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Reportagem

As máquinas vão substituir os artistas?

Cada vez mais populares, inteligências artificiais capazes de gerar imagens artísticas levantam debate sobre direitos autorais e precarização do mercado de trabalho

Leonardo Neiva 12 de Fevereiro de 2023
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As máquinas vão substituir os artistas?

Cada vez mais populares, inteligências artificiais capazes de gerar imagens artísticas levantam debate sobre direitos autorais e precarização do mercado de trabalho

Leonardo Neiva 12 de Fevereiro de 2023

Mesmo que nunca tenha ouvido o termo “vale da estranheza”, dificilmente você vai escapar desse fenômeno nos dias de hoje. Citado pela primeira vez num ensaio de 1970 do roboticista japonês Masahiro Mori, ele descreve o estranhamento que sentimos ao nos deparar com algo que se parece com um ser humano na aparência ou forma de agir — mas que tem sua natureza não humana traída por imperfeições sutis. Quanto mais impressionante a semelhança, maior o grau de estranheza dentro do “vale”, argumenta Mori.

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Mas como lidar com esse espectro de estranhamento numa era em que IAs são treinadas para criar obras de arte tão realistas que até parecem fotografias? Se você nunca ouviu falar em programas movidos por IA como Midjourney, DALL-E 2 e Stable Diffusion, o conceito é teoricamente simples: basta escrever com o máximo de detalhes o que gostaria de ver numa obra. Aí a inteligência artificial, que “aprendeu” previamente com uma enorme quantidade de imagens às quais tem acesso, produz pinturas digitais de acordo com essa descrição.

“Se você pede para o programa desenhar um elfo, ele busca o que as imagens com as quais foi treinado dentro desses parâmetros tinham em comum. Quais os pontos, as bordas e as combinações”, explica o consultor de inovação e professor da Singularity University, Ricardo Cavallini. Dependendo dos detalhes e da perícia do usuário com as palavras, o que inclui aspectos como texturas e iluminação, o resultado pode soar extremamente realista, pontuando alto na escala de estranheza, já que acaba por se trair nos detalhes — uma dica é ficar atento às mãos e dentes dos personagens.

As imagens geradas por inteligência artificial têm angariado tantos adeptos tão rapidamente que, nos últimos tempos, chegaram a servir até como cenários para uma nova animação da Netflix. Em setembro de 2022, a discussão sobre o tema ganhou alcance mundial depois que o artista e designer de games norte-americano Jason Allen levou o prêmio principal na competição de artes da Feira Estadual do Colorado com a pintura “Théâtre D’Opéra Spatial”. O detalhe é que a obra foi inteiramente concebida no programa Midjourney.

Se, por um lado, a classe artística se revoltou com o ocorrido, já que Allen não pintou ele mesmo o quadro, o artista argumentou que não enganou ninguém: a origem no IA estava clara desde a apresentação do trabalho. Vale lembrar que a IA não tem capacidade de criar arte sozinha. Afinal, ela precisa de uma descrição do usuário. Como fica claro por algumas das imagens geradas por IA que ilustram este texto, descrições muito simplificadas tendem a gerar imagens simples e de pouca complexidade estética. Por outro lado, quanto mais detalhado o texto, mais chances de a obra sair inclusive com as marcas e traços típicos do autor.

Um artista e escultor como o canadense Benjamin Von Wong, por exemplo, passou a usar a IA para explorar ideias iniciais de imagens que mais tarde pretendia transformar em obras físicas. “Em vez de ter que desenhar os conceitos um por um, posso simplesmente criá-los através de diferentes descrições”, contou em entrevista à revista Wired. Fãs de cinema também têm gastado tempo criando cenas de filmes que nunca existiram, ao combinar uma narrativa com o estilo único de um artista. Assim nasceram as assustadoras imagens de uma versão hipotética do filme “Tron” dirigida pelo chileno Alejandro Jodorowsky e uma reimaginação do universo de “Mad Max” por Tim Burton.

