Olivia Fürst, advogada colaborativa, fala sobre reconciliação familiar — Gama Revista
É tempo de reconciliação?
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Marcela Monteiro / @marcelanmonteiro

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Conversas

Olivia Fürst: 'As relações precisam de atualização e os conflitos são um sinal de alerta'

Advogada colaborativa diz que questões financeiras estão no cerne dos desentendimentos das famílias e que é preciso repactuar acordos dentro das relações de tempos em tempos para evitar e resolver conflitos

Isabelle Moreira Lima 11 de Dezembro de 2022

Olivia Fürst: ‘As relações precisam de atualização e os conflitos são um sinal de alerta’

Advogada colaborativa diz que questões financeiras estão no cerne dos desentendimentos das famílias e que é preciso repactuar acordos dentro das relações de tempos em tempos para evitar e resolver conflitos

Isabelle Moreira Lima 11 de Dezembro de 2022

Consegue imaginar um mundo em que a resolução de conflitos como divórcio, encerramento de sociedade, disputa de guarda e divisão de herança acontece sob um teto de diálogo? Parece um mundo de sonhos inalcançável, mas ele existe, e é este mesmo em que vivemos. Talvez não seja tão belo quanto você está pensando, porque as situações não são livres de dor e acontecem, geralmente, quando as partes estão em sua pior versão, mas as práticas colaborativas do direito têm como objetivo evitar litígios que acabam sendo tão desgastantes quanto a separação em si. É o que explica a advogada Olivia Fürst, presidente da Comissão da Advocacia Colaborativa do Conselho Federal da OAB.

“Se você perguntar para qualquer pessoa que esteja vivendo um conflito na sua família se ela quer ter o processo dela judicializado ou resolvido, por mais que ela esteja com raiva, com dor, ela vai pensar um pouco e vai falar que quer resolvido”, diz Fürst.

As práticas colaborativas implicam em três principais: a conciliação, em que uma terceira pessoa imparcial atua para chegar a um consenso; a mediação, em que essa pessoa neutra faz perguntas para que as partes cheguem a um acordo em coautoria; e a advocacia colaborativa, em que dois advogados atendem as partes sem entrar em litígio. “A advocacia colaborativa ou a prática colaborativa no direito é também um método de diálogo que está dentro desse guarda-chuva dos métodos pacíficos, não adversariais, métodos adequados de resolução de conflitos”, explica.

Em entrevista a Gama, Fürst diz que questões financeiras estão no cerne dos desentendimentos das famílias, pois mexem com as noções de segurança das pessoas. Segundo ela, para evitar e resolver conflitos, é preciso repactuar acordos dentro das relações de tempos em tempos. Mas, se o conflito vier, não se assuste: pode ser apenas um sinal de alerta de que a relação precisa de uma atualização. “Essa é uma lente importante que precisamos mudar na nossa cultura, o conflito não é uma coisa a ser evitada. Ele é inerente, é parte da nossa condição humana em sociedade”, afirma na entrevista que você lê a seguir.

Um casamento precisa ser combinado: quais são os deveres, obrigações e expectativas? E, de tempos em tempos, é preciso reavaliar e repactuar

  • G |Como advogada colaborativa, acha que a sociedade brasileira está pronta para essa ideia como uma alternativa de justiça? Nós somos, brasileiros, um povo conciliador?

    Olivia Fürst |

    Temos todas as condições de estabelecer, de aprender a dialogar, de nos comunicar de maneira mais efetiva, adquirir habilidades de negociação. As pessoas não sabem que existem outras formas de resolver conflitos, e temos uma tendência a achar que não vamos dar conta. Mas a verdade é que damos conta de muito mais coisa do que achamos. É difícil estabelecer diálogo, assumir suas responsabilidades num processo desses, mas é muito fortalecedor. Restaura a autoestima, as pessoas ficam senhoras da própria vida, elas não estão ali porque o juiz decidiu ou porque o outro teve um bom advogado. Elas decidiram. Então a preservação da autonomia e o fomento de responsabilidade é muito restaurador para as pessoas. Se você perguntar para qualquer pessoa que esteja vivendo um conflito na sua família se ela quer ter o processo dela judicializado ou resolvido, por mais que ela esteja com raiva, com dor, ela vai pensar um pouco e vai falar que quer resolvido. A maioria das pessoas chega no meu escritório muito preocupada com a briga, com a escalada do conflito, preocupada em perder o patrimônio, preocupada com a saúde emocional dos filhos. É muito raro uma pessoa que não queira uma resolução mais saudável, mais amena, mais respeitosa, mais íntegra para a sua situação.

  • G |Conciliação não significa reconciliação necessariamente?

