Coluna da Marilene Felinto: A busca inglória por um pardo legítimo — Gama Revista
COLUNA

Marilene Felinto

A busca inglória por um pardo legítimo

Chama a atenção o número de recusas à autodeclaração como pardos de estudantes que se candidataram a ingresso na USP pelo sistema de cotas raciais

15 de Março de 2024

Começou o ano letivo universitário e, a partir dele, a busca por um pardo legítimo para ocupar vaga em universidades públicas pela política de ações afirmativas, tarefa difícil, quase inglória. Chamou a atenção, neste início de ano, o número de recusas à autodeclaração como pardos de estudantes que se candidataram a ingresso na Universidade de São Paulo (USP), por exemplo, pelo sistema de cotas raciais.

Tanto no seu campus da capital paulista quanto no interior, as comissões de heteroidentificação da USP negaram matrícula a meia dúzia de candidatos que se inscreveram nas provas de acesso autodeclarando-se pardos pelo sistema chamado PPIs (pretos, pardos e indígenas).

A universidade alega “tomar todo o cuidado” para que a visualização das “características fenotípicas” seja feita de maneira adequada. A primeira averiguação dos candidatos é realizada de forma virtual. Em caso de dúvida, duas comissões compostas por cinco membros cada ficam encarregadas da nova verificação. Segundo o “Guia de Heteroidentificação” disponibilizado pela Fuvest (Fundação Universitária para o Vestibular da USP), haveria uma última verificação de forma presencial, “realizada por uma única banca”.

Notável também a composição das comissões, segundo o “Guia”, em que pelo menos dois dos cinco membros são escolhidos pela Coligação dos Coletivos Negros da USP e, deduz-se, são provavelmente negros. Quanto aos demais três membros, o manual não esclarece se são negros, brancos ou de outra etnia.

Tirantes as tentativas de fraude e má-fé – também chamadas hoje de “afroconveniência” –, muito evidentes no exame de fotografias de alguns candidatos autodeclarados pardos e de traços nitidamente mais brancos do que negroides, os demais casos entram no nebuloso debate do “colorismo” em versão brasileira.

O colorismo, segundo Maria Andrea dos Santos Soares (Dicionário de Relações Étnico-Raciais Contemporâneas, Perspectiva, 2023) surgiu como conceito nos Estados Unidos, nos anos 1980, e define-se como o tratamento prejudicial ou preferencial de pessoas de uma mesma raça baseado somente na sua cor – quanto mais preta a pele, maior o grau de discriminação racista o indivíduo sofrerá.
Quando se trata da classificação por fenótipo (cor da pele, tipo de cabelo, formato de nariz etc.), mais complexo o caso brasileiro fica, dada a vasta gama cromática resultante da mestiçagem da nação – fenômeno que já serviu tão perversamente tanto à ideologia do branqueamento do tipo físico nacional quanto à mentira da democracia racial.

É de se perguntar se não seria mais fácil – num mundo ideal risível, obviamente inviável mas real – a USP adotar parte do conceito de colorismo, criando um critério empírico para verificação da fidelidade das autodeclarações: averiguar nos casos duvidosos daqueles que se dizem pardos testando o grau de racismo que experimentariam, ou o tratamento que receberiam ao adentrar um hotel cinco estrelas, um restaurante de luxo, uma loja de grife, um shopping center frequentado pela classe A.

Um candidato de mãe branca e cujo pai se define como pardo é necessariamente pardo? E quem tem avós pardos, mas pais brancos, será definido como pardo?

Ora, no Brasil, negro é aquele sujeito que (por sua pele preta, seu cabelo crespo, seu nariz achatado) é imediatamente barrado nessas situações, olhado com desconfiança, perseguido, humilhado e violentado. Ao que tudo indica, porém, o padrão adotado pelas comissões de heteroidentificação tropeçam na definição do fenótipo porque o que se leva em conta é também o necessário território do “pertencimento”, por demais amplo e nebuloso. A questão é: um candidato de mãe branca e cujo pai se define como pardo é necessariamente pardo? E quem tem avós pardos, mas pais brancos, será definido como pardo?

