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Ilustração de Luana Silva

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Reportagem

Quem precisa de terapia: as crianças ou os pais?

Pais que buscam apoio psicológico para si lidam melhor com os transtornos dos filhos e ajudam a aprimorar a comunicação familiar

Leonardo Neiva 13 de Julho de 2025

Quem precisa de terapia: as crianças ou os pais?

Leonardo Neiva 13 de Julho de 2025
Ilustração de Luana Silva

Pais que buscam apoio psicológico para si lidam melhor com os transtornos dos filhos e ajudam a aprimorar a comunicação familiar

O lugar de crianças e adolescentes é na terapia? Ao que parece, sim. Apesar de ainda existirem poucos dados sobre o tema, pesquisadores e especialistas em psicologia infantil concordam: vem crescendo a busca por atendimento psicológico para jovens. E há motivos para essa tendência. Hoje, a Organização Mundial da Saúde estima que 14% dos jovens entre 10 e 19 anos no mundo sofrem com algum transtorno psicológico. Mesmo com o avanço do apoio terapêutico na faixa etária, apenas um terço deles recebem algum tipo de acompanhamento.

Uma das barreiras sobre o tema — além do recorte social, que impossibilita que boa parte da população brasileira busque atendimento — é o estigma relacionado à saúde mental, principalmente quando se trata dos pequenos. Ele vem, sim, diminuindo, mas continua existindo. “É muito comum os pais perguntarem coisas como: mas meu filho não é maluco, né? Então, por mais que haja um esclarecimento um pouquinho maior hoje em dia, ainda existe bastante preconceito”, afirma o médico psiquiatra Gustavo Estanislau, especialista em infância e adolescência, pesquisador do Instituto Ame Sua Mente e do projeto Saúde Mental nas Escolas, da Unifesp.

Desde o início, a ação e presença dos pais faz grande diferença nesse processo, já que são os responsáveis tanto pela identificação de possíveis sintomas quanto pela busca por auxílio. Estanislau reforça que, num contexto de famílias mais enxutas e pais geralmente mais ocupados, a escola hoje também tem sido um dos primeiros lugares onde transtornos são identificados.

O problema é que, muitas vezes, o transtorno não se limita à criança ou adolescente — pode haver impacto crucial do entorno familiar e do próprio comportamento dos pais. Nesses casos, o que fazer? O ideal é que tanto pais quanto filhos frequentem algum tipo de terapia?

“Alguns pais priorizam a terapia e o investimento no filho. Mas, se eles também não entrarem nesse investimento, tudo vai por água abaixo“, aponta a psicopedagoga e mestre em psicologia Ana Paula Barbosa, fundadora do projeto de neurociência e aprendizagem Construindo com Afeto. Como exemplo, ela cita o caso hipotético de uma criança que, após um processo de terapia, volta a um contexto familiar problemático, em que há uso excessivo de telas, alimentação pouco saudável, além de brigas e conflitos constantes. “Nesse caso, a terapia não adianta.”

A psicopedagoga, que é consultora em inclusão escolar, defende que, da escola ao ambiente familiar, tudo que gira em torno desse jovem precisa se adequar da melhor forma para lidar com o transtorno. E começando pelo básico: uma orientação parental e educacional, que indique os principais aspectos da rotina da criança ou adolescente aos quais é necessário estar atento.

“Esses dias, uma mãe me falou: eu não sei porque o menino está agressivo. Mas aí a gente viu a agressividade dentro da família, é um vocabulário que a criança aprende no contexto”, conta Barbosa. “Mesmo que não seja agressivo com o filho, a criança enxerga a agressividade entre os pais. Então, esses conflitos precisam ser amparados.”

Para Estanislau, quando os pais começam a perceber comportamentos disfuncionais em relação aos filhos — uma irritação constante voltada a eles ou o surgimento de pensamentos negativos, de que algo ruim pode acontecer a esses jovens a qualquer momento —, está na hora de busca ajuda para si.

“É quando a pessoa está com um nível de sofrimento em que não consegue mais regular essas coisas, seja ansiedade ou estresse, e começa a perder a mão, porque está muito sobrecarregada”, afirma o psiquiatra, coautor dos livros “Saúde Mental na Escola” (Artmed, 2014) e “Dilemas na Educação” (Autêntica, 2023). Quadros como esses, aliás, podem gerar sintomas relacionados à tristeza, desesperança e até depressão nos próprios pais.