    OF |

    O que eu percebi na minha experiência e no meu trabalho é que às vezes a conciliação ou o sucesso de um trabalho de diálogo está justamente em permitir a ruptura às vezes. Que as pessoas sigam com as suas vidas sem estarem necessariamente ligadas seja afetivamente na conjugalidade ou num projeto, numa sociedade. Às vezes o lugar da conciliação, o lugar da pacificação, da harmonização está na separação, na ruptura, na identificação de novas fronteiras. E não somos obrigados a nos relacionar, não temos mais um projeto em comum ou esse ciclo já se esgotou, já se concluiu.
    É muito comum, nas minhas palestras e aulas, alguém levantar a mão e falar “quantos casais você já conseguiu reconciliar?”, como se fosse esse o objetivo do meu trabalho. Eu não sou uma terapeuta com essa missão, as pessoas não me procuram para se reconciliar; elas me procuram para se divorciar, para romper o vínculo. Mas é um processo de diálogo respeitoso onde todo mundo fala e ouve. Quando esse casal ainda tem alguma coisa para ser vivida, existe um ambiente para que essa reconciliação aconteça. Já aconteceu mais de uma vez comigo dos clientes ligarem para dizer que vão dar um tempo, que voltaram, que vão suspender um pouco e aí depois eu fico sabendo que eles reataram, é bem legal. Não é o meu objetivo, mas eu fico feliz em criar um ambiente onde isso é permitido. 

  • G |Você tem bastante experiência com famílias. Por qual motivo elas brigam mais?

    OF |

    Por questões financeiras e patrimoniais. É um tema sempre mais difícil. Entre um casal que está se divorciando, entre irmãos na hora de receber uma herança, o planejamento sucessório. Porque a verdade é que o patrimônio, as questões financeiras, falam da nossa segurança. Somos mais flexíveis em outras questões, como com cuidados com os filhos ou com os pais idosos. Quando falamos de dinheiro, de manutenção financeira, pensão alimentícia, divisão de patrimônio, partilha de bens, herança, até por ser uma discussão mais dura, pela instabilidade do país, as pessoas ficam ali cada uma querendo garantir o seu.

  • G |Como as famílias poderiam viver melhor e evitar brigas?

    OF |

    É muito importante que as pessoas conversem e façam combinados. Um casamento ou uma sociedade precisa ser combinada, quais são os deveres, obrigações e expectativas, e de tempos em tempos podemos reavaliar e repactuar. Não somos os mesmos quando casamos aos 20, depois aos 30, quando vieram os filhos, aos 40, aos 50. Nós mudamos, então os combinados têm que se atualizar, senão o sistema trava e dá pau. As relações também precisam de atualização e os conflitos são um importantíssimo sinal de alerta de que algo não vai bem, de que alguma coisa precisa ser revista e atualizada. Essa é uma lente importante que precisamos mudar na nossa cultura, o conflito não é uma coisa a ser evitada. Ele é inerente, é parte da nossa condição humana em sociedade.

As pessoas estão na sua pior versão, mostrando um lado que às vezes nem elas próprias conheciam

  • G |Em questão de divórcio, quais são os principais entraves para uma conciliação?

    OF |

    Falei das questões financeiras, mas profissionalmente, e falando também do desafio dos meus clientes, o mais difícil é separar as questões subjetivas e emocionais (as dores, as mágoas) das questões objetivas (tempo com as crianças, os pagamentos, a mudança). Existem esses dois universos, o da subjetividade e o da objetividade, e dividir essas duas pautas é muito difícil porque elas se embolam. As pessoas estão na sua pior versão, mostrando um lado que às vezes nem elas próprias conheciam. O grande desafio é tomar boas decisões em tempos muito difíceis, turbulentos emocionalmente, duros. O processo de divórcio é muito mais emocional do que jurídico. É preciso manter o cliente conectado com as suas maiores prioridades, objetivos, manter-se conectado consigo mesmo: cuidar da saúde emocional dos filhos, preservar o patrimônio, não prolongar essa história. Dá erros, pautas se embolam, as pessoas saem do prumo, é um processo cheio de altos e baixos, é montanha russa, é hardcore com emoção. A maior função de um advogado de família, muitas vezes, é discordar do seu próprio cliente, falar: “Volta para o prumo, você está perdendo o foco do que é mais importante”. Ele está governado pela dor.

  • G |Quando a advocacia colaborativa não funciona? Tudo é passível de mediação e conciliação ou tem coisa que não tem jeito?

    OF |

    Em situações que envolvam violência iminente ou em repetidas vezes, situações em que uma das pessoas esteja ameaçada. Aí, é preciso ter intervenção: não posso trazer para uma mesa de diálogo uma pessoa que está ameaçada, que está sendo violentada de qualquer maneira. A violência em sentido amplo, pode ser física, emocional, financeira, tem muitos tipos de situações abusivas. Na advocacia colaborativa, trabalhamos com uma equipe multidisciplinar, profissionais de saúde, psicólogos, terapeutas, planejadores financeiros que têm um olhar para o desafio e que podem ajudar. Situações complexas são bem-vindas, mas não pode estar numa negociação qualquer pessoa que não esteja em condição de transacionar. E mesmo assim há quem diga que, em situações que envolvem algum grau de violência ou abuso, é possível, desde que as pessoas estejam já afastadas e em segurança, tentar achar um arranjo que seja viável. Na abordagem colaborativa cada um tem o seu advogado. Criamos uma rede de proteção daquela família em que temos como reequilibrar, recalibrar e fazer cessar o abuso. Nem sempre o poder judiciário dá conta.

