CV: Samantha Almeida
Diretora de criação na Globo e ex-head do Twitter Next, a premiada profissional de conteúdo acredita na comunicação como ferramenta de transformação social
Tendo trafegado a carreira toda pelas áreas de comunicação, marketing e conteúdo, Samantha Almeida aprendeu na faculdade que a criatividade era um conceito mágico, reservado só para alguns poucos escolhidos que supostamente teriam o direito de exercê-la. E, por sua vez, os anos seguintes que passou como profissional levou num longo processo de desconstrução dessa imagem. “Fui entendendo que isso não é uma verdade e que essa definição foi instituída para dar limites e garantir que apenas alguns grupos mais privilegiados pudessem ter a sua criatividade como única valorizada e se beneficiar dos seus resultados.”
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Desde 2021 no cargo de diretora de criação na Globo, ela é responsável por estimular a produção de conteúdo na área de entretenimento e também por gerir equipes de autores, pesquisadores e produtores de conteúdo da emissora carioca. E teve recentemente seu trabalho reconhecido ao receber o prêmio Caboré na categoria profissional de inovação. Em 2020, chegou a integrar a lista de 100 pessoas de descendência africana mais influentes do mundo abaixo de 40 anos, de acordo com a ONU. Também foi a única representante negra brasileira entre os jurados do Festival Cannes Lions 2021, na categoria entretenimento.
Antes disso, Samantha teve passagens por empresas ligadas à moda — ela se formou em design de moda, administração e varejo — e cosméticos, como Levi’s, Trifil & Scala, Estée Lauder e Avon, no setor de marketing e comunicação, onde é reconhecida por campanhas de cunho ecossocial pautadas em diversidade de raça, classe e igualdade de gênero. Já em 2018, trabalhou com música ao assumir o cargo de diretora de planejamento e criação, cultura e inovação digital na Music2/Mynd. No ano seguinte, entrou para a equipe da agência de publicidade Ogilvy Brasil, como diretora de conteúdo e estratégia digital.
Assumiu em 2021 a liderança do Twitter Next no Brasil, onde atuou em parceria com anunciantes para desenvolver estratégias e campanhas criativas para a rede social. “Nem sempre todos os grupos da sociedade puderam ser ouvidos, representados ou respeitados da mesma forma e no Twitter pude usar essa pluralidade de realidades para construir projetos que influenciaram a sociedade de forma positiva”, conta.
Samantha também diz não enxergar limite entre vida pessoal e profissional. Considera, na verdade, que as duas fazem parte de uma vida única, capaz de construir imaginários coletivos para a nossa realidade. “Imaginários que incluam mais pessoas, que dialoguem com sonhos invisibilizados e que nos motivem para além da inspiração, para construir um mundo mais justo.” Dentro dessa lógica, a comunicação, com a qual sempre trabalhou, funciona como ferramenta de transformação social, e a cultura, como um motor da realidade.
Em conversa com Gama, Samantha fala sobre as pulsões sociais que existem por trás de cada escolha profissional, a construção de conexões por meio da comunicação e os paralelos, muitos deles bem diretos, entre mercado de trabalho e sociedade.
Não acredito em nada que seja criado que não responda a uma urgência coletiva
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G |Quais os seus maiores aprendizados nesses anos trabalhando com criação?
Samantha Almeida |Foram muitos adquiridos e muitos desconstruídos ao longo desses 23 anos de estrada. Por isso, ao invés de aprendizado, gostaria de falar desse processo de reconstrução do significado de muitos conceitos, inclusive da criação em si. Porque essa tem sido uma questão importante na minha carreira, decodificar os conceitos para encontrar novos caminhos. O que é criação, a quem ela serve e como dimensionar o real impacto da criatividade na vida das pessoas, mas pelas perspectivas delas? Quando entrei na faculdade lá nos anos 1990, fui apresentada à criatividade como algo “mágico”, um processo desenvolvido por pessoas dotadas de um dom raro. Mas, com o tempo e com a experiência em empresas, projetos e times, fui entendendo que isso não é uma verdade e que essa definição foi instituída para dar limites e garantir que apenas alguns grupos mais privilegiados pudessem ter a sua criatividade como única valorizada e se beneficiar dos seus resultados. Por isso hoje é tão importante para mim a expansão desse conceito original, porque ele está diretamente relacionado a trazer mais perspectivas de mundo para o desenvolvimento criativo. Não acredito em nada que seja criado que não responda a uma urgência coletiva. Não por princípios pessoais, mas porque, se o mundo está em alerta, como os criativos podem estar confortáveis? Com quem dialogamos e como usaremos a criatividade para nos manter nesse planeta? Esse é o meu grande aprendizado. Estamos criando nossa própria sobrevivência, conceitual mas também literal. Quando Barack Obama esteve no Brasil, ele nos provocou a pensar com esse mesmo olhar crítico para a inovação, que precisa sair do pensamento exclusivista para algo capaz de servir ao maior número de pessoas possível. Essas são as criações que nos farão avançar, aquelas que garantirão uma existência coletiva melhor, construindo o novo enquanto mantêm protegido o essencial. É urgente a necessidade de enxergar as pessoas, todas elas, descolando do olhar de observador. Falar sobre não é falar com. E é no com, na cocriação que mora nossos melhores projetos de futuro.
