadas pelos ditos perdedores da globalização: operários ou trabalhadores do campo que viram seus empregos reduzirem com a crescente urbanização e chegada de novas tecnologias. “No Brasil, algumas das bases do bolsonarismo são o agronegócio e empresários, que inclusive ganharam com essa globalização”, ressalta o especialista.

No caso da divisão política brasileira, uma reconciliação está longe de ser impossível, ressalta o advogado Cláudio de Souza Neto, autor do livro “Democracia em Crise no Brasil” (Contracorrente, 2020). Como exemplo, ele relembra a polarização que levou à Guerra Civil Espanhola na primeira metade do século 20. “Mesmo nesse caso extremo, acabou ocorrendo um custoso, penoso e demorado processo de reconciliação, mas ela foi alcançada. No Brasil, estamos muito longe disso, até porque não houve ruptura institucional e a grande maioria da população aceitou o resultado das eleições.”

Em busca do centro

Num mundo ideal, Vieira reforça que o melhor caminho é ambos os lados da disputa política e ideológica reconhecerem seus erros. Ele não enxerga, no entanto, Lula pedindo desculpas extensas pelos escândalos de corrupção ocorridos nos governos petistas e muito menos Bolsonaro reconhecendo sua responsabilidade por parte dos quase 700 mil mortos pela covid-19 no país. “Não precisam necessariamente ser Lula e Bolsonaro, mas lideranças de ambos os lados. Senão viveremos uma polarização sem fim, deixando de avançar em pautas importantes.”

Mas, mesmo na atual falta de lideranças capazes de falar com um público mais amplo, podem haver outros caminhos.

O melhor caminho é ambos os lados da disputa política e ideológica reconhecerem seus erros

É o que, segundo o professor, dá para identificar após a eleição do presidente Biden nos EUA, que podem estar vivendo um período de calma reconciliação. Por lá, ele diz, uma das principais críticas da direita aos democratas era priorizar demais políticas identitárias. “Uma figura centrista como o Biden é capaz de vender a ideia de que as minorias importam sim, mas também é preciso prestar atenção nas pautas em comum. Enquanto isso, os republicanos mais radicais tiveram problemas nessas últimas eleições legislativas“, aponta.

Esse movimento, segundo o especialista, acaba direcionando naturalmente ambos os lados do espectro político para posições mais ao centro — o que também poderia ocorrer por aqui nos próximos anos. Já numa posição mais conservadora e com um vice como Alckmin, tradicionalmente associado à direita centrista, Vieira não descarta a possibilidade de, com um governo Lula moderado, novos líderes à direita que sejam críticos de Bolsonaro ganharem destaque até as próximas eleições, em 2026.

“Alguns dizem que o caminho é julgar Bolsonaro pelos seus crimes. Considero importante sim, mas é um processo político, e não jurídico, que pode realizar uma verdadeira reconciliação nacional.”

Neto ressalta que a oposição política, longe de ser um problema, é salutar numa democracia. O grande problema é a radicalização. Para ele, a eleição de Lula aponta justamente para um caminho de mais aproximação com diferentes espectros políticos. “Na minha visão, trata-se de uma liderança política com vocação para o diálogo.”

Heranças autoritárias

Os constantes pedidos de intervenção militar e retorno da ditadura também escancaram um problema até o momento sem solução: nossa incapacidade de lidar com a herança autoritária. “O Brasil está mais uma vez revivendo esse passado, com pessoas em frente aos quartéis pedindo golpe de Estado”, afirma a historiadora Adriane Vidal, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Nossa situação histórica, segundo ela, é mais comparável aos períodos de redemocratização vividos por Argentina e Chile, após ditaduras que deixaram rastros de sangue inapagáveis. “Assim como no Brasil, esses embates que lidam com a memória, o esquecimento e o trauma coletivo também acontecem com frequência na Argentina”, lembra a pesquisadora, que é especialista em história latino-americana.

Na opinião de Vidal acabamos tendo a visão equivocada de que esses países já resolveram suas pendências com a ditadura e hoje não precisam mais lidar com essas cicatrizes. Mas, pelo contrário, o Chile ainda luta para conseguir aprovar uma Constituição que substitua a que veio da ditadura, uma das heranças mais duradouras do governo Pinochet.

A diferença é que, embora os três países tenham criado suas leis de anistia, militares que cometeram crimes e violaram direitos humanos nos países vizinhos chegaram a ser julgados e até mesmo condenados após a instauração de Comissões da Verdade. No Brasil, o órgão com a finalidade de apurar essas ocorrências no período ditatorial só foi criado em 2011, resultando em um documento relevante, mas que não levou a julgamentos ou punições dos responsáveis pelas violações.

