O que a morte nos ensina sobre a vida? — Gama Revista
Como lidar com o fim?
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Isabela Durão

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Depoimento

O que a morte nos ensina sobre a vida?

Profissionais de cuidados paliativos, que atendem pessoas com doenças graves, compartilham com Gama o que eles costumam ouvir desses pacientes

Flávia Mantovani 24 de Março de 2024

O que a morte nos ensina sobre a vida?

Flávia Mantovani 24 de Março de 2024
Isabela Durão

Profissionais de cuidados paliativos, que atendem pessoas com doenças graves, compartilham com Gama o que eles costumam ouvir desses pacientes

Todo mundo sabe que a morte é a única certeza da vida, mas isso não torna o assunto mais fácil de ser assimilado. Ninguém vive lembrando o tempo todo que um dia vai morrer — a não ser que algo aconteça, como o diagnóstico de uma doença grave, e traga concretude ao que até então evitávamos encarar.
Se a consciência da própria finitude traz angústia, também pode suscitar reflexões existenciais e revelações sobre o que realmente importa na vida. Confira a seguir o que profissionais que atendem pessoas com doenças graves têm a compartilhar sobre a finitude.

  • “O medo da morte é o medo de todos os medos”

    Henrique Gonçalves Ribeiro, psiquiatra e psicoterapeuta do Hospital Sírio-Libanês e integrante do Núcleo de Cuidados Paliativos da Faculdade de Medicina da USP

    “O medo da morte é o medo de todos os medos. Mesmo sabendo que é uma realidade inescapável, lidar com uma doença que ameaça a continuidade da vida gera muita angústia.
    Não dá para romantizar isso, mas, com um trabalho adequado, é possível ajudar a pessoa a elaborar esse processo e torná-lo menos doloroso e mais cheio de sentido. É como quando um avião passa pelas nuvens carregadas e chega ao céu azul. Ou na praia, quando ultrapassamos a arrebentação das ondas e o mar fica calmo.
    Aí é a coisa mais linda do mundo. As frases que eu escuto são: ‘a vida é urgente’, ‘não quero perder mais tempo com coisas que não têm sentido’, com as obrigações de ‘ter que’. Há um choque muito grande em relação à falta de sentido da onipotência e da vaidade. Coisas que antes pareciam ter muita importância se tornam irrelevantes.
    E aí as pessoas vão se conectar com aquilo que faz sentido existencial, que pode ser uma viagem, um projeto, mas geralmente são os vínculos amorosos próximos: a família, as amizades, pessoas importantes para ela. Se eu for pensar numa redução simbólica disso tudo, seria a vivência amorosa, o amor. Trabalho nessa área há 12 anos, e essas experiências transformam constantemente minha forma de ver a vida.”

  • “Grandes crises nos fazem repensar valores, e a maior crise que a gente enfrenta é a morte”

    Ana Cláudia Garcia, enfermeira especialista em cuidados paliativos, professora da Universidade Federal de Alfenas

    “O que traz mais sofrimento é não encontrar sentido nas escolhas que se fez na vida. Muita gente se pergunta: por que gastei grande parte da minha energia e do meu tempo de vida no trabalho? Ou em um casamento que me trazia mais prejuízos do que benefícios? Não é o trabalho ou o relacionamento em si, mas o que aquilo significou.
    É comum os pacientes valorizarem coisas que não valorizavam antes e desvalorizarem coisas que antes consideravam importantes. O acúmulo de bens por status social para de fazer sentido, a preocupação excessiva com o corpo, com a estética, também. Uma vez, uma paciente com um câncer gástrico, uma mulher jovem, comentou: ‘Poxa, eu dava tanta importância para a aparência física. Hoje vejo que o que realmente importa é o bom funcionamento do corpo’.
    Grandes crises nos fazem repensar valores, e a maior crise que a gente enfrenta é a morte.”

