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ReportagemPor que os indígenas são tão pouco representados pelo Censo?
Apesar de salto na pesquisa nacional, povos indígenas ainda sofrem com processo histórico de apagamento de sua identidade, aparecendo como menos de 1% da população
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Por que os indígenas são tão pouco representados pelo Censo?
Apesar de salto na pesquisa nacional, povos indígenas ainda sofrem com processo histórico de apagamento de sua identidade, aparecendo como menos de 1% da população
Hoje, 1,69 milhões de indígenas vivem no Brasil. Ao menos é o que diz a última pesquisa Censo, realizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) por todo o país em 2022. Apesar de representar somente 0,83% do total de habitantes em terras nacionais — cifra que pode parecer pequena para os povos originários, que já reinaram sozinhos no território —, o número foi parcialmente comemorado por instituições e lideranças indígenas. Afinal, ele representou um salto considerável em relação à pesquisa anterior, quando apenas 896 mil pessoas, quase metade do número atual, se declararam indígenas.
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A representatividade em meio à população brasileira tem sido uma questão central no debate sobre povos indígenas nos últimos anos. Tanto que a realização do Censo foi precedida por um movimento como o “Não sou pardo, sou indígena”, mobilização nacional para incentivar a autodeclaração indígena na pesquisa.
A inclusão da palavra pardo na campanha, aliás, passa longe de ser aleatória. Pelo contrário, o termo vem sendo combatido como parte de uma estratégia histórica de apagamento da permanência indígena no Brasil.
A palavra foi usada a primeira vez por aqui pelo célebre escrivão de Cabral, Pero Vaz de Caminha, justamente para descrever os povos nativos, que ainda não tinham recebido nenhuma denominação. Séculos depois, no primeiro Censo feito em terras brasileiras, em 1872, a categoria indígena também não existia. Em vez disso, os povos originários foram encaixados nas categorias pardo e caboclo, termo que designa o mestiço de branco com indígena.
A omissão não foi um descuido. Historicamente, ela integrou uma estratégia que visava o desaparecimento dos indígenas da população brasileira, aponta o historiador e autor do livro “Pardos” (Appris, 2021), Denis Moura dos Santos. Mesmo depois que a opção caboclo sumiu do Censo, os povos indígenas seguiram sem categoria própria, sendo quase sempre listados como pardos.
“A ideia era a população indígena diminuir a ponto de sumir”, explica o estudioso do tema. “Em Alagoas, terra da minha mãe, por muito tempo se falou que não havia mais indígenas. A miscigenação era até estimulada para diminuir essa população.”
Embora os povos originários do Brasil sigam de pé na luta por seus territórios e identidades, sua existência levou outro século para ser reconhecida pelo Censo. Foi na edição de 1991 da pesquisa, em parte pressionada pelos direitos conquistados na Constituição de 1988, que a categoria indígena foi incluída pela primeira vez na pesquisa.
Hoje, o IBGE considera a categoria pardo como a miscigenação entre duas raças, levando em conta pretos, brancos e indígenas. No entanto, no Censo, essa definição parte de uma declaração pessoal. Ou seja, cada um identifica por si o grupo ao qual pertence.
A representação orienta a criação de políticas públicas voltadas para a população indígena, essenciais para suas vivências e sobrevivências
A representação é importante não só por conta da visibilidade, mas também pelo peso que carrega. É ela que orienta a criação de políticas públicas voltadas para a população indígena, essenciais para suas vivências e sobrevivências num ambiente contemporâneo hostil tanto por entes políticos quanto pelo agronegócio que ameaça seus territórios. “O grande número é a visibilização, mas o importante mesmo é chegar até eles a política, a escola, as vacinas”, resume a coordenadora do Grupo de Trabalho de Povos e Comunidades Tradicionais do IBGE, Marta de Oliveira Antunes.
E esse apagamento segue acontecendo de diferentes formas, como aponta o Cacique Ramon Tupinambá, liderança do território indígena de Olivença, de Ilhéus, no sul da Bahia. Para ele, a tese do “indígena puro” idealizado, uma suposta identidade originária que não sofreu miscigenação e passou por poucas mudanças desde seus ancestrais, vem inclusive auxiliando na negação da identidade indígena. “É uma questão que hoje vem sendo discutida dentro do [Projeto de Lei do] Marco Temporal e que nega todo um processo de violências cometidas contra os indígenas lá atrás.”