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Parte do problema

No livro “Atravessando o Deserto Emocional” (Paidós, 2024), a psicanalista Thaís Basile mostra como relações familiares problemáticas ou adoecidas geram impacto duradouro para nossos comportamentos e emoções. “Muitos de nós fomos submetidos, e infelizmente continuamos nos submetendo, a situações que, se ocorressem entre amigos ou namorados, seriam pontuadas socialmente como abusivas ou tóxicas, mas que, como acontecem dentro da sagrada instituição da família, não nos permitimos ver assim”, escreve em certo ponto do livro.

A obra deixa claro como uma dinâmica desequilibrada ou até violenta dentro do ambiente familiar pode ser a principal responsável pela formação de transtornos ainda na infância.

Na visão da educadora e escritora Carolina Delboni, consultora sobre adolescência e educação, é crucial a participação dos pais ou responsáveis no processo terapêutico para qualquer tipo de transtorno, seja ansiedade, depressão, transtornos alimentares etc. Mais do que isso, porém, ela considera essencial que os familiares também busquem ajuda terapêutica, possivelmente até com o mesmo profissional que atende o jovem.

“Ele precisa aprender, primeiro, o que é esse transtorno e em qual lugar essa criança ou adolescente está, para aprender seu papel na busca por ajuda, por tratamento”, define a especialista.

Quando essas questões surgem durante os primeiros anos do ensino fundamental, muitas vezes, quem realmente precisa de apoio psicológico são os pais, e não as crianças, declara Delboni. “São angústias muito mais ligadas aos pais, de medo, de ruptura. Por exemplo, ver aquela criança crescendo e começar a perceber um espaço vazio dentro de casa ou dentro da própria vida, e não saber o que fazer com isso.”

A educadora aponta casos de pais — principalmente mães — que não deixam os filhos irem a passeios escolares ou até se oferecem para viajar junto com a criança. Em contrapartida, isso gera nos pequenos uma insegurança ou dificuldade de se relacionar que acaba desencadeando a busca por atendimento psicológico para as crianças, e não os pais.

“Eles transferem, muitas vezes, esse medo para a criança, colocam em uma terapia, e a criança não sabe nem o que está fazendo ali”, explica Delboni. Nesses casos, costuma haver bastante resistência dos pais para aceitar que podem ser parte do problema e buscar uma terapia. Para que esse processo seja bem-sucedido, a educadora aponta que ele depende bastante da percepção do terapeuta sobre a situação familiar e também de sua capacidade de convencer os pais a olharem para dentro de si mesmos.

Escuta ativa

Com o isolamento social forçado pela pandemia, Priscila, 41, e o marido perceberam que o filho pré-adolescente vinha apresentando um comportamento bastante fora do usual. “Ele manifestou várias características que não eram pertinentes à idade dele. Começou a ter dificuldade na escola e também no comportamento diante dos amigos”, ela explica. O casal então buscou apoio psicológico e, após uma investigação médica, o jovem foi diagnosticado com um grau leve de autismo.

Embora Priscila não tenha entrado na terapia — seu marido, que é médico, faz psicanálise há anos —, os pais participaram ativamente de todo o processo terapêutico do jovem, hoje um adolescente de 15 anos. “Sempre fomos em todas as consultas, também mantemos um grupo com a psicóloga, e tenho contato constante com a fonoaudióloga”, conta. Dos diretores aos professores, a escola do jovem está ciente do diagnóstico e tem oferecido recursos para apoiá-lo no aprendizado.

Nesse meio tempo, os pais perceberam pontos de atenção no comportamento da filha mais nova, então com oito anos, que foi diagnosticada com TDAH (transtorno do déficit de atenção com hiperatividade). Priscila conta que hoje tanto o diagnóstico quanto a orientação que os pais receberam têm ajudado a entender e criar um ambiente mais adequado para os dois filhos. “A gente aprendeu a lidar muito melhor com as características deles. Porque, até então, era visto como coisa de adolescente fazendo birra”, aponta.

