Quebrada à francesa — Gama Revista
Thiago Quadros

Quebrada à francesa

Fenômeno de vendas e celeiro de jovens talentos, o rap francês é marcado por identidade e idioma próprios, variedade de estilos e uma nova geração multicultural

Carolina Vasone 22 de Março de 2022

A indústria do rap francês é um sucesso. Ela ocupa o posto de segunda mais importante do mundo – depois, claro, dos Estados Unidos, criadores do gênero. O ano da virada foi 2016, quando uma nova onda de artistas encontrou uma nova geração de ouvintes. “A partir daí, o rap, que vinha representando 16% do top 200 das músicas mais ouvidas na França, pulou para 50%”, conta Marc Bettinelli, do jornal francês Le Monde, responsável pela série em vídeo Business Rap, sobre o mercado do gênero no país. Em 2021, dos dez artistas mais ouvidos no Spotify na França, dez eram rappers. E nada de Drake, A$ap Rocky ou Travis Scott. No topo, nomes como PNL, Ninho e Jul, todos franceses.

Pode parecer estranho enxergar na monumental Paris um terreno fértil para rimas contundentes sobre a vida difícil na cidade. Mas foi de lá que veio, em 2019, o maior faturamento da indústria do rap, empatando com Atlanta, nos Estados Unidos. O número é o equivalente a 2,6 milhões de discos vendidos em cada metrópole, um levantamento do site americano especializado em rap DJ Booth (que faz uma conta a partir da métrica da Recording Industry Association of America’s, a RIAA, considerando cada 1,5 mil streamings o equivalente à venda de um álbum à moda antiga). Apesar da predominância das plataformas digitais hoje, um dia os CDs e as rádios francesas foram essenciais para construir a base desse sucesso, que parece no mínimo surpreendente para quem não é familiarizado com a história.

Um rapper gentil, outros nem tanto

O início da cultura hip-hop na França tem entre seus protagonistas MC Solaar, talvez o rapper francês mais famoso mundialmente. Nascido no Senegal, de onde se mudou para a França com os pais ainda bebê, ele lançou seu primeiro disco, intitulado “Qui Sème le Vent Récolte le Tempo” (Quem semeia o vento colhe o tempo, em tradução livre) em 1991, quando o gênero engatinhava na França e as referências vindas dos Estados Unidos ainda eram dominantes. Pioneiro, surgiu na mesma época que o duo Suprême NTM (em francês, abreviação para “nique ta mère”, ou “foda-se a sua mãe”) e o IAM (pronuncia-se como no inglês “I am”), mas com estilo diferente.

O rapper MC Solaar, um dos maiores artistas do gênero da França  WikiCommons

“MC Solaar é muito popular, mas levando em conta a história do rap, ele é considerado um rapper ‘gentil’, não um fenômeno social como foram o NTM, o IAM ou o 113“, afirma Pierre-Marie Ouillon. Diretor criativo do Nuits Sonores, um dos principais festivais de música da França, e também do clube Le Sucre, em Lyon (que tem o produtor musical Laurent Garnier como um dos sócios), ele se refere à primeira virada do rap francês, que aconteceu quando grupos como o NTM se transformaram em porta-vozes de uma geração de jovens da periferia (banlieue), ganhando ampla exposição da mídia, algo até então inédito.

O rap na França impôs na indústria musical o pluralismo de uma sociedade que até então ocultava ou exotizava a contribuição das minorias à sua cultura

Embora haja críticas de que a imprensa tenha homogeneizado e estereotipado a exclusão social por meio da figura dos rappers, fato foi que eles se tornaram famosos e geraram interesse do público, assim como das gravadoras. “Enquanto o rap americano surgiu depois de um século de exploração comercial da música afro-americana, o rap na França foi o primeiro gênero musical a impor nas indústrias musicais o pluralismo de uma sociedade que, até a década de 1990, se considerava fundamentalmente branca, e ocultava ou exotizava a contribuição das minorias à sua cultura”, analisou Karim Hamou, sociólogo, em entrevista ao Le Monde na época do lançamento de seu livro, “Une Histoire du Rap en France” (2012).

Fenômeno de rádio

Junto com a TV, as rádios francesas, poucos anos mais tarde, terminaram de popularizar o estilo e fortalecê-lo na língua própria do país. Isso aconteceu graças a uma lei criada em 1994 para valorizar e proteger o idioma que, entre outras coisas, obrigava as rádios a terem pelo menos 40% das músicas tocadas em francês. A medida, única na Europa, acabou beneficiando especialmente o rap para o grande público e dificultou a entrada dos americanos no mercado. Em 1998, o rap estava consagrado graças, especialmente, a uma rádio de rap chamada Skyrock, que tocava as novidades dos MCs franceses para 3 milhões de ouvintes diários.

