Os psicólogos que oferecem terapia na periferia — Gama Revista
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Reportagem

Terapia na periferia

Psicólogos e analistas atentos a questões como racismo e violência querem ‘deselitizar’ a profissão com coletivos voltados às populações mais vulneráveis

Betina Neves 08 de Agosto de 2021
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Terapia na periferia

Psicólogos e analistas atentos a questões como racismo e violência querem ‘deselitizar’ a profissão com coletivos voltados às populações mais vulneráveis

Betina Neves 08 de Agosto de 2021

No início da pandemia, a psicóloga Ana Maria Oliveira, 38, recebeu um bilhete de uma vizinha da comunidade Mãe dos Pobres, onde vive, em Belo Horizonte (MG). Era uma mãe solo de quatro filhos que perguntava se ela poderia ajudar com alguma coisa para alimentar as crianças. Prestes a concluir a faculdade, Ana Maria teve ali um estalo sobre a carga emocional que pessoas como aquela estavam sustentando, não só durante a covid-19. “O sofrimento e o adoecimento psíquico andam de mãos dadas com a pobreza”, diz.

Logo depois, ela começou a mobilização que deu origem ao Humana.mente Psi, que hoje conta com 15 psicólogos voluntários que atendem em um espaço no bairro Lagoa, próximo da Mães dos Pobres. O grupo também realiza visitas quinzenais a mais sete comunidades da capital mineira para fazer rodas de conversa terapêuticas – que acontecem em becos, campos de futebol e casas de moradores –, e encaminhar quem está precisando para atendimento individual.

“Eu quis levar a psicologia para dentro da favela, onde ainda tem gente que nunca ouviu falar de psicólogo ou que acredita em estereótipos como o que diz que terapia é coisa de louco ou de rico”, conta Ana Maria. “A graduação não prepara e nem desperta o interesse dos alunos em estar nesse território.”

Eu quis levar a psicologia para dentro da favela, onde ainda tem gente que nunca ouvir falar de psicólogo ou acredita em estereótipos como que terapia é coisa de louco ou de rico

O projeto é parte de um movimento que vem se proliferando pelo país com mais força nos últimos anos: grupos de psicólogos, analistas e terapeutas – em grande parte, de origem periférica, familiarizados com as dores e desafios que existem nessas regiões – que trabalham de forma gratuita ou a preços mais baixos para atender populações vulneráveis nos arredores dos grandes centros urbanos. Eles querem contribuir para descentralizar a profissão, ainda muito associada a contextos de elite, e oferecer um olhar mais preparado para lidar com questões como fome, violência, desemprego e falta de moradia digna.

Iniciativas assim vêm a calhar diante do avanço sistemático de casos de depressão na periferia e os problemas intensificados pela pandemia: Oliveira exemplifica com o pai que não consegue dormir porque não sabe se vai conseguir sustentar a família, a mãe desesperada porque perdeu o emprego como diarista, a adolescente frustrada porque quer ser Jovem Aprendiz (programa do governo destinado à empregabilidade de jovens de 14 a 24 anos) mas não encontra oportunidade.

“Eu estava muito depressiva quando cheguei aqui, chorava à toa sem parar”, conta Renata Malta, de 44 anos, moradora da Mãe dos Pobres atendida pelo Humana.mente Psi. Ela vinha de um difícil processo de divórcio e da descoberta de um problema de saúde que a impossibilitou de continuar o trabalho de cabeleireira, o que consequentemente causou perdas financeiros. Depois de nove meses em terapia, Malta relata feliz o processo vivido. “Eu aprendi a me amar e a me preocupar mais comigo. Comecei a me entender mais, e também a entender os outros. E fiquei mais confiante; agora eu consigo me expressar quando algo me machuca e tenho menos medo de errar. Mexeu muito comigo”, conta. Como é comum em consultórios psicológicos de todas as classes sociais, a maior parte dos pacientes são mulheres.

Com iniciativa similar, o PerifAnálise atua em São Mateus, Zona Leste de São Paulo (SP). O coletivo, criado no fim de 2018, é composto por dez profissionais que cobram de acordo com a possibilidade da pessoa atendida. Os encontros costumavam acontecer no centro cultural Favela Galeria, na comunidade Vila Flavia, mas têm sido feitos online por causa da pandemia. “Abrir uma clínica dentro da favela fez com que a gente ampliasse o acesso a um espaço que normalmente estava longe”, diz a psicóloga e psicanalista Paula Jameli, 45, uma das fundadoras.

Jameli entende que a análise é um possível espaço de acolhimento para esta população. “O analisando pode falar sobre o que faz sofrer, o que o causa angústia. Na fala e na associação livre desse processo acontece um percurso de descobertas sobre si que pode deixar vislumbrar outras possibilidades dentro da realidade da pessoa.”

O projeto inclui um grupo de estudos semanal que intersecciona saberes da psicanálise com questões sociais que não costumam ser abordadas com ênfase nas formações tradicionais. “A periferia sofre a todo momento sociopoliticamente falando, por toda história de segregação, sucateamento e esquecimento por parte do Estado”, diz Paula Jameli. “O que vemos nas instituições de ensino de psicologia é algo muito padrão, com autores canônicos; é difícil você ouvir falar de autores brasileiros, por exemplo. E aí a gente foi entendendo que tem essa falta e que, sobretudo, a periferia tem muito a nos ensinar.”

