A Inteligência Artificial vai roubar os empregos das mulheres? — Gama Revista
Por que as mulheres trabalham tanto?
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Isabela Durão

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Reportagem

A Inteligência Artificial vai roubar os empregos das mulheres?

Em cargos mais vulneráveis à IA, como atendimento ao cliente, mulheres também vêm usando menos a tecnologia no cotidiano

Leonardo Neiva 03 de Março de 2024

A Inteligência Artificial vai roubar os empregos das mulheres?

Leonardo Neiva 03 de Março de 2024
Isabela Durão

Em cargos mais vulneráveis à IA, como atendimento ao cliente, mulheres também vêm usando menos a tecnologia no cotidiano

O avanço da inteligência artificial (IA) nos últimos anos tem tirado o sono de profissionais de boa parte dos setores do mercado de trabalho. Uma pesquisa recente, no entanto, aponta que alguns — ou algumas — podem ter ainda mais motivos para se preocupar.

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A principal revelação do estudo realizado na Universidade da Carolina do Norte é que oito em cada dez profissionais mulheres nos Estados Unidos (cerca de 59 milhões delas) estão em cargos altamente expostos às mudanças geradas pela IA — contra seis a cada dez homens. Não significa, é claro, que todas essas profissionais serão demitidas, mas parte de suas funções deve ser automatizada nos próximos anos.

“Isso acontece porque homens tendem a assumir mais trabalhos manuais, menos expostos à tecnologia. Então não é que a IA está mirando mulheres, é que elas ocupam mais posições que devem ser automatizadas”, explica a Gama Mark McNeilly, professor de marketing da universidade e coordenador da pesquisa. Aqui, ele se refere a áreas como administração, vendas e ciências sociais, que podem sofrer transformações profundas.

Embora ainda não haja muitas pesquisas do tipo no Brasil, um outro estudo realizado pela empresa britânica Flexjobs, especializada em trabalho flexível, aponta um gap de gênero no próprio uso da tecnologia. Enquanto 54% dos homens britânicos vêm utilizando IA no seu cotidiano pessoal e profissional, apenas 35% das mulheres têm feito o mesmo.

Na opinião de McNeilly, essa diferença tem a ver com a disparidade de objetivos de mulheres e homens no mercado de trabalho: “Pesquisas mostram que elas tendem a se interessar mais por trabalhos que lidam diretamente com pessoas, e homens costumam buscar cargos que lidam com coisas”, resume.

Não adotar a IA desde já, no entanto, pode ter um custo alto. “Existe um ditado que diz que ninguém vai ser substituído pela IA, mas por alguém que sabe usá-la”, afirma o professor. “Se mulheres estão menos animadas em testá-la, então também enfrentam um risco maior de serem substituídas.”

Profissionais entrevistadas pela BBC apontam, além da disparidade na presença de mulheres atuando no setor de tecnologia, uma falta de confiança no uso de IA e a preocupação de que a ferramenta pode acabar calando suas vozes e personalidades. “Estamos caminhando para um espaço onde não apenas seus clientes não o reconhecerão pessoalmente, mas você também não os reconhecerá”, disse ao veículo a estrategista de negócios Alexandra Coward.

Os preconceitos da tecnologia

Os aspectos excludentes da IA, que refletem desigualdades típicas da nossa sociedade, são esperados justamente porque quem define os parâmetros dessas tecnologias são equipes pouco diversas, formadas principalmente por homens brancos. É o que aponta a especialista em gestão de recursos humanos e inclusão tecnológica Andreza Rocha. “O acesso à tecnologia é feito para excluir”, diz a fundadora do hub AfrOya, que promove a inserção e o desenvolvimento de profissionais negros no ecossistema de tecnologia e inovação.

A especialista também considera que mulheres, em especial mulheres negras, que foram historicamente excluídas do mercado profissional e da educação, acabaram não acompanhando da mesma forma os processos de automação do trabalho, o que cria barreiras para esses grupos. A população periférica também possui menos acesso a recursos tecnológicos básicos, como internet e um letramento digital mínimo.

Por isso, para ela, é preciso pensar em inclusão antes mesmo de desenvolver novos produtos e serviços tecnológicos, como sistemas de recrutamento atualmente no mercado que, segundo a especialista, já nasceram com o viés de exclusão.

“Temos produtos à venda para empresas que mapeiam onde o candidato mora, o valor da passagem e a distância do trabalho”, conta Rocha, que também integra a comunidade global Black Women in Artifficial Intelligence. “A ferramenta em si já promove a exclusão. Num país em que discriminação por cor e raça é uma lei, como permitimos que certos serviços ainda estejam em operação, sem nenhuma regulação?”

Bala de prata

A principal preocupação relacionada à IA hoje tem a ver com seu impacto em cargos que exigem ações rápidas e repetitivas, aponta a psicóloga, mestre em administração e especialista em gestão estratégica de RH Edna Bedani. Ou seja, a princípio, implementar sistemas com base em IA é algo que pode atingir profissionais de qualquer gênero que atuem em funções com essas características.

O problema, porém, é que mulheres — e em especial mulheres negras — são maioria nessas áreas, incluindo setores administrativos e de atendimento ao cliente. Isso faz com que elas tenham 1,5 vezes mais chances de precisar buscar outra função ou cargo num futuro próximo, como aponta uma pesquisa conduzida pela consultoria McKinsey nos Estados Unidos. Pesquisas mostram que no Brasil mulheres jovens são maioria em setores como telemarketing, por exemplo, um dos que devem ser fortemente impactados pela IA.

