CV: Thuane Nascimento — Gama Revista
Curriculum Vitae

CV: Thuane Nascimento

Diretora-executiva do PerifaConnection, Thuane Nascimento, que inspirou personagem de “Vai na Fé”, fala sobre trajetória, lutas sociais e a força das periferias brasileiras

Ana Elisa Faria 06 de Novembro de 2024

Thuane Nascimento, 28, diretora-executiva do PerifaConnection, plataforma de conexão e confluência das periferias brasileiras, representa uma nova geração de lideranças periféricas do Brasil, com uma trajetória que combina luta por justiça social, defesa do território e ativismo climático.

Nascida e criada na Vila Operária, Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, Thux, como é conhecida, começou a trilhar um caminho engajado com trabalhos sociais na igreja evangélica, ambiente que moldou seu senso de comunidade e abriu as portas para questões mais amplas.

Durante o curso de direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Nascimento se envolveu com movimentos de luta pela terra, pela reforma agrária e pela moradia, compreendendo as estruturas de desigualdade que afetam o país. A experiência se intensificou durante a intervenção federal que ocorreu no Rio entre 2018 e 2019, quando a jovem se aproximou das discussões sobre segurança pública e comunicação comunitária. Foi nesse cenário que encontrou o PerifaConnection. “O desafio é conectar as periferias de um país imenso, com muitas periferias”, conta.

Além de ter inspirado uma personagem de novela, a Jenifer (vivida por Bella Campos), de “Vai na Fé” (TV Globo), e representar o PerifaConnection em eventos internacionais, como no III Fórum de Afrodescendentes da ONU — onde falou sobre a importância dos territórios no combate ao racismo —, Nascimento carrega a responsabilidade de representar muitos territórios invisibilizados. “Não posso esquecer das pessoas do Norte, das comunidades quilombolas, indígenas e ribeirinhas”, reflete. Ela acredita que sua presença nesses espaços é coletiva, representando não apenas a Baixada Fluminense, mas as periferias de todo o território nacional.

Para ela, um país que acolhe as periferias em suas políticas e práticas é mais justo e menos concentrado em centros de poder.

Nesta entrevista a Gama, Thuane Nascimento fala sobre sua trajetória de lutas sociais.

Quem sabe da favela é o favelado, quem sabe da periferia é o periférico

  • G |O que te trouxe até aqui?

    Thuane Nascimento |

    Sou nascida e criada na Vila Operária, uma favela da Baixada Fluminense. Também sou cristã, então, desenvolvi alguns trabalhos sociais na igreja, que era o espaço onde eu conseguia aprender e dialogar sobre questões sociais. Isso me deu uma visão de mundo e de comunidade importante para quem milita ou trabalha com questões sociais. Eu mesma me aproximei da luta pela terra na faculdade de direito na UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro], onde eu coordenava um núcleo de assessoria jurídica universitária popular, assessorando movimentos como o de luta pela terra, por reforma agrária, por moradia. Assim, consegui entender melhor as questões estruturais do Brasil e também virar uma militante na luta pelo acesso à terra e pela defesa do território. Na época da faculdade, houve também a intervenção federal no Rio, o que me colocou perto do debate sobre segurança pública. A partir dessa luta contra a intervenção federal e a favor do direito à moradia, eu me aproximei das questões relacionadas à segurança pública, especialmente na área da comunicação, porque no Rio temos uma tradição de comunicadores populares das favelas. Nesse meio-tempo, encontrei o pessoal do PerifaConnection, que é a organização em que eu trabalho hoje. Paralelamente ao Perifa, em 2021 me tornei uma ativista climática, pensando em terra, moradia e soberania alimentar.

  • G |O que te moveu a trilhar esse caminho?

    TN |

    Foi a demanda da conjuntura do que precisava ser feito. Eu não era uma liderança comunitária do meu território, mas era vista como uma jovem periférica que ascendeu porque conseguiu chegar à universidade. Durante a pandemia, eu me tornei uma liderança porque as pessoas precisavam. Fiz toda uma movimentação junto ao Movimenta Caxias e ao PerifaConnection, entregando cestas e ajudando com o auxílio emergencial. Inauguramos ainda um projeto de recreação para crianças. Muito disso veio da demanda das pessoas e, por estar nessa posição, acessando outros espaços, acabei virando não só uma voz que saiu da Vila Operária para o mundo, mas também uma voz que se tornou uma liderança territorial.

Apesar de estarmos marginalizados, somos a maioria do Brasil

  • G |Você falou que não se via como uma liderança e, aos poucos, foi se tornando uma líder. Como se enxerga hoje, tendo, por exemplo, inspirado a personagem Jenifer, da novela “Vai na Fé”, e após ter representado o PerifaConnection na ONU?

