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ReportagemDentro e fora das telas, os fãs são os novos vilões?
De ‘Matrix’ a ‘Pânico’, franquias usam suas tramas para mexer com fãs e evidenciam relevância dos fandoms para a indústria cultural
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Dentro e fora das telas, os fãs são os novos vilões?
De ‘Matrix’ a ‘Pânico’, franquias usam suas tramas para mexer com fãs e evidenciam relevância dos fandoms para a indústria cultural
De “Matrix: Resurrections” (2021), continuação recente da bem-sucedida franquia de duas décadas atrás, a “Batman” e “Pânico” (2022), os fãs estão bastante presentes no cinema nos últimos tempos não apenas como telespectadores, mas como parte importante das tramas. Longas como esses, todos grandes produções de Hollywood fadadas a faturar centenas de milhões de dólares nas salas de cinemas, vêm abordando desde temas como fandoms tóxicos (fandon é a abreviatura de fan kingdom ou reino dos fãs) até críticas ferozes contra a aposta da indústria cultural em sequências e remakes.
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Embora seja complicado explorar mais a fundo como os fãs se encaixam dentro desses filmes sem recair nos temidos spoilers, dá para dizer que o recente interesse pelo tema chega num momento que talvez configure o ápice da chamada cultura de fãs. Hoje os antigos fã-clubes já se transformaram em fandoms, que passaram a dominar as redes sociais e a influenciar desde os rumos de franquias bilionárias como Star Wars e Marvel até eventos políticos.
“Muitas das atividades básicas e experiências de fandoms não mudaram com o tempo. Os fãs sempre expressaram sua conexão emocional com a mídia e compartilham suas paixões dentro de uma comunidade que pensa de maneira parecida”, aponta o professor de jornalismo da Universidade de Huddersfield, na Inglaterra, Matt Hills. Pesquisador de fãs de cultura pop e autor do livro “Fan Cultures” (culturas de fãs, sem tradução para o português), onde analisa as mudanças nas visões sobre fãs ao longo do tempo, é também assumidamente um aficionado pela série britânica “Doctor Who”.
Ele aponta que a maior mudança nos últimos anos tem a ver com “o que significa ser um fã aos olhos da indústria”. “Eles foram de um público supostamente divergente e excêntrico para a principal audiência, foco dos marqueteiros, fonte de trabalho voluntário para promover marcas e até mesmo um lugar de onde a nova geração de profissionais criativos pode emergir.”
Embora comunidades de fãs obcecados existam desde muito antes da internet e das redes sociais — basta observar as reações da plateia a shows antigos de bandas como os Beatles –, as redes permitiram a criação dos “fãs instantâneos”, “já que você pode encontrar imediatamente uma tribo ou comunidade que compartilha do seu amor por qualquer tipo de produto da mídia”, diz Hills. Para o pesquisador, as redes facilitaram sim a entrada de pessoas nesse tipo de comunidade, mas não chegaram a fazer avançar a cultura de fãs. “Fandoms que duram uma vida inteira não são efêmeros, não se trata da última novidade, mas sim de um comprometimento duradouro, uma questão de identidade.”
Além de terem potencializado a formação de comunidades, as redes também deram visibilidade ao comportamento de grupo dentro dos fandoms, afirma o psicólogo Fabrício Guimarães. Segundo ele, em grupo, um fã com comportamentos mais excessivos pode se sentir legitimado a fazer coisas que jamais tentaria se estivesse sozinho. “Às vezes, por terem concepções fanáticas, algumas pessoas se agridem como se fossem piores inimigos, apesar de nunca terem se visto antes.”
Fãs ou antagonistas
No filme “Matrix Resurrections”, a versão ressurgida do protagonista Neo (Keanu Reeves) começa o longa como um desenvolvedor de jogos forçado por sua empresa a fazer uma sequência para Matrix, game de sucesso que criou nos anos 1990 — um padrão que espelha o vivido pela própria a diretora Lana Wachowski com a Warner Bros. Na história, a tal sequência seria uma forma de atrair os fãs do jogo original, que passou a ser cultuado e relembrado ao longo de décadas.
