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SemanaDo amor e outras histórias
Contra o conservadorismo crescente e o apagamento sistemático, escritoras e escritores LGBTQI+ lançam novas narrativas para a paixão e ganham mais espaço no universo literário
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Contra o conservadorismo crescente e o apagamento sistemático, escritoras e escritores LGBTQI+ lançam novas narrativas para a paixão e ganham mais espaço no universo literário
Mais de 2500 anos separam os versos da poeta grega Safo das imagens de um beijo gay entre os personagens Hulkling e Wiccano na HQ “Vingadores: A Cruzada das Crianças” (Editorial Salvat, 2017). Celebrada por cantar o amor entre mulheres no século 6 a.C. e uma das poucas vozes femininas da Antiguidade a atravessar os séculos, a popularidade de Safo em seu tempo provavelmente entraria na mira do ex-prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella, que mandou recolher os exemplares da história em quadrinhos durante a Bienal do Livro carioca em 2019.
Como os fragmentos da obra de Safo atestam, pelo menos desde a Grécia Antiga histórias de amor LGBTQI+ existem na literatura. E se, durante muito tempo, a elas foi reservado um lugar de clandestinidade e censura, hoje despertam cada vez mais a atenção do público e da crítica, a despeito do avanço do conservadorismo personalizado em Crivellas e afins. “É algo que antes podia ser muito restrito à pesquisa acadêmica de resgate e agora também é genuíno em muitas pessoas leitoras. É uma coisa que tem se expandido”, observa Natália Borges Polesso. Estudiosa do tema e escritora, ela venceu o prêmio Jabuti em 2016 com “Amora” (Não Editora, 2015), coletânea de contos protagonizados por mulheres lésbicas.
Estamos falando por nós mesmas e podendo contar nossas próprias histórias de amor, do nosso ponto de vista
Polesso faz parte de uma geração de autoras e autores que ocupa não só cada vez mais estantes mas espaços de prestígio literário, como premiações e grandes eventos — a última edição da Flip, por exemplo, teve mesas debatendo a sexualidade com Paul B. Preciado, Caetano Veloso, Danez Smith e Jota Mombaça —, com produções que fogem às narrativas cisheteronormativas cristalizadas no imaginário dos leitores ao longo do tempo. “Hoje a gente tem muito mais interesse de pessoas LGBTQI+ escrevendo sobre personagens LGBTQI+, e isso não era tão óbvio há alguns anos”, diz a escritora.
De fato, o apagamento e o tabu assombraram autores e obras que abordavam o amor e a sexualidade não-padrão. Mesmo consagrados no cânone, nomes como Mário de Andrade e Virginia Woolf tiveram esse viés de sua vida e literatura empurrados para debaixo do tapete, muitas vezes tratados de forma ambígua ou velada. “O caso não foi de marginalização, mas outros elementos foram colocados em jogo, fazendo com que as questões gays presentes nas obras não fossem vistas e analisadas pela crítica e pelos leitores”, explica Mário César Lugarinho, professor e pesquisador do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP.
Um olhar que vem se transformando: não só há um resgate daquelas e daqueles que caíram no esquecimento — de Maria Firmino dos Reis, primeira romancista negra do Brasil e que também escreveu poemas de amor para mulheres, a Ruddy Pinho, primeira pessoa trans a publicar um livro no país e a se candidatar a uma cadeira na Academia Brasileira de Letras — como uma ressignificação dos mais reconhecidos. “Estamos caminhando para outros entendimentos de sexualidade e de relacionamento, e os apagamentos começam a ser vistos, compreendidos, mencionados. Isso muda nosso quadro de referência tanto historicamente quanto na produção contemporânea”, diz Polesso.
Da tragédia aos amores possíveis
Não à toa, a marginalização das histórias de amor LGBTQI+ conferiu a elas rótulos e enredos atrelados às normas da sociedade patriarcal. Até em autores celebrados por dar voz a essas paixões, como Caio Fernando Abreu e Cassandra Rios, ou em best-sellers recentes do calibre de “Me Chame Pelo Seu Nome” (Intrínseca, 2018), paira por vezes uma atmosfera de solidão, infelicidade ou perversão. “Existe nessas produções um padrão da irrealização do amor entre pessoas iguais”, avalia Lugarinho.