Num texto intitulado “O artista de IA DALL-E vai tirar meu emprego?”, a editora de fotos da New York Magazine, Megan Paetzhold, fez uma série de testes criando imagens com a ferramenta. No final, chegou à conclusão de que se tratava de um trabalho colaborativo entre homem e máquina. “Por mais atraentes que fossem as imagens geradas pelo DALL-E, ele nunca teria chegado a esses visuais sem minhas orientações e conhecimento”, afirmou no artigo. “Conseguir uma imagem satisfatória do programa requer criatividade e a experiência de como descrever essas ideias de maneira executável.”

Hoje a comunidade artística vem se dividindo entre atuar com ou contra os programas de criação de imagens por IA. Os dois principais pontos de debate se resumem à questão da autoria e ao mercado de trabalho. “Os artistas vêm num movimento contrário porque já está acontecendo uma precarização do trabalho. No mercado americano, vemos editores criando capas de livro usando IA”, afirma o designer Rafael Moco, diretor técnico de efeitos visuais no Globetrotter Studio. “Tem muita gente achando que isso vai acabar excluindo os artistas.”

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Com a palavra, os robôs

“Como um modelo de linguagem de IA, não sou capaz de pensar ou sentir emoções da mesma forma que os humanos. Ainda que possa ajudar a gerar trechos de texto considerados artísticos ou criativos, no fim é um humano que decide o significado e o valor dessas obras. A expressão artística e a criatividade são únicas da consciência humana e não podem ser replicadas por uma máquina.”

A resposta acima foi dada a Gama pela IA do ChatGPT, um dos programas mais populares de diálogo e produção automatizada de textos. É também uma das poucas maneiras acessíveis de entrevistar um robô, que, ao longo da conversa, se mostra bastante honesto sobre as próprias limitações. Faz questão de lembrar, por exemplo, que toda arte criada por IA provém não de emoções, experiências de vida ou uma visão particular, mas de algoritmos e modelos matemáticos. “A arte produzida por IA é geralmente inspirada por estilos e padrões já existentes, e os resultados podem variar em qualidade e originalidade.”

Nessa última frase, a IA do ChatGPT também acaba metendo o dedo numa ferida que tem sido uma das principais fontes de controvérsias sobre o tema. Se uma IA precisa de extenso treinamento para produzir obras que tenham algum sentido estético, sua fonte primária deve ser a arte que já existe e está disponível na internet. Toda ela, claro, feita por mãos humanas — e na maioria das vezes utilizada de forma gratuita.

“Sem esse treinamento, programas como o Midjourney não existiriam”, sentencia Moco. Vendidos a mensalidades de no máximo algumas dezenas de dólares, não é de se admirar que os olhos de muita gente na indústria tenham crescido com a novidade. Afinal, assinar um dos programas disponíveis online sai incomparavelmente mais barato do que contratar um designer. O absurdo da situação não passou despercebido para boa parte da categoria.

“Os mesmos artistas que tiveram suas artes capturadas para treinar uma IA estão sendo substituídos por ela. E a coisa só sai mais barata por conta dessas pessoas, que não estão recebendo nada pelo uso de suas obras”, considera o designer.

De quem é o filho?

No início do ano, um grupo de artistas norte-americanas processou plataformas como Stable Diffusion, Midjourney e DeviantArt por infringir os direitos autorais ao aplicar sem autorização suas obras no treinamento de IAs. O texto da ação argumenta que as empresas “se beneficiam comercialmente e lucram com o uso de imagens com direitos autorais”, sendo que os resultados desse treinamento “estão sendo vendidos na internet, drenando os ganhos dos próprios artistas.”

Segundo o advogado e pesquisador Pedro Lana, especialista em propriedade intelectual e direito digital, nos países da União Europeia, o uso de obras com direitos autorais para treinar máquinas é permitido apenas em situações específicas. Em geral, quando o foco são trabalhos de pesquisa, sem fins comerciais. “Se for para uso comercial, tem que pagar os royalties das obras. E a tendência em outros lugares do mundo é seguir nessa mesma direção.” No Brasil, o tema vem sendo discutido dentro do marco legal do desenvolvimento e uso de IA, que tramita no Congresso desde 2020.