Um novo velho Censo
A campanha de conscientização sobre a importância da autoidentificação ajuda a explicar o salto na porcentagem do último Censo, mas não é o único fator envolvido. O próprio IBGE encabeçou mudanças importantes na sua metodologia de pesquisa, que também impulsionaram o fenômeno.
Antunes aponta como uma das principais a criação de uma pergunta extra no questionário — “você se considera indígena?” —, que passou a ser aplicada em territórios tradicionais e locais de concentração indígena pelo Brasil. Apesar de parecer uma simples repetição da categoria já existente na pesquisa, a profissional enfatiza que o questionamento tem relevância crucial para evitar a subnotificação.
“A gente se deparou com uma realidade diferente dentro da terra indígena. Na hora da entrevista, um cacique respondeu que todos os moradores de seu domicílio eram pretos”, lembra a representante do IBGE. Quando questionado novamente, “ele disse que tinha sido perguntado sobre cor, e não sobre etnia.” Daí, portanto, a necessidade de reforçar a pergunta, ela justifica.
Além da melhora na localização de territórios, tanto pelo avanço de tecnologias de mapeamento quanto por ações colaborativas em parceria com lideranças indígenas e acadêmicos, houve também uma mudança nas estratégias de abordagem.
“Antes, o recenseador entrava nas terras como se circulasse por uma área rural ou urbana qualquer, sem cuidado. É como se alguém entrasse na sua casa e sentasse no seu sofá para só então perguntar se podia bater na porta”, explica Antunes.
Dessa vez, o IBGE passou a buscar os principais líderes locais e a pedir autorização para circular no território, contando inclusive com o auxílio deles na hora de convencer os moradores a responder. “Os lugares onde não conseguimos entrar nos domicílios indígenas hoje são ínfimos em relação aos dados globais.”
A identidade e o foro íntimo
Há também o fator do crescimento demográfico natural dos povos indígenas nesses 12 anos, que, segundo a coordenadora do IBGE, acontece mais rápido do que nas outras populações. Ao considerar o aumento generalizado dos pardos, pretos e a inclusão dos quilombolas, Antunes enxerga que os brasileiros “vêm se permitindo ampliar sua diversidade”.
Nos próximos meses, o IBGE ainda vai divulgar dados mais detalhados, organizando a população indígena por etnias, cidades e características domésticas, o que deve ajudar a orientar as políticas públicas, segundo a especialista. Até 2024 devem haver também maiores informações sobre a presença indígena em contexto urbano.
Muitos indígenas precisaram apagar sua identidade para se inserir nas cidades e num mercado de trabalho
Para a profissional, se ainda há uma subnotificação, isso se deve “mais ao foro pessoal do que institucional”. Ela se refere especialmente à autodeclaração, que depende de um complexo processo de pertencimento étnico-racial, às vezes num contexto urbano repleto de preconceitos.
“Muitos indígenas precisaram apagar sua identidade para se inserir nas cidades e num mercado de trabalho. Alguns de seus filhos estão num processo de reemergência étnica que não necessariamente chega para todos de forma tranquila. São pessoas que não sabem suas etnias, perderam a língua e vêm num contexto de afirmação, mas vivem muita dificuldade em relação a isso.”
Memória e pertencimento
Foi um processo pelo qual passou a escritora e pesquisadora Trudruá Dorrico, da etnia Macuxi. Criada numa família que vivia longe da política de identidade e do movimento indígena, ela foi entendendo aos poucos aspectos da sua ancestralidade, como a língua e a cultura, que acabaram construindo a consciência de pertencer a um povo. “Ser indígena para minha família é ter uma memória, mas ser basicamente brasileiro”, reflete Dorrico.
Apesar da mãe e o avô falarem desde sempre a língua Macuxi, ela só se aprofundou mesmo em sua identidade ao pesquisar literatura indígena no doutorado. “Entender isso foi o que mudou minha vida, ter consciência de que sou Macuxi, indígena, e o que isso implica em relação à identidade originária, indígena e brasileira”, relembra. Até então Julie Dorrico, ela passou a assumir o nome Trudruá, dado pelo avô, e que significa formiga em Macuxi.
