A linguagem da demissão no LinkedIn — Gama Revista
Como lidar com o fim?
Icone para abrir
Isabela Durão

4

Reportagem

Fim de ciclo, novos desafios e voos mais altos: a linguagem da demissão no LinkedIn

Na rede do trabalho, profissionais se veem forçados a usar eufemismos e falsa positividade para chamar a atenção das empresas

Leonardo Neiva 24 de Março de 2024

Fim de ciclo, novos desafios e voos mais altos: a linguagem da demissão no LinkedIn

Leonardo Neiva 24 de Março de 2024
Isabela Durão

Na rede do trabalho, profissionais se veem forçados a usar eufemismos e falsa positividade para chamar a atenção das empresas

Talvez você já tenha sido demitido de uma empresa, seja porque o trabalho não correspondeu às expectativas ou porque a corporação precisava fazer alguns “alinhamentos estratégicos”. Depois, saiu correndo como louco atrás de emprego mais porque precisava pagar as contas do que para seguir um certo planejamento de carreira. Numa rede social como o LinkedIn, porém, é provável que descrevesse essa experiência traumática como “o fim de um ciclo profissional repleto de aprendizados, do qual você sai agora em busca de novos desafios para alçar voos mais altos e profissionalmente enriquecedores”.

MAIS SOBRE O ASSUNTO
Como se destacar no LinkedIn
Silvio Lorusso: “Tentativas de separar perfis de trabalho e pessoais são artificiais”

Você é o que você posta? Como o mercado de trabalho lida com as redes sociais

Assim como toda rede social, o LinkedIn tem características próprias e uma linguagem bem particular entre os usuários. Guiando tudo isso, está o fato de ser uma rede 100% voltada para o trabalho. “Ali as pessoas querem manter uma determinada postura. Então tem uma forma específica de falar sobre desligamento, pedir demissão ou ter divergências com seu chefe”, resume a professora e linguista Jana Viscardi.

“Quando as pessoas estão frustradas com um trabalho, elas nunca vão falar no LinkedIn. Podem xingar numa conversa entre amigos, mas ali vão dizer que, ‘em função dos desacordos na maneira de pensar o trabalho, resolvi me desligar…’, contando as coisas mais escabrosas de maneira positiva”, aponta a linguista, que acaba de lançar o livro “Escrever Sem Medo” (Planeta, 2024).

Viscardi, cujo canal sobre comunicação reúne mais de 100 mil seguidores no YouTube, define muitos desses textos que povoam o feed do LinkedIn como uma espécie de eufemismo, em que o profissional tenta suavizar uma situação difícil ou delicada — claro, levando em conta que nem sempre um desligamento ocorre por parte da empresa ou de forma negativa. Para a profissional, um bom exemplo é o uso recorrente da palavra “desafio”. “Às vezes a pessoa está completamente zoada, tem um problema grave para resolver, uma bucha imensa, mas diz apenas que tem vários desafios a enfrentar.”

Em algumas situações, a estratégia pode virar prática oficial da própria rede. É o caso do selo Open to Work (aberto a trabalhar), aponta a linguista, uma forma mais positiva de falar que o usuário está desempregado e atrás de trabalho.

“Às vezes, as pessoas até agradecem, porque tem outras empresas e recrutadores vendo”, afirma Viscardi. “A vida profissional vira um grande Big Brother naquele espaço, onde raramente alguém vai detonar uma empresa.”

A vida profissional vira um grande Big Brother naquele espaço, onde raramente alguém vai detonar uma empresa

Em vez disso, o que mais se vê, ela diz, são histórias de aprendizado e superação, onde vale a pena até trazer à tona um erro do passado para ilustrar o quanto a pessoa evoluiu e cresceu como profissional. “É como uma jornada do herói. Quando se conta uma história [no LinkedIn], é na tentativa de mostrar como você contribuiu para a empresa onde trabalha ou trabalhou e o quanto é um bom profissional.”

Se pensou que algumas dessas estratégias se confundem com práticas publicitárias, você está 100% certo. Para a linguista, antes esse “marketing de si mesmo” estava circunscrito ao ambiente profissional e às entrevistas de emprego. Hoje, a rede ampliou esse espaço numa dimensão sem precedentes, jogando todo profissional num universo onde possíveis contratantes estão sempre de olho. “As pessoas vão construindo essas narrativas sobre a própria trajetória para que outros possam acompanhar e isso se transformar num diálogo.”

É a repetição desses padrões, diz Viscardi, que consolida as práticas que hoje norteiam a rede, com textos e expressões como os já citados “fim de ciclo” e “novos desafios”. Hábitos muito diferentes, por exemplo, do Instagram, algo que a própria linguista já precisou colocar à prova.

“Postei no LinkedIn e no Instagram sobre uma mesma entrevista que fiz. No Instagram, usei uma foto que fazia uma piada, algo que nunca usaria no LinkedIn. A gente faz esse filtro, um recorte que tem a ver com as imagens, a maneira como escreve e constrói as narrativas nesses diferentes espaços.”