Racismo e política no consultório

A psicóloga Jessica Dias, de 30 anos, começou em 2019 o Serviço de Psicologia na Periferia, que funciona sob pagamento de valores simbólicos em consultório na associação de moradores da comunidade onde cresceu, na Cohab Rubem Berta, Zona Norte de Porto Alegre (RS). A gaúcha começou a perceber essa demanda na faculdade, onde viu que o “sujeito” do qual os professores falavam era muito diferente do que ela tinha vivenciado como moradora da periferia. “A visão ali era mais eurocentrista, voltada para a elite. A realidade de onde eu vim não estava sendo contemplada. Isso me incentivou a procurar outros autores e profissionais.”

Depois de se formar, em 2018, Dias e se juntou ao Coletivo Adinkra, grupo de estudos de psicólogos negros do Rio Grande do Sul. Ali, passou a ter a perspectiva de uma clínica psicológica antirrascista, tema que hoje estuda como mestranda na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Na graduação a gente não aprende a lidar com questões relacionadas ao racismo, que precisam ser faladas e elaboradas. E, se o profissional não está preparado para isso, ele acaba violentando a pessoa no próprio consultório. Eu já tive uma experiência dessas”, conta.

Na graduação a gente não aprende a lidar com questões relacionadas ao racismo, que precisam ser faladas e elaboradas. E, se o profissional não está preparado para isso, ele acaba violentando a pessoa no próprio consultório.

A perspectiva é compartilhada pelas psicólogas paulistanas Natália Silva e Érika Almeida, que criaram há três anos o Reinserir. Com sede no centro de São Paulo (SP), o grupo é focado em atender pessoas negras, LGBTQI+ e mulheres de baixa renda – cerca de 80% dos atuais 500 pacientes são de regiões periféricas. O valor cobrado pela sessão, que começa em cerca de R$ 55, é bem mais acessível em relação à média estipulada pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, por exemplo, que é de R$ 247,49.

“Apesar da neutralidade que é recomendada na faculdade, a gente tem um posicionamento político muito crítico, e as pessoas nos procuram por isso, pedindo psicólogos que entendam dos recortes raciais, das discussões de gênero e até de gordofobia”, diz Natália Silva. Ela conta que, muitas vezes, os pacientes chegam se culpando pelas situações que passam, e que a terapia os leva a fazer o movimento contrário. “Mostramos que é preciso questionar a rede de apoio, o racismo, as estruturas da sociedade, e que a gente está dentro de um sistema opressor que precisa ser repensado.”

Os psicólogos que atuam no grupo de 18 integrantes passam por um criterioso processo seletivo para que estejam alinhados com a proposta – a maioria são pessoas negras ou LGBQTI+. Em razão da pandemia, estão atendendo somente online. “A modalidade virou uma realidade e ajudou a gente a chegar mais longe, em outras cidades do Brasil e até em brasileiros que moram em outros países. O presencial tem uma limitação de espaço, que é um desafio para manter até financeiramente”, conta Érika Almeida.

Para ajudar na sustentabilidade do projeto e contribuir com a causa, o Reinserir também trabalha com colocação profissional direcionada à diversidade nas empresas, dando palestras a funcionários e fazendo acompanhamento de contratações.

Falta de políticas públicas

Todas as profissionais consultadas citam uma insuficiência do poder público em atuar com atendimento psicoterápico nas periferias, comentando casos de falta de profissionais, espera longa e tratamento inadequado. No SUS, questões de saúde mental costumam ser atendidas nas UBSs (Unidades Básicas de Saúde) e nos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), com presença de alguns programas especiais que variam entre os estados.

“Seria necessário esse atendimento especializado na promoção e atenção das pessoas periféricas, e não só nos CAPS, voltado para casos mais graves e persistentes. Inclusive, muitos desses poderiam ser evitados com uma intervenção breve de algumas sessões antes do problema se agravar,” diz a psicóloga gaúcha Jessica Dias.

A psicóloga mineira Ana Maria Oliveira lembra a necessidade dos locais de atendimento estarem dentro das comunidades, porque mesmo as clínicas de universidades públicas que atendem de forma gratuita podem ficar muito longe de quem precisa. “A favela é um lugar de escolhas muito cruéis. Muitas vezes uma pessoa pode ter que optar entre pôr o pão na mesa ou pagar o transporte para ir à terapia.”

Além dos projetos citados neste reportagem, há uma série de outros coletivos atuando pelo país, grande parte em São Paulo (SP). Entre eles, a Roda Terapêuticas das Pretas, voltado para mulheres negras, com 38 voluntárias e ativistas, o Núcleo Girassóis, com psicólogos que atentem a preços sociais, a Casa de Marias, com projetos de atendimento clínico, formação e pesquisa feito por mulheres negras e periféricas, e o Coletivo MT, que trabalha com musicoterapia.