Por isso, questionar essa forma de retratar os romances têm feito parte da crítica e da escrita atuais. “Há uma onda de mostrar que as personagens eram problemáticas, dando mais uma volta no parafuso ao olhar para essas obras”, afirma Polesso. “Temos conseguido ler mais diversamente a literatura LGBTQI+, porque anos atrás era só insinuação ou aquela coisa triste, sofrida, proibida, às vezes perversa. Esse discurso já não é mais o mesmo.”
Escrever sobre os amores possíveis, então, é uma grande virada na criação literária LGBTQI+ da última década. “Estamos falando por nós mesmas e podendo contar nossas próprias histórias de amor, do nosso ponto de vista”, diz a poeta trans Kika Sena. “É um exercício porque isso sempre veio da perspectiva e do estereótipo do sofrimento, como se nossos corpos tivessem esse destino justamente associado a uma normatividade que define a quem pode pertencer o amor.”
Para Sena, no entanto, não é só o amor romântico que entra na conta. “Essas narrativas obviamente têm sua importância na desconstrução do olhar sobre os nossos corpos, mas temos que ver o amor nas várias camadas da existência humana. Isso facilita a compreensão de que outros corpos amam, se relacionam e trocam afeto para além do amor romântico”, diz ela, mencionando que sua grande paixão atualmente é o filho de sete meses.
Temos conseguido ler mais diversamente a literatura LGBTQI+. Anos atrás era só insinuação ou aquela coisa triste, sofrida, proibida, às vezes perversa
Polesso também considera importante trazer outros sentimentos e temas universais da tradição literária para personagens LGBTQI+, como ela faz no romance “Controle” (Companhia das Letras, 2019). “Por que essas coisas seriam excludentes? Nunca diríamos se o personagem é hétero”, questiona. No entanto, ela acredita que, para pessoas LGBTQI+, se identificar em amores felizes pode ser realmente uma experiência catártica.
Afinal, é uma questão de representatividade: se, por excelência, a literatura “nos salva da mesmice do mundo e nos mostra “outras formas de ser”, como observa Lugarinho, escrever e ler histórias de amor, em suas dimensões diversas, é uma maneira de escapar a padrões rígidos e violentamente impostos durante tanto tempo. “É bonito, mas também é triste: as pessoas têm a necessidade de saber que são amores possíveis, porque a gente vive em um mundo extremamente agressivo contra esse tipo de relação”, diz Polesso.
Para ter na estante
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Contos sobre elas
Em meio à profusão de obras feministas e de autoria feminina publicadas na última década, se destacam as histórias de amor entre mulheres. O vencedor do Jabuti “Amora” (Não Editora, 2015), de Natália Borges Polesso, e a coletânea “Faz Duas Semanas que Meu Amor” (Edições GLS, 2012), de Ana Paula El-Jaick, trazem contos com protagonistas lésbicas.
Poemas de amor
As amantes também figuram nos versos de “Canções de Atormentar” (Companhia das Letras, 2020), de Angélica Freitas, e “Sete Notas sobre o Apocalipse” (Garupa, 2019), de Tatiana Nascimento.
Corpos dissidentes
Na poesia da alagoana Kika Sena, reunida em “Periférica” (Padê Editorial, 2017), mulheres trans podem amar livres de estereótipos de orientação sexual e hipersexualização. Nos EUA, o celebrado poeta não-binário Danez Smith fala de relações afetivas, de sexo e de desejo entre pessoas LGBTQI+.
De olho no cânone
Romances homoafetivos estão em grandes clássicos da literatura mundial. É o caso de “O Quarto de Giovanni” (Companhia das Letras, 2018), de James Baldwin; “Orlando” (Penguin, 2014), de Virginia Woolf; e “A Cor Púrpura” (José Olympio, 2016), de Alice Walker.
O amor quando jovem
No mundo real, sabemos, nem só de príncipes e sapos se fazem os amores das princesas e nem só de pai e mãe se constituem as famílias. Os livros infantis “A Princesa e a Costureira” (Metanoia Editora, 2016), de Janaína Leslão, e “Olívia Tem Dois Papais” (Companhia das Letrinhas, 2010), de Márcia Leite, ambientam — e naturalizam — narrativas não-heteronormativas no universo das crianças.