Coluna da Maria Ribeiro: Em defesa de Yoko Ono — Gama Revista
COLUNA

Maria Ribeiro

Em defesa de Yoko Ono

Amar equivale a construir uma cidade, e ver John e Yoko dançando juntos me deu vontade de fazer o mesmo

15 de Dezembro de 2021

Antes de existir o identificador de chamadas, a gente atendia o telefone totalmente no estilo kinder ovo: a surpresa era parte, e, talvez, o grande paradoxo da ação física em questão. Podiam ser notícias incríveis, do tipo: o Eduardo foi sorteado para fazer a mesma peça de final de ano que você; ou, informações tristíssimas, como, sei lá, John Lennon acaba de ser baleado e morreu; ou, sua tia avó de Curitiba vem jantar e quer conversar sobre a sua primeira comunhão.

Os modelos também não variavam muito, e embora eu tenha sido uma feliz proprietária de um telefone do Garfield – um hit entre as garotas burguesas daquele mundo tão, tão distante, mas que tinha lá a sua dramaturgia – não havia muita ostentação nesse quesito, todo mundo era meio igual.

Na minha casa da infância, tínhamos um quarto que funcionava como sala de TV, e era lá que ficava a minha conexão com a vida além da rua Joaquim Campos Porto, onde eu morava com meus pais e com meus irmãos. Até os 15 anos, foi ali o cenário de varias experiências que até agora reverberam aqui na acústica do meu HD. Onde fui muito feliz. Onde chorei em igual proporção quando meu pai saiu de casa.

Uma das coisas mais bonitas de ‘Get Back’ é ver a coragem de um casal de mergulhar, sem rede de segurança, um no outro

O fato é: a gente nunca sabia o que viria pela frente (como se agora soubesse…), mas a emoção, tinha, digamos, menos escapes. No máximo, você rabiscaria todo o caderninho de recados que fazia dupla com o aparelho, ou se jogaria de cabeça no programa do Silvio Santos. O cardápio era menor, e, juro, a ausência de escolhas às vezes é uma musica da Céu, delícia delícia.

Na época – estamos nos anos 80 – o telefone, para quem veio ao mundo no século 21, era uma coisa imóvel e com um único toque, nada disso de um Bon Jovi te invadir a alma pelo celular alheio em pleno metro, por exemplo, te trazendo lembranças, assim, do nada, sem ao menos mandar uma mensagem antes, onde já se viu…

(Daí o grande valor do modo avião. No modo avião, você recebe a bola e pode segurar um pouco, não precisa rebater em seguida. Mesmo que esteja vestido de tenista do Wes Anderson, dá pra contar até três e comer 100 gramas de chocolate ou tomar três gotas de Rivotril antes de escrever uma declaração de amor ou de dar um grito de guerra).

Eu tenho precisado de ensaio para sentir as coisas. Ensaio, tempo, contenção, as vezes algumas consultas a uma ou duas amigas. E de repente comecei a achar tudo isso muito triste quando vi “Get Back”, o novo documentário sobre a banda mais foda de todos os tempos.

Eu não tenho a menor ideia de por quê comecei falando de telefone fixo se o que eu queria mesmo era defender a Yoko Ono. A despeito de todas as qualidades da série do Peter Jackson – que, a meu ver, são muitas – uma das coisas mais bonitas desse tesouro encontrado no fundo do mar, foi ver a coragem de um casal de mergulhar, sem rede de segurança, um no outro. E, numa boa, “pipol”, se eu fosse casada com um Beatle, seria só casada com um Beatle. E esse só seria muito.

Portanto, para as minhas amigas que reclamaram que ela não fazia nada – depois que Isabel Gueron e eu a louvamos em nosso podcast Isso não é Noronha – eu queria dizer que amar equivale a construir uma cidade, e que ver John e Yoko dançando juntos me deu vontade de fazer o mesmo.

Acho que eu já tô fazendo.

Maria Ribeiro é atriz, mas também escreve livros e dirige documentários, além de falar muito do Domingos Oliveira. Entre seus trabalhos, destacam-se os filmes "Como Nossos Pais" (2017) e "Tropa de Elite" (2007), a peça "Pós-F" (2020), e o programa "Saia Justa" (2013-2016)

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

Quer mais dicas como essas no seu email?

Inscreva-se nas nossas newsletters

  • Todas as newsletters
  • Semana
  • A mais lida
  • Nossas escolhas
  • Achamos que vale
  • Life hacks
  • Obrigada pelo interesse!

    Encaminhamos um e-mail de confirmação