Mas até a tarefa de identificar obras usadas para treinar algoritmos e produzir outras imagens pode ser um desafio. “Muitas vezes nem os programadores sabem como o algoritmo chegou naquele resultado ou o que ele de fato usou para treinar”, aponta Lana. Para o advogado, uma possível solução é que as empresas utilizem como fonte bases de dado sobre as quais retêm os direitos ou então negociem com alguma delas o uso das imagens, garantindo uma quantia a ser paga aos autores.

O mais curioso é que a autoria das próprias obras geradas por IA também está em debate. Na maior parte dos países, incluindo o Brasil, é obrigatório existir algum nível de participação humana para que se possa atribuir autoria. “Mas ainda há uma disputa sobre titularidade e autoria pelas empresas que criaram esses algoritmos”, afirma o advogado. Outro fator complicador é a intervenção humana. Se houver uma explicação detalhada como base para a criação de uma imagem por IA, em que se perceba a voz de um autor por trás do teclado, diz Lana, é possível que o usuário acabe sendo considerado criador daquela obra.

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Substituir ou complementar

Para o designer Rafael Moco, o grande problema das plataformas de criação de imagens é o foco em substituir, e não agregar ao trabalho do artista. Como exemplo positivo, ele cita o uso de IA dentro de um programa como o Photoshop, numa ferramenta específica para criar texturas. “Você pode tirar uma série de fotos de uma superfície, e a IA monta um material completo para usar no 3D”, explica. “Antigamente, isso levava tempo e era muito custoso.”

Sua ideia, portanto, é que a IA venha como um complemento, facilitando o trabalho dos artistas. Até porque, por mais que as descrições do usuário sejam detalhadas, não dá para ter controle absoluto sobre o resultado final. “É tentativa e erro, um algoritmo randômico que em determinado momento chega a um resultado que a pessoa acha ok”, resume Moco. O consultor de inovação Ricardo Cavallini também defende que artistas já comecem a usar as novas tecnologias para se inspirar e fazer testes. “Cabe a cada um saber qual o seu limite, o que facilita e o que macula sua arte e seu processo criativo.”

No próprio mercado de trabalho, o artista e professor de novas mídias na Universidade de Arte de Berlim, Luiz Zanotello, ainda vê como raro o uso exclusivo da IA para se chegar a um produto final. A tendência, segundo ele, é que isso se torne uma pequena etapa dentro de um processo muito maior. “Conheço pessoas que trabalham com cinema e ilustração que utilizam essas ferramentas para ter uma ideia geral de uma imagem, criando algo diferente a partir delas.”

Atualmente, o artista vem desenvolvendo uma máquina que usa um algoritmo para tentar entender que é uma máquina, um dilema que o artista pretende transformar em experiência estética. Se, por um lado, considera um problema o pensamento mágico de que a IA é capaz de fazer tudo sozinha, por outro, acredita que ela pode representar uma revolução nos moldes do que significou a chegada da fotografia no século 19. “Essas coisas sempre criam um pequeno terremoto no começo, mas acabam trazendo novas possibilidades para o saber e a imaginação”, pondera.

Na opinião do professor, a aversão ao uso de IA também vem do fato de ela tocar num ponto doloroso para nós, levantando questionamentos fundamentais sobre o que significa ser humano. “Quando uma tecnologia complexa nos surpreende dentro de uma capacidade humana como a criatividade, na qual acreditávamos ser o centro do universo, começamos a nos perguntar esse tipo de coisa.” Se usada por um leigo na produção de arte, a IA pode até oferecer uma possibilidade não apenas lúdica, mas de descoberta, diz Zanotello. “Ela diz algo sobre nossa imaginação, colocando na tela coisas que muitas pessoas sentem, mas ainda não são capazes de expressar de forma visual.”