  • “Algumas pessoas conseguem ressignificar esse momento e focar não só nas perdas”

    Erika Satomi, geriatra, responsável pelo Serviço de Cuidados Paliativos e Suporte ao Paciente do Hospital Israelita Albert Einstein

    “São dois os pedidos que eu mais ouço dos pacientes: ‘não me deixa sentir dor’ e ‘não me deixa ficar sozinho’. Nesse final, tem o medo da dor física e a necessidade da presença de alguém.
    É um momento de parar para pensar: ‘O que é importante pra mim?’ Pode ser conseguir andar, comer uma macarronada, tomar um whisky, fazer carinho no cachorro. Não são coisas grandes, são coisas pequenas.
    Algumas pessoas conseguem ressignificar esse momento e focar não só nas perdas. Elas passam a valorizar muito mais algumas coisas do dia a dia: o café passa a ter mais sabor, o pão fica mais gostoso. Tive um paciente que lamentava ter perdido sua independência, mas valorizava o fato de estar mais próximo da filha, de poder conversar com ela sobre seu legado, sobre a vida.
    Se você atua nessa área e não aprende com isso, está meio cego. Às vezes eu me sento na varanda, com um chá e um pedaço de bolo, e penso: ‘Que brisa gostosa’. Ou subo e desço uma escada sem me cansar e fico grata por isso. Não é coisa grande, não é dinheiro, é ter esses lampejos, ficar atento às coisas boas, olhar para os filhos e pensar: que bom que estão saudáveis, sorrindo. É isso que importa.”

  • “O tempo é nosso bem mais precioso”

    Cláudia Inhaia, médica paliativista, diretora médica da Casa Humana

    “Conviver com pessoas que perdem muito nos traz a percepção de que algumas coisas que a gente dá como certas não o são. A capacidade de andar, de mastigar e engolir sem engasgar, de respirar sem sentir falta de ar, tudo isso demanda do nosso organismo uma organização absurda. São um milagre todos os dias.
    Muitas vezes, deixamos para depois algo que podemos fazer hoje porque sempre achamos que um dia as condições vão estar melhores, que vai chegar o momento perfeito. Mas temos que lembrar que não vamos estar aqui para sempre. As pessoas são atropeladas por um diagnóstico que nem sonhavam que iam ter um ano atrás.
    O tempo é nosso bem mais precioso. Devemos usá-lo com sabedoria — e vendê-lo com sabedoria também. Todos precisamos trabalhar, mas não vale a pena vender seu tempo por algo que não envolva um propósito.
    Esse, sim, seria um grande arrependimento: chegar ao fim da vida percebendo que se tem um dom, um sonho, uma motivação que não levou adiante por medo de mudar, de dar um passo em falso.”

  • “As pessoas querem ser o que elas são até o final”

    Milena Reis Bezerra de Souza, médica paliativista do A.C. Camargo Cancer Center

    “Muitos pacientes oncológicos convivem com o câncer por anos, então as reflexões sobre o que faz diferença ou não na vida vão acontecendo ao longo do tempo. Existe um processo de luto, a dificuldade de aceitar, mas alguns conseguem dar a volta por cima. Não é adotar um positivismo tóxico, mas é se acolher para conseguir ter uma vida mais plena.
    O que eu vejo, nos momentos finais, são pedidos muito simples: estar com quem se ama, comer uma comida gostosa, receber a visita do cachorro, sair do ambiente fechado para sentir o vento. Já vi pacientes que queriam tomar um banho de cachoeira, fazer a barba, comer um pastel. Tem muitos pedidos de perdão, pacientes que resolvem se casar, solucionar pendências.
    As pessoas querem ser o que elas são até o final. Se ela é vaidosa, vai querer se maquiar, se gosta de música, quer ouvir sua música preferida. Às vezes ela não consegue comer, mas quer sentir o cheiro do café.
    E é quase unanimidade o desejo de passar os últimos dias em casa, ainda que nem sempre seja possível. Não é pelo colchão, pelo travesseiro, é porque ali está sua identidade. Ele quer voltar a ser quem era, independentemente da doença.”

  • “A gente precisa dar dignidade à morte de todo mundo”

    Elca Rubinstein, rabina e doula de fim de vida

    “Ninguém gosta de falar sobre a morte. As pessoas acham que dá azar, que você está ‘chamando’ a morte. E aí, quando acontece, ficam questões não resolvidas porque não foram conversadas com antecedência.
    As pessoas precisam poder expressar o que, para elas, seria uma morte digna. Elas precisam poder dizer: a partir de agora não quero mais ser intubada, não quero estar amarrado na cama com um monte de fios, quero estar em casa com a família, e não sozinha numa UTI. É possível fazer um testamento vital, com orientações como essas.
    E não é no final da vida que temos que pensar nisso, é quando se tem 20, 30, 40, 50 anos, quando se está bem. Mas a fala sobre a morte não sai do armário.
    A gente precisa dar dignidade à morte de todo mundo. Isso não é fácil, é admitir que o ser humano tenha algum controle sobre seu próprio fim.”