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G |O que te trouxe até aqui?
SA |De forma prática, os sonhos e as renúncias dos meus pais. Sonhos alimentados de esperança, de fé no improvável. Meus pais confiaram que a educação seria uma prática libertadora, revolucionária para mim como sujeito e consequentemente para o sistema ao meu redor. Eles sonharam o meu futuro e me encheram de sonhos também. Acho que isso pavimentou meu caminho. E não falo desse lugar de sonho utópico não, que desconsidera o contexto de desigualdade do país em que vivemos. Falo da mais pura matéria-prima de que são feitos os brasileiros, a busca por oportunidades de desenvolver seu potencial. É isso que eu faço até hoje, de certa forma. Procuro encontrar essas brechas no sistema, onde possamos desenvolver o máximo de potencial. Toda a minha carreira, minha visão de mundo são sobre isso, começar por um olhar empático e honesto, os sonhos, os medos, as belezas da vida das pessoas que apostam tudo o que têm movidas por esperança. Assim como os meus pais.
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G |Qual a sua missão na sua profissão?
SA |Não sei se tenho uma missão profissional, até porque não tenho esse limite entre pessoal e profissional. Acho que os dois são parte de uma única vida, e essa vida tem uma intenção, que é construir outros imaginários coletivos sobre a realidade. Imaginários que incluam mais pessoas, que dialoguem com sonhos invisibilizados e que nos motivem para além da inspiração, para construir um mundo mais justo. Eu acredito na comunicação como ferramenta de transformação social, na cultura como motor de realidade. É por isso que, mais do que com a audiência, estamos falando com cidadãos críticos ativos e isso influencia diretamente nosso trabalho como comunicadores. Identificar esse pulso de cultura e combinar com a pluralidade das realidades, especialmente num país como o Brasil, é o que me motivou em todas as escolhas profissionais e o que continua me motivando. Pode ser que essa seja uma missão.
A capacidade de adaptação rápida é uma habilidade obrigatória
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G |Quais lições você tirou do período em que trabalhou como diretora no Twitter Next?
SA |Comece pelas pessoas. Tenho dedicado minha carreira à construção de conexões profundas e ao mesmo tempo intuitivas através da comunicação. No Twitter Next, atuei em parceria com marcas e agências construindo estratégias, campanhas, testando formatos inovadores e provocando conversas importantes na plataforma. Parece simples, mas decodificar, ouvir e interagir em conversas públicas são o grande desafio desses tempos. Nem sempre todos os grupos da sociedade puderam ser ouvidos, representados ou respeitados da mesma forma e no Twitter pude usar essa pluralidade de realidades para construir projetos que influenciaram a sociedade de forma positiva. E tem outra lição que é o tempo das coisas. Tudo no Twitter acontece em tempo real. Ontem, se bobear. Então, a capacidade de adaptação rápida é uma habilidade obrigatória. E vale dizer que sempre quis ter o máximo de experiências possíveis dentro da comunicação. Fui cliente, agência, veículo e realizei projetos dos quais me orgulho muito. Estar em uma das mais importantes plataformas do mundo como o Twitter, liderando a área de planejamento criativo, completou um ciclo importante meu no mercado publicitário. A motivação que me levou para o time do Twitter Next e que me preparou para o que faço hoje é a mesma questão em aberto do começo da conversa: conhecer com profundidade a quem realmente serve tudo o que criamos e qual o real impacto na vida dessas pessoas.
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G |Para atuar na sua área, o que um bom profissional precisa saber?
SA |Precisa saber que nada está estabelecido. Em uma sociedade em revisitação, um profissional de criação e comunicação é o primeiro a sentir o desconforto e ser convocado para o confronto aprendizados estabelecidos versus realidade. E talvez essa seja hoje a mais importante habilidade de um profissional que deseja construir uma conversa relevante para as pessoas, estar conectado com a realidade. Mas não somente a sua realidade, e sim as que vêm das inúmeras perspectivas que existem. Não se conformar com o “sempre foi assim”, mas saber separar o que deve ser mantido para sustentar o presente. Você é o seu legado. Nem toda mensagem dita desde sempre será recebida como sempre foi. O mundo não é o mesmo, e nem nós queremos que seja. Mas o que está por vir precisa ser construído agora, pois já estamos atrasados.