Delboni reforça a relevância da orientação, a exemplo da que esses pais receberam, como uma forma inclusive de se aproximar e ter uma escuta mais ativa em relação aos filhos. “É mostrar que eles podem contar com pai, mãe, avó. Seja quem for, tem alguém do outro lado preocupado com as questões que ele traz, interessado em escutar”, afirma a autora do livro “Desafios da Adolescência na Contemporaneidade” (Summus, 2023), finalista do Prêmio Jabuti.

Essa escuta, aliás, é ainda mais necessária em tempos complexos como os que vivemos, seja para entender a atuação dos filhos nas redes ou até se eles já não vêm fazendo do ChatGPT um psicólogo — a “terapia” com uso de IA tem sido tendência, em especial entre adolescentes. “Em vez de dar uma bronca, o ideal é procurar entender por que o adolescente está fazendo isso. Aí, seu papel não é cortar essa tentativa de buscar ajuda, mas oferecer alternativas, outros tipos de suporte”, diz Delboni.

A árdua tarefa do cuidado

Em crianças, mudanças de comportamento como problemas de sono e alimentação, ou até uma queda de energia e do prazer de brincar, podem apontar para a presença de um transtorno, aponta o psiquiatra Gustavo Estanislau. Já na adolescência, é mais comum o surgimento de pensamentos negativos — “por exemplo, que o planeta está aquecendo e não consigo parar de pensar que não adianta nada estudar“, exemplifica. Também é mais frequente que o adolescente apresente uma queda na socialização, no rendimento escolar ou se exponha a comportamentos de risco, como o consumo de álcool e drogas.

O que acontece em muitos casos é que os pais demoram a reconhecer possíveis sinais de que algo não está bem, porque os filhos acabam refletindo suas características e comportamentos. “Um pai ou uma mãe que era super inseguro e, ao longo do tempo, foi aprendendo a lidar com a insegurança, pode considerar normal que seu filho seja inseguro ou tenha dificuldade de interação social”, aponta Estanislau.

O problema, diz a psicopedagoga Ana Paula Barbosa, é que, se os pais não intervirem desde cedo nesses potenciais transtornos, a situação pode se agravar. “Aí vêm as outras questões da sociabilidade, depressão, ansiedade, que começam a colar nesse transtorno. Se tivesse tido uma intervenção precoce lá na infância, teria tratado na hora certa.”

No caso de pais que buscam terapia para lidar melhor com essas e outras questões do universo dos filhos, a psicopedagoga indica um tratamento cognitivo comportamental como o mais adequadro para trazer respostas diretas e imediatas de como agir na relação familiar. Segundo Barbosa, há inclusive a possibilidade de organizar sessões ocasionais que integrem o terapeuta da criança e o dos familiares.

Mas Estanislau também aponta: é preciso tomar cuidado com essa constante responsabilização dos pais. “Na nossa cultura, já temos até aquela fala: a culpa é sempre da mãe“, lembra. O que pode acontecer é o temor e a sensação de culpa acabarem sobrecarregando esses pais — outro motivo comum para a busca por acompanhamento psicológico. Embora crianças e adolescentes sofram uma influência decisiva dos pais, diz o psiquiatra, eles são indivíduos que tomam decisões próprias e podem desenvolver transtornos independentes do funcionamento parental.

“Existem pais muito dedicados e amáveis, que fazem um bom trabalho e buscam o melhor para os jovens, mas acabam tendo filhos que desenvolvem comportamentos disruptivos”, declara Estanislau. “Talvez seja importante para muitos pais ouvir isso.”

De uma forma ou de outra, pais que buscam se conhecer melhor, se autorregular e procuram formas de ajudar a família “vão estar mais amparados para lidar com a tarefa árdua que é ser pais de crianças e adolescentes nos dias de hoje”, acrescenta o especialista. E isso é basicamente o que significa se engajar em uma psicoterapia.

“Não importa se estou tratando de um jovem com quadro grave ou não, quando recebo a notícia de que os pais resolveram buscar um acompanhamento, sempre penso que vai existir uma evolução no caso. Ali terá um pai e uma mãe que se conhecem melhor, que vão conseguir manejar a criança ou adolescente com uma postura mais assertiva e buscar entender o que os filhos estão sentindo e pensando.”

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