Na visão da escritora, a autodeclaração indígena inclui um nível de consciência política e cultural, um processo de letramento étnico-racial pelo qual muitos indígenas distantes de suas raízes vêm passando. Mas também considera importante que, dentro das instituições brasileiras, haja maior preparo para que esse reconhecimento seja respeitado. “Teve uma família de uma amiga que declarou ser Macuxi, mas os recenseadores disseram que eles precisavam ser registrados como pardos”, conta.
A autora de “Eu Sou Macuxi e Outras Histórias” (Caos e Letras, 2019) ainda aponta que, por mais que os números oficiais tenham crescido, eles são pequenos diante da dimensão da presença indígena pelo país. À frente do perfil @leiamulheresindigenas no Instagram, a escritora destaca a relevância dos movimentos culturais e artísticos para fortalecer essa consciência e lutar contra o apagamento. “Somando nesse coro coletivo, temos conseguido passar mensagens, letramentos e combates antirracistas”, declara Dorrico, que faz questão de indicar artistas Macuxi como os pintores Carmézia Emiliano e Jaider Esbell (1979-2021), e escritores a exemplo da poeta Sony Ferseck, finalista do Prêmio Jabuti, e Mathilde Makuxi.
“A memória Macuxi é muito antiga. Se formos precisar, o tempo dela ultrapassa dois bilhões de anos”, diz a escritora, em referência às histórias Macuxis em torno do Monte Roraima, que teria sido encontrado num passado distante pelos ancestrais do seu povo. “Quando a gente conhece as narrativas e a literatura Macuxi, passa a acessar essa memória do pertencimento e de como lidar com ele, que habita esse território.”
“Muita terra para pouco índio”
A ativista e poeta indígena jamille anahata, pesquisadora de relações étnico-raciais, considera relevantes os avanços do último Censo, especialmente o direito de se declarar indígena sem ser questionado ou sofrer constrangimento. No entanto, para ela, isso não se reflete em todos os lugares. “Ao acessar equipamentos públicos, principalmente de saúde, mas também de áreas como educação, muitas pessoas não são consideradas indígenas só por estarem na cidade”, exemplifica.
Outro problema que aponta é a própria visão sobre os pardos no Brasil, excessivamente focada na presença de pessoas negras e brancas. “Só que, entre os pardos, tem uma parcela que vem da ascendência indígena e não é negra só por não ser branca”, declara.
Muitas vezes não se fala dos povos indígenas porque já se presume que isso é passado
A prática acaba reforçando o discurso equivocado de que os povos indígenas foram dizimados no Brasil, e que por isso não deveriam ser considerados nos discursos e políticas étnico-raciais, diz a pesquisadora. “Muitas vezes não se fala dos povos indígenas porque já se presume que isso é passado.”
Tudo isso, segundo anahata, impacta a principal luta dos movimentos indígenas na atualidade: a dos direitos sobre seus territórios. “Quando tem subnotificação, uma população que parece muito irrisória, se fortalece o discurso hegemônico de que ‘existe muita terra para pouco índio'”, considera. Isso apesar da presença indígena em terras tradicionais ser comprovadamente positiva para a conservação da natureza nessas regiões, trazendo benefícios para toda a população.
O discurso também ajuda a tornar invisíveis os sofrimentos dos indígenas que precisam se deslocar de seus lugares de origem para as periferias urbanas, passando por um enfraquecimento de sua cultura e autoestima, e perda de acesso a serviços básicos, que pode levar até a problemas de saúde mental. “Temos um número alarmante de suicídios de pessoas indígenas, dado que carrega esse sofrimento, o lugar da solidão, do racismo, de não ser respeitado.”
Na visão do Cacique Ramon Tupinambá, do território indígena de Olivença, em Ilhéus, a identidade muitas vezes se resume a um pertencimento historicamente negado aos povos indígenas brasileiros. “Se você vai para o Amazonas, vê vários povos originários que não se assumem assim, mas como ribeirinhos. No Maranhão, outros se declaram quilombolas. Os territórios indígenas são espaços que recepcionaram essas pessoas que vieram de fora. Então é tudo uma questão de pertencer, se sentir como parte de algo.”
A versão inicial deste texto precisou ser modificada para incluir a definição do IBGE para pardos e o critério de autoidentificação do Censo.
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