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G |A paixão e a motivação andam juntas?
SA |No meu caso, se chamar paixão de propósito, acho que sim. Porque eu me apaixono quando estou convencida que existe algo maior por trás das minhas escolhas. Disse que fui criada com sonhos, então preciso estar sonhando com algo maior para me apaixonar e consequentemente motivar. Mas, numa visão ampla, sei o quanto algumas realidades podem ser desafiantes para que esses sentimentos se mantenham vivos dentro da gente. É muito não, não é para você, não é assim que fazemos, você não cabe aqui… muitos limitadores. Então acho realista uma vida ou uma carreira onde paixão e motivação não andem juntas, mas que se alternem. Que em fases sejam um objetivo distante, em outras, mais próximo, até que seja alcançado. Mas, o que quer que você faça, se não for cheio de paixão, que sua motivação seja buscá-la um pouco a cada dia.
É necessário saber profundamente quem se é, porque isso te dá velocidade para mudar sempre que necessário
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G |Quais têm sido os maiores desafios para o seu trabalho?
SA |Me manter conectada com o mundo real. O projeto Samantha também está em atualização. Se revisitando, se reprogramando, aprendendo a cada novo passo, contato, erro, mudança interna e do mundo. É necessário saber profundamente quem se é, porque isso te dá velocidade para mudar sempre que necessário, sempre que algo não fizer mais sentido no seu novo papel no mundo. Nós somos capazes de aprendizados infinitos, e estou disposta a me manter nesse processo. Eu vejo essa como a grande tecnologia humana e também o maior desafio.
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G |Como você enfrenta racismo e machismo no mercado de trabalho?
SA |Como enfrento na vida, até porque o mercado de trabalho é um reflexo da sociedade que está combatendo nossa evolução coletiva. Se por um lado nunca tivemos tantos debates popularizados sobre esses temas, estamos vivendo retrocessos institucionais gritantes nos direitos de mulheres e negros. É um trabalho duro e coletivo que precisamos fazer, pois quando grupos têm seus direitos negados, quando não podem desenvolver seu potencial, todos perdem. O machismo, o racismo e o classismo são presença constante na trajetória de mulheres negras, ainda mais aquelas que constroem um caminho que, em algum nível, rompe com o status quo pré-estabelecido para elas. Mas novamente, não existe futuro possível que não considere o bem-estar da maioria da população. Pessoalmente, a minha trajetória de vida me ensinou a ter confiança. E uma imensa certeza de aonde quero chegar. Eu sei quem sou, de onde vim e o que represento. E me apego nisso. No mais, minha mãe tinha um ditado que acabou virando meu mantra: “foque na sua torcida”. Hoje vejo muito mais pessoas querendo progredir do que manter o mundo como está.
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G |O que você diria para alguém que pensa em trilhar um caminho parecido?
SA |Nem tudo é sobre você, mas tudo é sobre o que você é capaz de fazer a partir de quem você é. Não se leve a sério demais, mas também não permita que ninguém diminua o valor das suas conquistas. Tudo é passageiro, absolutamente tudo, o céu e o chão. Seja dona deles. E construa um olhar crítico sobre o mundo, que misture experiências pessoais, estudo e propósito. Você definitivamente não é só a sua capacidade produtiva, você é, primeiro de tudo, uma perspectiva única de mundo.
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G |Na sua trajetória você cometeu alguma falha que não cometeria hoje?
SA |Em uma visão retrospectiva, óbvio. Sem dúvida encontro falhas, dúvidas, decisões com as quais não me identifico mais, mas não me parece justo avaliar com os olhos do agora os resultados dessas escolhas, feitas quando eu não tinha as mesmas ferramentas externas e internas que tenho hoje. Pode parecer autoindulgência, mas acredito que fiz o que podia com o que eu tinha disponível. E tenho imensa gratidão pelo caminho que me trouxe até aqui, inclusive os aprendizados mais duros e as falhas que não repetiria. E, por fim, está na sua trajetória a maior validação de que você precisa. São as suas vivências únicas as grandes ferramentas de trabalho, aquilo que ninguém é capaz de tirar do outro. Tenho isso como um horizonte a ser perseguido: fazer o melhor possível com o que tenho disponível. E fico feliz que hoje tenho muito mais do que tinha, pois se, com esse acesso, vem uma imensa responsabilidade, vem também uma enorme realização pessoal.