Até 2020, Solaar era o rapper que havia vendido mais álbuns na história do gênero da França, até que o jovem Jul, de Marselha, o ultrapassou

Se MC Solaar não fazia parte do grupo dos rappers que davam entrevistas e se apresentavam em programas televisivos por cantarem, de maneira dura, a realidade das ruas (é o estilo chamado hardcore rap), sua maneira elegante, poética e mais suingada o transformou num dos maiores divulgadores do rap francês de todos os tempos, tanto dentro como fora do país. “Sua música ‘Les Mirabelles’ é um rap sobre a 1ª Guerra Mundial! É preciso mais coragem para fazer isso do que dizer ‘vadia’ 15 vezes por verso”, provoca no jornal Le Parisien Alain Etchart, músico e coprodutor do disco mais recente de Solaar, “Géopoétique”, lançado em 2017 depois de dez anos de hiato. Até 2020, Solaar era o rapper que havia vendido mais álbuns na história do gênero da França, até que um jovem de Marselha chamado Jul o ultrapassou, sendo hoje o segundo músico mais “vendedor” dos últimos dez anos na França, atrás apenas de Johnny Hallyday (o equivalente em popularidade a um Roberto Carlos no Brasil).

Uma nova geração no streaming

Hoje, a maneira de verificar tanto as vendas quanto a popularidade de um artista é diferente: leva em conta não quantas pessoas compraram um disco físico, mas quantas vezes uma música foi ouvida por meio da transmissão via streaming. O curioso é que a mesma revolução tecnológica que no início dos anos 2000 acabou com a venda de CDs, afetando especialmente o rap por conta da popularidade do formato entre o público jovem, agora, pelo mesmo motivo (e a grande diferença do streaming gerar lucro e visibilidade aos músicos) alavanca uma prolífica nova geração de artistas.

O rapper Jul, que em 2020 desbancou MC Solaar das paradas de sucesso  Reprodução Twitter/@jul

“O rap francês hoje é a música pop por excelência. Ele é uma expressão muito além da periferia. E o rap em francês é maior ainda, porque tem uma geração belga muito boa, além de todos os países da África francófona”, diz Felipe Maia, etnomusicólogo, jornalista e DJ baseado em Paris, autor de uma tese de mestrado que analisa o uso das tecnologias para produzir e distribuir música – rap francês e funk paulistano – a partir das periferias de Paris e de São Paulo. “O legal é que eles não se prendem a um estilo, fazem tudo que existe em termos de música. Gosto disso, pois fazemos o mesmo por aqui”, completa o rapper Thaíde, ícone da cena hip hop brasileira.

O legal é que eles não se prendem a um estilo, fazem tudo que existe em termos de música

A variedade é tamanha que é difícil elencar apenas alguns destaques do rap francês atual. Na seara dos novos e superpops, aqueles que figuram nas listas dos top 10 mais ouvidos da França, Pierre-Marie Ouillon recomenda a dupla de irmãos do PNL e o jovem e futurista Laylow, ambos na cena desde 2015. Entre os clássicos que seguem na ativa há Booba, o enfant terrible do rap francês, grande representante do rap hardcore, que surgiu nos anos 2000 e chamou os pioneiros do rap francês (Solaar, IAM e NTM) de “antiguidades”, além de ter sido preso duas vezes. Já Damso, a estrela do rap belga (ele é belga de origem congolesa), investe na produção experimental existencialista. O DJ brasileiro radicado em Lyon Pedro Bertho indica ainda o franco-algeriano Ashe 22 (rap de resistência) , o franco-camaronês Ichon (uma onda mais “Criolo”, compara Pedro), o parisiense Lomepal (recorte mais pop) e o francês Luidji (mais rnb). Com exceção de Ashe 22, todos são da cena alternativa. Já Lala&ce é um exemplo da nova geração de rappers mulheres ultracool e recomendação de Pierre-Marie, assim como La Fève, de apenas 21 anos, OBoy, 25 anos, nascido em Madagascar, e o parisiense underground Hugo TSR.

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Este conteúdo é parte da série “Para conhecer a música francesa”, uma parceria institucional com a iniciativa “What the France”, marca de referência da organização CNM (Centre National de la Musique) criada para promover a diversidade da música produzida na França.

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