  • G |Ao podcast Crime e Castigo, você falou que o consenso não é um conto de fadas em que todos saem felizes. Como é que chegamos então a uma satisfação? Isso é possível?

    OF |

    Acredito que sim. Temos duas coisas importantes para pensar: a ideia de justiça e a de satisfação. Consenso é a solução com a qual todos podem conviver. Não é o ideal, não é o que eu queria ou o que o outro queria, mas podemos conviver com isso, sem nos sentirmos agredidos ou violentados. Consenso é achar um lugar onde se consegue compatibilizar diferenças, harmonizar divergências e permitir a coexistência, a continuidade da vida. Como eu falei, não tem nada a ver com virar melhor amigo, sair para tomar um chopp, virar madrinha. Às vezes a decisão é não nos falar mais ou falar somente o mínimo. O grau de satisfação está na forma como nós construímos esses acordos. A barganha, pedir mais para chegar no que se quer, é uma péssima estratégia para quem quer buscar satisfação. O senso de justiça está intimamente ligado ao grau de envolvimento que eu tive com a elaboração daquele ajuste. Se eu me envolvo, se eu participo, se eu ouço a proposta, se eu digo a minha proposta, se eu entendo o porquê sim e o porquê não, eu tenho a percepção de que eu cheguei naquele lugar ótimo. Esse é o melhor acordo possível que eu cheguei com fulano. Diferente de um acordo baseado em barganha, em que só eu abri mão – enquanto o outro fala a mesma coisa.

Assim como entendemos que não somos obrigados a conviver, as famílias têm que se escolher

  • G |Na última década, vimos uma cisão política no Brasil com muita briga, inclusive dentro das famílias. Com a sua experiência de conciliação, mediação, advocacia colaborativa, por que a harmonia de antes, mesmo que talvez ilusória, desandou?

    OF |

    Assim como entendemos que não somos obrigados a conviver, as famílias têm que se escolher. Eu escolho estar com essas pessoas, eu escolho passar o Natal com essas pessoas, mesmo que elas pensem diferente de mim. A princípio ninguém é obrigado, mas escolhemos estar em família e celebrá-la. É preciso saber disso e estabelecer novos pactos. Vamos falar de política ou não? Vamos evitar esse assunto nos encontros de Natal, nos aniversários, para manter o grupo de zap vivo? Estabelecer regras da boa convivência. Escolho conviver com você e, para ter um cuidado mútuo, vamos evitar tal assunto? Se acontecer, eu vou me retirar, eu vou sair, ou eu vou fazer tal coisa. Já fica a porta de emergência aberta para você poder saber como agir e está tudo bem. Temos que aprimorar os nossos pactos, nossos contratos de convivência. Vamos fazer esses exercícios dentro de casa, com nosso marido ou esposa, companheiro ou companheira, filhos; vamos aprimorar esse exercício de combinar como é que vai se dar a nossa relação. Isso é muito saudável e muito importante para a sociedade e para as crianças e adolescentes que estão testemunhando os adultos tendo divergências e conseguindo encontrar o lugar comum da família, do entendimento, do amor, da convivência. O conflito é uma oportunidade de crescimento, de amadurecimento, de elevação, de aprimoramento da convivência.

  • G |Você chegou a atender alguma família que tenha brigado por política?

    OF |

    Não por isso, mas como pano de fundo. Está ali entre casais, irmãos, e é um dificultador porque as pessoas tendem a colocar rótulos. Então tudo o que vem daquela pessoa, porque ela vota em fulano ou beltrano, eu já desqualifico por esse motivo. Você vota em beltrano, nada do que você diz eu levo a sério. Assim, acaba-se com o diálogo. É duro, não é fácil, exige muito de nós, mas tentar entender a mecânica do pensamento é importante. Tem hora que não queremos, não aguentamos. Mas, se é alguém que importa, vale tentar entender esses limites.

Divórcio sem guerra

Em 26 de dezembro deste ano, são celebrados os 45 anos da Lei de Divórcio. Ainda assim, para a advogada Olivia Fürst, ainda precisamos aprender a como nos divorciar. “Os nossos netos vão falar ‘as pessoas, em 2022, ainda entravam em litígio, que coisa esquisita’. Esse marco dos 45 anos pede uma reflexão sobre a busca de diálogo. O que acontece dentro de uma família extrapola os limites da casa. O homem que está sofrendo um divórcio litigioso vai para o trabalho, vai dirigir um avião, vai para uma empresa, vai para um cargo público tomar decisões que impactam a vida de outras pessoas”, afirma. Fürst é defensora do divórcio colaborativo, em que as partes não entram em litígio e decidem juntas, sem um juiz, os termos da separação. “O divórcio vai ser cada vez mais simplificado, objetivo, autônomo, fora do Estado”, diz.