Uma história do “corporativês”

No mundo encantado do corporativismo, uma resposta simpática como “não enche meu saco” pode virar algo como “não tenho novidades, mas, assim que tiver atualizações, alinho com você”. Até na hora de chamar alguém de mentiroso, o profissional que busca ser mais formal talvez reaja dizendo que “está com dificuldade de assimilar as inconsistências que você apresentou”.

Foi apostando em traduções para o “corporativês” como essas que a publicitária Fernanda Mattos viralizou nas redes, onde hoje fala de forma bem-humorada sobre questões do dia a dia do trabalho em seus perfis no TikTok (@fvrmattos) e Instagram (@homeofficesemfiltro). A ideia surgiu enquanto ela reclamava em um grupo de amigas dos perrengues do home office ainda na pandemia. “Percebi que, se todas passávamos por isso, mais gente também devia passar.”

As interações numa rede como o LinkedIn também espelham a lógica do cotidiano nas grandes corporações, onde expressões estrangeiras dão a tônica e é preciso estar cheio de dedos para falar algumas verdades. A própria publicitária se pega com frequência usando jargões profissionais, como os infames mindset, briefing e feedback. “Normalmente, os termos são em inglês, o que dificulta ainda mais se a pessoa não tem um background…”, diz Mattos, que rapidamente percebe o ato falho. “Aí, ó, poderia ter falado histórico [em vez de background], mas é força do hábito.”

As pessoas vão construindo essas narrativas sobre a própria trajetória para que outros possam acompanhar e isso se transformar num diálogo

Por vivermos numa cultura do burnout, a criadora de conteúdo acredita que as pessoas se identificam rapidamente com tudo que critica ou satiriza o universo corporativo, onde opiniões mais fortes também dão lugar a eufemismos, marcados por uma constante positividade.

“Principalmente as mulheres, quando querem falar de forma mais direta, tomam um cuidado extra para não parecerem agressivas. Muitas vezes, enquanto um homem é visto como líder inspirador, a gente é chata, grossa”, declara Mattos. “[No LinkedIn], também tem uma pressão para mostrar positividade porque você já está pensando num outro recrutador, que não vai querer alguém reativo.”

Toda essa positividade tem origem na formação histórica do sistema capitalista e corporativo contemporâneo, afirma Thatiana Cappellano, consultora de comunicação organizacional e especialista em psicanálise e ciências sociais. Segundo ela, isso vem da década de 1970, através da publicidade e do fortalecimento do discurso institucional.

“Se, por um lado, a publicidade promove produtos maravilhosos, perfeitos, que vão mudar sua vida, do outro surge a narrativa institucional de gestão, visão e valores, que evoluiu para uma questão do propósito”, considera a especialista. Daí a eterna positividade e a visão do trabalho corporativo como algo que guia sua vida. Afinal, quem nunca foi incentivado a “vestir a camisa da empresa”? “Esse discurso extremamente positivo acaba te deixando inebriado, bêbado daquilo.”

Game over?

Para quem abraça a ideia de que o trabalho corporativo é o que dá sentido à vida, não é um passo tão grande enxergar a demissão como uma espécie de morte. Tanto que até no uso de eufemismos as duas coisas se assemelham. “Quando precisa comunicar a morte de alguém, a pessoa não diz que fulano morreu, mas usa expressões como ‘passou dessa pra melhor'”, lembra Viscardi, para quem a demissão no ambiente de trabalho ainda é tabu.

Como evento simbólico, ser dispensado do universo corporativo pode sim representar uma morte no mundo social, concorda Cappellano. A diferença é que, tal qual num jogo de videogame — ou até em religiões que creem na reencarnação — ela não significa um ponto final. É possível tentar de novo e passar para a próxima fase. Nessa visão, uma rede como o LinkedIn serve como meio de renascimento, uma tela piscando com uma única pergunta: quer continuar jogando?

Já temos certeza de que não vamos ficar num mesmo emprego a vida toda, então vivemos num mercado da demissão

Mas essa plataforma de perpétuo renascimento também pode levar a “uma ideia mais orgânica de carreira, que não é necessariamente ruim”, como aponta o designer e pesquisador italiano Silvio Lorusso, autor do livro “Emprecariado” (Clube do Livro do Design, 2023). O termo que dá título ao livro Lorusso criou alguns anos atrás para definir o cruzamento entre empreendedorismo e a precariedade das relações de trabalho contemporâneas.

O fato de essa morte raramente ser definitiva acaba minando seu impacto, na visão do italiano. “Na nossa economia, ser demitido não é mais tão trágico quanto algumas décadas atrás. Já temos certeza de que não vamos ficar num mesmo emprego a vida toda, então vivemos num mercado da demissão.”

Mundo cão

No entanto, as pressões por positividade na rede também geram uma interessante contradição, diz Lorusso. “A pessoa precisa parecer bem-sucedida em seus piores momentos profissionais, porque essa impressão é essencial para encontrar outro trabalho”. A experiência negativa, portanto, é internalizada. Segundo o pesquisador, apesar de ser quase sempre um acontecimento fora das nossas mãos, muitos profissionais preferem assumir 100% da responsabilidade pelo desligamento, já que isso faz sentir que estão minimamente no controle.