“Essas comissões foram fundamentais na Argentina e Chile porque ocorreram no início da anistia e ouviram os que realmente tiveram seus direitos violados, dando voz a quem passou por esse trauma”, ressalta a historiadora. Já no caso brasileiro, a extensão do processo de redemocratização e a pressão dos militares contra uma comissão investigativa impediram medidas concretas. “Os militares organizaram um processo lento e gradual para fazer uma abertura mais controlada e autoritária.”

Por todo esse contexto, Vidal vê o Brasil assumindo hoje um protagonismo indiscutível na América Latina em relação a pedidos de intervenção militar e à defesa de um retorno à ditadura. Mas também não descarta vontades semelhantes nas sociedades vizinhas, onde muitas feridas seguem abertas.

Quem vem de fora

E até mesmo exemplos negativos podem mostrar como o Brasil poderia fazer mais para conciliar os que aqui vivem, aponta a historiadora e professora da Unicamp, Ana Carolina Maciel. Uma das faces mais aparentes da ascensão da extrema-direita mundo afora é a xenofobia, nascida do nacionalismo, que ganhou ares mais urgentes com o agravamento da situação dos refugiados nas últimas décadas. Embora hoje raramente apareça nos noticiários, a situação em campos de refugiados segue preocupante na Europa, onde há barreiras altíssimas contra qualquer tipo de integração social, afirma a docente.

Em viagem a Paris, Maciel presenciou uma manifestação de menores refugiados no Jardim do Palais Royal, em frente ao Museu do Louvre. “Escolheram essa praça que é uma vitrine da Cidade Luz, onde milhares de pessoas passam diariamente, para chamar a atenção do poder público e da sociedade sobre a situação que vivem. Nas periferias, eles continuam na invisibilidade”, afirma a professora.

No Brasil, embora o fluxo de refugiados seja consideravelmente menor do que os milhões que chegam à Europa — aqui são pouco mais de 60 mil em situação de refúgio, a maioria de origem venezuelana –, a situação que encontram não é muito melhor. A grande maioria tem dificuldade para acessar a educação por aqui, para conseguir emprego e se integrar à sociedade, além de sofrer com frequência violências e xenofobia. “A situação no Brasil não se compara aos países da Europa. Por aqui, seria possível ter uma política de inserção mais efetiva, mas ainda estamos distantes disso”, reforça Maciel.

O desafio dos paralelos

Um dos obstáculos para fazer paralelos com cenários de reconciliação nacional mundo afora, de acordo com especialistas, é que uma ruptura institucional e democrática não chegou a ocorrer nos últimos governos, apesar da forte polarização política no país. Portanto, não é possível aplicar soluções da maneira como elas ocorreram após conflitos extremos em outros pontos do globo.

Como exemplo, Vinícius Vieira, da FGV, relembra um caso conhecido: o do apartheid, regime de segregação racial que existiu na África do Sul até 1994. Por lá, a Comissão da Verdade ouviu vítimas e perpetradores que confessaram tanto os crimes sofridos quanto os cometidos. Quem confessasse receberia a anistia. Mas o docente não enxerga ambiente para nada minimamente semelhante no Brasil, já que, apesar da simpatia de Bolsonaro pela ditadura, não chegamos a viver um regime de exceção — e a prova é que ele deverá deixar o cargo de presidente em janeiro, após eleições democráticas.

“Por isso vejo mais próximo da nossa realidade aquilo que vem acontecendo nos Estados Unidos”, reafirma. A visão do pesquisador se baseia também no que os teóricos chamam de “capacidade de as democracias se autocorrigirem”. O que, segundo Vieira, tem a ver com os altos custos econômicos, sociais e políticos de manter movimentos extremistas, seja dentro ou fora do poder.

A mesma dificuldade pode ser encontrada ao fazer um paralelo com um caso como o do acordo de paz com as Farc, forças guerrilheiras de inspiração comunista responsáveis por assassinatos, sequestros e torturas na Colômbia, diz a historiadora Adriane Vidal. Devido à violência e aos traumas específicos desses embates, há inclusive uma parte importante da sociedade civil por lá que não quer nenhum tipo de reconciliação. “Mas é também uma experiência importante, que tem promovido um grande debate sobre justiça de transição, reconciliação e transformação do presente por práticas democráticas.”

A pesquisadora considera ainda que, em momentos políticos delicados, a negociação costuma prevalecer sobre a reconciliação pura e simples. “A grande crítica a essas negociações é que elas muitas vezes não promovem o que importa: um ideal de justiça. Isso é fundamental, onde quer que seja”, ressalta a pesquisadora. Para ela, os exemplos estrangeiros mostram que essa busca por justiça deveria nortear práticas mais democráticas. “Infelizmente não é o que temos visto nesse contexto de conflitos políticos muito intensos no Brasil.”