CV: João Diamante
O baiano cozinhou com um dos maiores chefs do mundo e lidera um projeto social gastronômico que dá autonomia a centenas de moradores de comunidades do Rio
Foi durante seu tempo na Marinha, prestando serviço militar, que João Augusto Santos Batista — conhecido desde a adolescência como João Diamante —, 30, se descobriu cozinheiro. Antes, entre uma infinidade de outros empregos, entre eles piscineiro e feirante, até chegou a trabalhar numa padaria da comunidade da Divineia, na zona norte do Rio, onde morava, já aos oito anos de idade. “Mas não queria saber detalhes sobre a preparação. Eu era praticamente uma máquina de enrolar e assar pão, para ganhar meu dinheiro no final da semana.”
No quartel, ajudava a servir milhares de pessoas todos os dias e não tinha liberdade para inventar moda no cardápio. Após fazer um curso de nutrição e dietética, no entanto, começou a aprimorar o que podia e acabou chamando a atenção de seus superiores. Reconhecendo o talento do jovem, o comandante o enviou para uma experiência de três meses no restaurante do Iate Clube do Rio de Janeiro.
De volta ao quartel, João implementou uma série de mudanças e acabou subindo a cozinheiro. E ali pegou gosto pela cozinha. Mais tarde, conseguiu fazer o curso de gastronomia oferecido pelo chef francês Alain Ducasse na Universidade Estácio de Sá. “Juntei os quase cinco anos de experiência que tinha na cozinha com a parte teórica que estava começando a aprender.” O resultado foi que João ficou entre os três melhores estudantes da faculdade e, aos 22 anos, recebeu um convite para fazer um estágio em Paris com o próprio Ducasse, chef com o maior número de estrelas Michelin do mundo.
Se eu te perguntar qual outro chef de cozinha preto é referência no Brasil ou no mundo, você não vai saber
Então, passou seis meses trabalhando literalmente no topo de Paris, no restaurante Le Jules Verne, que ocupa o alto da Torre Eiffel. Ao final desse período, recebeu um convite do chef para continuar trabalhando por lá. E aceitou, certo? É, não foi bem assim. João tinha outros planos: voltar ao Brasil e estruturar um projeto social envolvendo gastronomia.
Vindo da Bahia para o Rio com a mãe quando ainda era bem pequeno, ele recebeu ajuda de projetos sociais ao longo de toda a infância e adolescência. Por isso, sempre quis fazer parte de um projeto social. “No início não sabia qual ferramenta usar, mas naquele momento já estava mais do que claro que seria a gastronomia.” Na França mesmo, João começou a projetar o que seria o Diamantes na Cozinha, que vem funcionando desde 2016.
A organização oferece cursos de gastronomia gratuitos para moradores de comunidades carentes do Rio e já formou mais de 250 alunos. Durante a pandemia, as aulas vêm sendo ministradas online, a partir de uma parceria com a plataforma Curseria. Desde que voltou ao Brasil, João liderou uma das cozinhas da delegação espanhola nas Olimpíadas do Rio e foi chefe-executivo do restaurante Fazenda Culinária, no Museu do Amanhã de 2016 a 2017. Hoje, ele lidera o Na Minha Casa, restaurante itinerante que, durante a pandemia, funciona como delivery com cardápio variável.
Em dezembro, ele foi selecionado pela Forbes como um dos empreendedores brasileiros mais brilhantes com menos de 30 anos. E recentemente, em maio, passou a apresentar o programa Garimpeiro do Sabor no canal pago Woohoo, no qual investiga joias raras entre restaurantes pouco conhecidos do Rio de Janeiro.
Em entrevista a Gama, ele comenta aquilo de que abriu mão para chegar onde está, fala sobre a importância de investir conhecimento no Brasil e como derrubar as barreiras sociais na gastronomia do país.
Quando você não tem acesso, precisa fazer duas vezes mais. É realmente se entregar
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G |Quais lições você tirou do período em que trabalhou com gastronomia e especificamente com o chef Alain Ducasse na França?
João Diamante |Como já era aluno do Ducasse, basicamente as técnicas que aprendi na faculdade eram as mesmas aplicadas nos restaurantes. Só uma coisa ou outra mudava. O que me impressionou na França foi a cultura gastronômica e alimentar que eles respiram, a forma como respeitam o alimento. Consumir o alimento em sua integralidade da forma mais natural possível, algo que você começa a aprender por lá desde que nasce. Você experimenta um pão, um queijo, um vinho e é tudo de muito boa qualidade, não existe meio termo. A briga lá é para ver quem é melhor, porque o nível gastronômico é muito alto. Existe respeito com quem planta, colhe e cultiva para levar o ingrediente mais fresco para você e o seu cliente. A França é escrita pela gastronomia, isso é o mais impressionante.