Por outro lado, em “Batman” e “Pânico” — franquia que já traz o exercício da metalinguagem embutido dentro de si –, os fãs surgem praticamente como vilões das tramas, o que aponta para uma tendência de representação não muito positiva nas narrativas cinematográficas. “A figura do fã ganhou relevância e reconhecimento cultural, então ele não tem só histórias escritas a seu favor, para responder seus desejos, mas também protagonizam algumas delas”, diz a professora de comunicação da Unip Clarice Greco, especialista em estudos de fãs e cultura pop. “Como se tornaram parte reconhecível da sociedade, passam a aparecer em filmes que refletem essa sociedade e o que é relevante no momento.”
Olhando para trás, a figura do fã com contornos vilanescos no cinema não chega a ser novidade. Em “Louca Obsessão” (1990), baseado na obra de Stephen King, uma homicida Kathy Bates tortura um famoso escritor ao descobrir que ele pretende matar sua personagem favorita dentro de sua série de livros. Na década anterior, “O Rei da Comédia” (1982), de Martin Scorsese, mostra um Robert De Niro disposto a sequestrar seu ídolo para alcançar o sonho de se tornar um comediante famoso, numa história que acabou inspirando uma situação semelhante dentro do filme “Coringa” (2019).
Hills lembra que há até um termo para quando as produções usam sua trama para criticar os próprios fãs tóxicos: o “fantagonismo”. “Isso se tornou mais visível conforme franquias adotaram narrativas mais ‘meta’ ou reflexivas para tentar desencorajar alguns segmentos específicos do público e encorajar outros. Tem mais a ver com posicionamento de marca do que com uma nova tendência”, afirma o pesquisador.
O professor da Universidade Federal da Paraíba Thiago Falcão, pesquisador da mídia de entretenimento e de games, também não enxerga uma tendência, mas sim uma necessidade das produções de trazer suas narrativas para disputas que acontecem no mundo real. “A primeira parte de Matrix traz uma discussão sobre como a Lana Wachowski foi praticamente forçada a dirigir o filme. Se ela não dirigisse, outra pessoa ia, então ela preferiu manter a autoridade.” Assim, segundo o professor, quem conhece os bastidores é transportado para aquilo que aconteceu por trás da tela. “Esses temas têm surgido em tantas outras franquias e produtos da indústria cultural, porque o fã se tornou esse ‘asset’ muito palpável.”
Fãs adeptas da Beatlemania vão à loucura diante de seus ídolos durante um show da banda The Beatles em 1964 Michael Ochs Archives/Getty Images
A volta dos que não foram
Quando o trailer do aguardado novo filme do Sonic saiu, em 2019, o principal assunto não foi a alegria de poder ver na telona um dos personagens de games mais famosos do mundo, e sim que aquele boneco de computação gráfica, com olhos pequenos e boca esquisita, não tinha nada a ver com o Sonic que os fãs aprenderam a amar. “O caso do visual do Sonic mexeu com o cânone, aquela obra original. Foi àquilo que as pessoas aprenderam a se afeiçoar e que acabou se tornando intocável”, explica Greco.
Como exemplo do impacto dos fãs nas produções audiovisuais, as reclamações foram tantas e o barulho do público tão ensurdecedor que o estúdio simplesmente adiou o lançamento do filme em alguns meses para poder refazer a figura do porco-espinho corredor. E, da segunda vez, nem mesmo os mais aficionados pelo personagem encontraram do que reclamar.
“Continuidade e cânone se tornaram uma forma cada vez mais importante de pensar em produtos culturais para um certo tipo de fã — geralmente homens mais velhos”, conta Hills. “Se esse produto for considerado vital para o senso que a pessoa tem de si mesma, então ela vai se sentir psicologicamente motivada a tentar preservar aquilo.”
Segundo o pesquisador, essa tendência tem a ver com uma visão de que o fã está defendendo o legado daquilo que gosta, mas acaba ignorando o fato de que nada permanece igual para sempre. “Fãs deveriam ser muito mais abertos à mudança. Ela é inevitável e é a única forma de produtos culturais e até de os próprios fãs permanecerem relevantes.”
A indústria da reciclagem
A existência e prevalência cada vez maior de sequências, remakes, spin-offs, reboots e prequels — sem contar os termos mais obscuros e difíceis de explicar, como as requels, caso do novo “Pânico” – mostram uma necessidade constante de recorrer às mesmas bases de fãs para garantir bons retornos financeiros.