“Historicamente, por conta do reconhecimento do trabalho, essas mulheres não estão na vanguarda do desenvolvimento tecnológico, à frente de pesquisas em ciência e inovação”, afirma Rocha. Embora mulheres negras representem 29% da população em idade ativa no Brasil — o grupo com maior representatividade na massa de trabalho do país —, a especialista aponta que os índices de informalidade, desemprego e salários insuficientes ainda são elevados entre elas, assim como a baixa escolaridade.

Mas a profissional também aponta que a IA não pode ser vista como uma “bala de prata”, capaz de resolver os problemas e substituir os trabalhadores em todas as áreas. “A IA é um meio, uma ferramenta. Dependendo da função, vai ser mais ou menos prejudicial. Não dá para acreditar na falácia de que é possível automatizar tudo.”

Bedani crê que as inovações tecnológicas como a própria IA não podem ser vistas sempre como ameaças. De acordo com a psicóloga e especialista em gestão, a questão está no viés que já existe na sociedade e nas instituições, um olhar que carrega a falta de diversidade, equidade e inclusão, e que pode acabar se infiltrando na maneira com que essas tecnologias são implementadas no contexto profissional.

Um setor branco e masculino

Apesar da desigualdade histórica, há o que se comemorar em relação à participação feminina na tecnologia do Brasil. De 2015 a 2022, houve um aumento de 60% na presença de profissionais mulheres na área, segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged). Mas esse crescimento é pequeno frente a uma realidade precária: elas ainda ocupam apenas 12,7% das vagas nesse mercado, segundo levantamento da empresa de pesquisa e recrutamento Revelo.

“As áreas de tecnologia ainda são dominadas por homens brancos, existem muitas barreiras para a igualdade nesse quesito”, reforça Rocha. Na visão da especialista em inclusão, somente um esforço massivo da sociedade poderia levar mais representatividade aos altos cargos da área. “Isso não acontece hoje porque quem detém o poder econômico não são essas pessoas, então elas não conseguem os investimentos necessários.”

Um caminho para uma política de longo prazo, na visão da profissional, é a Lei 14.553, aprovada em 2023, que altera o Estatuto da Igualdade Racial e exige que empresas privadas e instituições do setor público informem raça e etnia de seus trabalhadores. “É importante ter punições sobre isso. O objetivo é que o governo aja para garantir à população negra a igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos e o combate à discriminação.”

O Mapa de Talentos Negros em Tecnologia, pesquisa realizada pelo AfrOya em parceria com o Instituto Sumaúma, aponta que 50% dos trabalhadores negros da área no Brasil atualmente são mulheres. Profissionais que, segundo Rocha, “foram contempladas com políticas de acesso à graduação, têm boa qualificação e hoje trabalham com tecnologia de ponta”.

Um aspecto que Bedani nota entre as profissionais é o baixo interesse por atuar no setor de tecnologia e a cobrança constante para se igualar aos homens na utilização da IA. “Isso não deveria ser levado em conta, pois existe espaço para mulheres e homens atuarem, considerando as diferentes competências e jeitos de ser”, diz. Segundo Bedani, uma das primeiras coisas a fazer é trabalhar a autoconfiança das profissionais para além da preparação técnica.

Como Gama já explorou em reportagem, a síndrome de impostor é outro fenômeno que afeta boa parte das mulheres no mercado, a ponto de elas se candidatarem a 20% menos vagas que os homens numa plataforma como o Linkedin. Para a psicóloga e professora da PUC-SP, Renata Paparelli, isso pode estar ligado às novas formas de organização do trabalho, em que se busca a excelência a todo o custo. Com a chegada de novas tecnologias como a IA e as incertezas que envolvem seu funcionamento, é natural que elas se sintam menos seguras para incorporá-las em seu cotidiano.

De volta para o futuro

Mas ninguém precisa entrar em desespero. Em algumas áreas, por exemplo, a tecnologia deve facilitar o dia a dia dos trabalhadores, segundo McNeilly. Em outras, porém, a transformação pode sim ser radical. Para ele, o mais importante é começar a usar desde já tecnologias envolvendo IA, como ChatGPT e outros sistemas generativos, incorporando-as ao dia a dia. Por outro lado, num mundo ainda mais automatizado, McNeilly prevê que o contato humano deve se tornar cada vez mais importante. “Então dê asas às suas habilidades interpessoais, de interagir, criar redes e influenciar outras pessoas.”

Estar atento ao mercado e às mudanças ocorrendo à volta é a chave para não se deixar ser atropelado por elas, na visão de Bedani. Portanto, as mulheres devem demonstrar interesse pelos caminhos que estão surgindo no mercado e buscar novas competências necessárias em suas áreas de atuação. “Por isso, a importância do autoconhecimento e da atualização contínua”, destaca.

Na visão da profissional, distorções de gênero são históricas e criadas pela própria sociedade, e não um problema trazido pela IA. Portanto, ela defende que as empresas são as principais responsáveis por investir mais em seus colaboradores. Ou seja, dedicar o tempo necessário, respeitar as diferenças e ter paciência com uma jornada de aprendizado que envolve “errar, corrigir e acertar” de forma contínua.

“Elas devem se conscientizar de que a gestão estratégica envolve diagnosticar onde os profissionais estão, para onde vão e o que precisam para chegar lá, orientando e preparando continuamente”, afirma Bedani. “Quanto mais fidelizarem as pessoas e as prepararem para os desafios atuais e futuros, melhores resultados terão.”

Para Rocha, cabe também ao poder público fiscalizar e eventualmente punir a falta de práticas de inclusão e às corporações investir e desenvolver políticas sólidas de diversidade, para além das simples obrigações institucionais. “Precisa existir uma governança de diversidade e inclusão, não só fazer projetos sem nenhuma sustentação.”