Em pelo menos dois casos de estudantes autodeclarados pardos para ingresso na USP, mas que tiveram a matrícula negada – Alison dos Santos Rodrigues e Glauco Dalalio do Livramento, ambos de cabelo levemente encaracolado e pele quase escura –, basta examinar as fotografias dos jovens e comparar o fenótipo deles com o de Regina Lúcia dos Santos, 67 anos, histórica coordenadora do Movimento Negro Unificado em São Paulo, e ainda muito atuante, com canal no Youtube inclusive. Regina tem cabelo liso, pele ligeiramente amarronzada e nariz meio chato. E só. Cabelo liso deve ser traço aprovado como comprovação de tipos pardos? Se Regina se identifica como negra (categoria que inclui pardos e pretos), porque esses dois estudantes não podem fazê-lo? A dúvida, a incoerência e a indefinição estão, em casos assim, no cerne do próprio movimento negro, então.

O imbróglio não é de hoje, e tem origem na classificação racial oficial, definição de gabinete, instituída há tempos pelo IBGE – branco, preto, pardo, indígena –, depois contestada pelo Movimento Negro na campanha para que pardos se identificassem como negros no Censo brasileiro, ação de extrema importância para o reconhecimento e a construção da identidade negra no Brasil. Tanto foi assim que, de acordo com os resultados do Censo 2022, pela primeira vez, desde 1991, a maior parte da população brasileira (45,3%) se declarou como parda; o equivalente a cerca de 92,1 milhões de pessoas.

Um país de pardos, verdade, mas ainda em busca do conceito de pardo legítimo, que não existe. O próprio termo “pardo” é ruim, palavra esvaziada e de conotação negativa, que não descreve nada de fato. No Dicionário Aulete digital, “pardo” tem a seguinte definição bizarra: “a cor fosca entre o branco e o preto, ou entre o amarelo e o marrom”, ou como “branco sujo”.

O próprio termo ‘pardo’ é ruim, palavra esvaziada e de conotação negativa, que não descreve nada de fato

Como afirma o professor Kabenguele Munanga, “A luta dos movimentos negros brasileiros contemporâneos que enfatiza muito o resgate de sua identidade étnica e a construção de uma sociedade plurirracial e pluricultural na qual o mulato possa solidarizar-se com o negro, em vez de ver suas conquistas drenadas no grupo branco, desmente a ideia de uma identidade mestiça conscientemente consolidada” (“Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil – Identidade nacional versus identidade negra”, 1999).

Fato é que a desconfiança pelas autodeclarações de pardos vai persistir ainda muito tempo, uma vez que nenhuma comissão de heteroidentificação pode provar se o alegado pardo tem de fato consciência coletiva pró-negro ou se está em verdade se servindo de afroconveniência para garantir direitos de reparação que não são seus.

O pior desenlace de toda essa história é o seguinte: os estudantes com matrícula recusada estão entrando na justiça para reverter a posição da universidade. Ou seja, estão entregando a decisão a “advogados especialistas em cotas” (provavelmente brancos) e à justiça branca, seletiva e antinegro, tudo o que não poderia acontecer, porque tira, uma vez mais, dos próprios negros a autonomia sobre sua história, seus corpos e suas identidades subalternizadas.

Conclusão: no Brasil, bom mesmo é ter nascido branco, ser branco, ter nas mãos a justiça que vai julgar quem é quem, ter no bolso o dinheiro que põe e tira, que diz quem fica e quem sai. Bom mesmo é ser branco, que domina a zorra toda como quer e quando quer. Bom mesmo é ser branco.

Marilene Felinto nasceu em Recife, em 1957, e vive em São Paulo desde menina. É escritora de ficção e tradutora, além de atuar no jornalismo. É bacharel em Letras (inglês e português) pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP). É autora, entre outras dez publicações, do romance As Mulheres de Tijucopapo (1982 – já na 5ª edição, ed. Ubu, 2021), que lhe rendeu o Jabuti de Autora Revelação e é traduzido para diversas línguas. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mulher Feita (ed. Fósforo, 2022).

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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