Um pouco de autoengano também é crucial para que as pessoas se sintam ao volante do próprio destino, defende Lorusso. Por outro lado, os discursos prontos seguem se repetindo por um motivo simples: eles são muito fáceis de replicar. “Se eu quiser criar um anúncio mais autêntico do que a maioria, preciso colocar certo esforço e investir tempo nele”, afirma.

Tempo que, quando se está procurando desesperadamente por emprego, é escasso. “E vale a pena o esforço, quando um recrutador gasta um décimo de segundo para avaliar seu currículo?”, questiona o designer.

Apesar de as redes sociais apresentarem linguagens e práticas bastante diferentes entre si, elas têm ao menos um ponto em comum: a sensação de inadequação que geram nos usuários. “Se a gente já fica inebriado pelo discurso da cultura organizacional na empresa onde trabalha, quando uma rede potencializa isso, é inevitável que essa sensação se torne individual”, declara Cappellano.

Basta fazer um paralelo com o padrão estético feminino no Instagram, que coloca pressão sobre muitas jovens. O mesmo vale para essa categoria de positividade tóxica do LinkedIn, em que não passa de obrigação amar as segundas-feiras e aquilo que você faz, ou então trabalhar enquanto os outros dormem, aponta a consultora. Se não se identificar com tudo isso, afirma Cappellano, ainda dizem que o problema é seu, não do mundo corporativo.

“Tenho inclusive ódio do uso de certas palavras do mundo corporativo, como resiliência”, reforça a especialista. “Não é que tem muita pressão e muito trabalho, nem que as prioridades mudam do dia para a noite. Você que não é resiliente o suficiente, não sabe lidar com o mundo cão.”

Vivendo e aprendendo a jogar

“Fizemos uma avaliação da sua performance, e você não atendeu às nossas expectativas.” Assim começa o anúncio da demissão da estadunidense Brittany Pietsch. Esse momento crucial na carreira de quase todo mundo, para o alívio da maioria, costuma ser presenciado por um grupo reduzido de pessoas. No caso de Pietsch, porém, a profissional decidiu postar o vídeo de sua demissão na íntegra no TikTok, onde o momento viralizou e foi assistido por milhões de usuários. E ela não foi a única.

Desde o começo de 2024, virou moda usuários publicarem vídeos sendo demitidos ou pedindo demissão, tendência que gerou até hashtags como #quittok. Apesar dos potenciais problemas que a prática pode gerar, a criadora de conteúdo Fernanda Mattos reconhece a tendência como típica de trabalhadores da geração Z ou millennials, que vêm priorizando cada vez mais a saúde mental no lugar da carreira a qualquer custo.

Se a gente já fica inebriado pelo discurso da cultura organizacional na empresa onde trabalha, quando uma rede potencializa isso, é inevitável que essa sensação se torne individual

“Achei chocante esse movimento, com pessoas expondo que, por mais que o feedback tenha sido positivo, elas foram demitidas sem justificativa plausível”, conta. Ainda assim, considera esse tipo de prática muito embrionária para representar uma mudança significativa na forma como as pessoas lidam com o universo corporativo. “A maioria ainda quer mostrar que está de portas abertas”, diz Mattos. “E está tudo bem. Não vejo como fugir disso.”

Thatiana Cappellano revela opinião parecida. A consultora de comunicação enxerga sim uma resistência de trabalhadores da geração Z a aceitar condições abusivas — sempre, ela deixa claro, com um recorte social, econômico e racial bem específico. “Se uma pessoa de 20 anos vê os pais com uma vida inteira baseada no trabalho, no ápice do burnout, por que vai querer replicar isso?”

Ela ainda junta a essa tendência de filmar a própria demissão fenômenos como o quiet quitting, a recusa dos jovens de aceitar cargos mais altos e até o ressurgimento dos sindicatos nos EUA. Para Cappellano, são movimentos que desafiam a visão do empregado “medicalizado, castrado simbolicamente e alienado”, um verdadeiro sonho de consumo para o sistema econômico. No entanto, essas seriam pequenas estrelas, ainda longe de formar uma constelação. “Vamos ter que esperar para ver.”

Enquanto não vemos, a especialista defende que é necessário saber jogar o jogo do mercado, com a consciência de como ele funciona. “Não podemos ser inocentes de achar que todo mundo tem o privilégio de ficar meses desempregado. Precisamos ser mais espertos do que o mundo corporativo”, declara.

Ou seja, por ora, é impossível escapar de algumas das exigências desse universo, o que inclui dizer algumas meias verdades sobre seus fins de ciclos profissionais. O que resta, de acordo com Cappellano, é manter uma relação menos romantizada dessa relação, “porque você não vai ser tratado da forma humana e digna que merece”.

“É preciso ter consciência de que as empresas não são nem boazinhas nem grandes vilãs. E você é uma peça, não é único ou essencial, mas completamente substituível, esteja no cargo em que estiver.”