Uma das principais diferenças na indústria em relação a um passado próximo é que antes havia uma busca por satisfazer todos os grupos, enquanto hoje o que muitos procuram é justamente o nicho, diz Greco. “Você pode fazer um produto para pessoas de mais de 40 anos, outro para aqueles que têm 20 e estão nostálgicos da infância, e por aí vai. Essa mudança faz com que você vá até aquilo que esses públicos mais gostam.”
Dentro dessa lógica, o fan service funciona justamente como uma ferramenta para agradar aos fãs de forma rápida e relativamente fácil. Para quem não é familiarizado com o termo, se tratam de momentos geralmente pouco importantes para a narrativa, mas que trazem algum significado especial para os fãs mais ardorosos. E a especialista lembra que esse não é nem um recurso tão novo assim. Devido ao seu enorme sucesso na novela “Rainha da Sucata”, de 1990, o autor Silvio de Abreu reciclou dois anos depois a personagem Dona Armênia, interpretada por Aracy Balabanian, em “Deus Nos Acuda”. “Os fãs ficam satisfeitos porque têm parte dos seus desejos atendidos e também dão mais lucros para a empresa. Todo mundo ganha”, afirma Greco.
Don’t you know that you’re toxic?
Certo dia de 2020, o colunista de entretenimento do UOL Chico Barney percebeu que o filme “Scooby-Doo 2” estava entre os mais assistidos da Netflix no Brasil e achou que seria uma boa ideia postar um tweet dizendo que o filme era ruim. “Twittei que estava um pouco chocado com a popularidade do filme na Netflix, e começou uma onda fascinante de ataques e xingamentos. Fiquei com fama de hater do pobre cachorro. Mas eu adorava o desenho animado, só acho a adaptação cinematográfica lamentável.”
A reação desproporcional ao tweet pode estar relacionada a um curioso fenômeno apontado por Falcão. “A gente fetichiza e enaltece certos conteúdos que lá atrás nem eram bons. Mas, por estarem tão associados ao nosso passado, a um momento onde supostamente éramos mais felizes, acabam se transformando em coisas sagradas.” Ele dá como exemplo Star Wars, com o retorno do ator Hayden Christensen ao papel de Darth Vader na série “Obi-Wan Kenobi”, que deve estrear ainda este ano. “Recentemente, fiz o exercício de assistir à segunda trilogia de Star Wars. O Christensen e os filmes são horríveis, mas agora ele está sendo ovacionado como se fosse a volta do Marlon Brando. Não faz sentido.”
O caso vivido por Chico Barney pode servir mais como anedota do que como um exemplo de comportamento realmente violento dos fãs nas redes sociais, mas para Barney representa um dos principais aspectos negativos dos fãs: a pouca aceitação do contraditório. “Lamento porque sempre gostei muito de ler e ouvir pensamentos diferentes dos meus, acho que ajuda a ampliar os horizontes. Mas essa cultura de fã infelizmente acaba forçando uma visão muito acrítica de produtos culturais.”
O comportamento, na verdade, está alinhado ao fanatismo de forma geral, em que há uma clara tendência a pensar que só você e seu grupo estão certos enquanto o resto do mundo está errado, independentemente do que dizem as evidências, aponta o psicólogo Fabrício Guimarães. Até por isso, segundo ele, os fãs tendem a se unir apenas a quem pensa de forma semelhante, que chega para confirmar suas visões de mundo. “O risco é perder a possibilidade de ter novos conhecimentos e oportunidades, gerando um enrijecimento cultural.”
Apesar dos pesares, hoje a visão do fã como tóxico ou sem senso crítico já é menos generalizada do que no passado, de acordo com Greco. “Antes não existia o orgulho de ser fã que existe hoje porque todos eram vistos como assediadores”, afirma. Hoje, ela diz que até quem estuda o tema de forma séria não tem problema em se assumir fã de algo ou como parte de alguma comunidade do tipo. “Ainda existem os fãs tóxicos e mais loucos. Dependendo do nível de obsessão, faz parte da chamada cultura ‘stan’, que é um pouco drástica. No caso de crimes ou violência, no entanto, eu não culparia um produto da cultura pop, é mais um traço da pessoa.”
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