    TN |

    Sinto uma grande responsabilidade. Toda vez que chegamos em espaços assim é importante entender que estamos ali representando muita gente. Com o avanço da agenda das periferias, ficamos felizes porque essa é a nossa luta há tempos, porém, também nos preocupamos porque existem pessoas que fazem parte de organizações periféricas, mas que ascenderam de vida e não moram mais nas periferias. E, para mim, quem sabe da favela é o favelado, quem sabe da periferia é o periférico, é o morador da periferia. Não tenho nada contra quem ascende, óbvio, mas a voz e a representação desses locais têm que vir de pessoas que moram nos territórios. Se você não vivencia a realidade do dia a dia, dificilmente vai conseguir falar o que realmente está acontecendo. Quando vou para esses espaços, vou sabendo que sou uma pessoa periférica e que tenho um compromisso coletivo. As periferias são muitas no Brasil e muitos territórios não têm espaço e nem visibilidade no debate. Então, eu, como uma menina do Sudeste, não posso esquecer de falar das pessoas do Norte, referenciar as pessoas do Nordeste, não posso esquecer das comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas, extrativistas. Não posso falar por essas comunidades, mas tenho que lembrar delas e referenciá-las, até para que, numa próxima vez, chamem para ouvir alguém de uma favela do Nordeste ou de uma comunidade do Norte. Assim, não só conseguimos acessar os espaços, mas ajudamos a mostrar que não somos os únicos.

  • G |Quais são os principais desafios do seu trabalho?

    TN |

    Com o PerifaConnection, que se define como uma plataforma de articulação, confluência e conexão das periferias, o primeiro grande desafio é, de fato, conectar as periferias do Brasil, um país imenso, com muitas periferias. Temos um sonho no PerifaConnection: gostaríamos que, em cada território periférico, tenha uma liderança jovem, e que essa pessoa esteja com a gente. Queremos articular com todas as lideranças jovens periféricas ao redor do Brasil, mas, para isso, precisamos de pernas, dinheiro e tempo. Fazer contatos e criar uma rede necessita cuidado, saber o que está acontecendo naquele território e assistir àquelas pessoas também. É importante fazer a manutenção dessa rede. Além disso, queremos ser ouvidos. Nós temos muitas soluções para o Brasil, para os territórios, porque, se está bom para as periferias, certamente vai estar bom para o resto do Brasil.

  • G |E seus maiores aprendizados, quais foram?

    TN |

    O meu primeiro aprendizado foi saber que existiam outras favelas e que o nosso sofrimento não é único. Outra coisa que aprendi é que podemos, sim, sermos vistos a partir da nossa potência, das coisas boas e das tecnologias sociais — e não pela visibilidade que a violência traz. A periferia tem muito a dizer. A periferia sobrevive não é à toa. Eu não cheguei aqui à toa, não fiz universidade à toa, não estou viva à toa. Há um esforço de sobrevivência das pessoas mais velhas, dos nossos ancestrais, de querer viver e sobreviver em um país que fez de tudo para destruí-los. A despeito do que o Estado brasileiro fez, as pessoas da periferia resistiram e estabeleceram não só uma cultura de sobrevivência, mas uma cultura de vivência.

  • G |Como você diferencia essas duas culturas?

    TN |

    A cultura de sobrevivência é aquela cotidiana, em que a gente precisa trabalhar em empregos ruins para ter o pão de cada dia. Mas, além dela, existe um esforço para produzir vida e um bem viver nas periferias. É a cultura de vivência, é poder ter uma escola de samba para visitar no fim de semana, é ter ali o baile funk para poder se divertir, é poder se arrumar para ir à igreja ou ao terreiro. A sobrevivência é muito importante, mas do outro lado temos a vivência, uma cultura vitoriosa porque permanece viva até hoje. Em uma comunicação comunitária, por exemplo, saberemos que a polícia invadiu a favela, uma pessoa morreu e tantas outras foram paradas pelas forças policiais. No entanto, é importante também comunicar que fulano passou na universidade e que hoje vai ter uma roda de samba lá na esquina.

  • G |Qual a sua principal missão hoje?

    TN |

    É pensar um Brasil que tenha como centralidade os territórios periféricos. Não porque a gente quer protagonismo, mas porque nós somos a maioria. Apesar de estarmos marginalizados, somos a maioria do Brasil. Por quê? O que não é periferia é centro, e os centros são muito poucos, porque os centros precisam ser poucos. Centro significa acúmulo, e acúmulo é muita coisa, muita propriedade, muita política pública, muito dinheiro, muita visibilidade e muita mídia na mão de poucas pessoas. E as periferias, por si só, são revolucionárias porque são contra os sistemas. Elas são contra o liberalismo, são contra esse sistema que quer muito na mão de poucos, porque nós já somos muitos. Então, nós precisamos dividir, descentralizar, precisamos tirar esses privilégios e levar muita coisa para a mão de muita gente. Nós somos todos menos alguns, menos poucos centros.

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