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G |O que te moveu a trilhar esse caminho?
JD |Não tenho nada contra quem vai estudar em outro país, tanto da América quanto da Europa, e acaba ficando. Mas, para mim, se você reclama tanto que o Brasil não evolui e, quando sai e ganha um conhecimento importante, fica lá fora, quando nosso país vai ser de primeiro mundo sem a sua ajuda? Meu pensamento era esse, mas na época não sabia explicar. Sabia que tinha algo dentro de mim que me obrigava a voltar, porque queria contribuir com todo mundo que me ajudou a chegar até ali. O Alain Ducasse me falou que eu estava indo muito bem e, se quisesse continuar, poderia ficar lá. Respondi que tinha uma missão, queria implementar um projeto social para ajudar as pessoas no Brasil. Quem sabe um dia eu volte, mas já com a sensação de dever cumprido, outra visão de gastronomia, levando meus ingredientes e meu país para serem representados lá de alguma forma.
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G |Quais os seus maiores aprendizados nesse tempo à frente do Diamantes na Cozinha?
JD |O projeto é fantástico. O mundo é feito de pessoas, e lá você lida diariamente com pessoas de A a Z. O maior aprendizado é que não importa o quanto você faz, se está dando um milhão de reais, um real ou meia hora do seu tempo. O mais importante é que você faça, porque isso vai ter muita diferença na vida do outro. Algumas pessoas pensam que é pouca coisa, que não vale a pena porque não vai ter impacto. É aí que elas se enganam. O mínimo movimento faz uma grande diferença. Com quase nenhum recurso, já impactamos a vida de milhares de pessoas direta e indiretamente. Temos vários cases de sucesso. Tenho um aluno que era de comunidade, pobre, preto, com um nível de conhecimento muito baixo, e hoje está na África chefiando um restaurante. Outros trabalharam com os melhores chefs brasileiros da gastronomia atual. Alguns estão com empreendimentos próprios voando. Tenho alunos que saíram de uma depressão profunda e hoje já sabem o que querem fazer da vida. É isso que move o Diamantes na Cozinha e qualquer outro projeto social.
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G |Qual a sua missão na sua profissão hoje?
JD |A missão sempre vai ser a mesma, hoje só com um olhar mais flexível. É dar oportunidades iguais para todos, democratizar a gastronomia e incentivar outras pessoas a também chegar. Se eu te perguntar qual outro chef de cozinha preto é referência no Brasil ou no mundo, você certamente não vai saber. Eu conheço alguns poucos porque estou na área. Então sei o peso da responsabilidade que representa o João Diamante. Eu preciso ser mutável, não posso estar só em um lugar. Estou também no mundo da moda, da palestra, da cozinha, da consultoria, sou influencer digital… As pessoas vão enxergar possibilidades, continuar acreditando. É difícil, tem que ser três vezes mais, mas dá para chegar. Uma hora é só você e você, é preciso olhar no espelho e fazer uma autoanálise. Quando a oportunidade aparece, tem que agarrar.
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G |Como você enfrenta o racismo no mercado de trabalho?
JD |Algumas pessoas insistem em dizer que não existe, que é mimimi, mas o racismo está aí até hoje. João Diamante com reconhecimento nacional e internacional continua enfrentando racismo dia após dia. Eu quero lutar até o último dia da minha vida para que isso termine. Já tem centenas de anos que a gente é um país supostamente livre da escravidão, mas sabemos que não é bem assim. O racismo e outros preconceitos estão por aí, o Brasil é um país muito preconceituoso devido à sua colonização. Até isso mudar, vai levar algumas gerações. Mas precisamos fazer força agora para que esteja bem melhor lá na frente. Lógico que enxergo alguma evolução, mas tem muito o que fazer. É continuar militando, coordenando, instruindo para as coisas irem mudando.
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G |Quais são os principais desafios da sua área e como lidar com eles?
JD |De modo geral, a gastronomia acaba sendo uma profissão muito romântica, de cultura. Tudo que é cultura é muito difícil. Existe um lado romântico, que aparece em revistas, jornais e televisão, mas também existe o lado braçal, árduo, que é 90% da coisa. É que nem o jogador de futebol, que as pessoas romantizam, mas poucos conseguiram chegar até lá. As pessoas que entram na gastronomia precisam entender todo o preço que vão ter que pagar. Trabalhar por horas em pé, perder finais de semana, festividades, ir atrás de conhecimento. Além de ser uma profissão super cara, é uma das dificuldades para democratizar. Para aprender e evoluir, você precisa comer em muitos lugares, conhecer plantações, vinhos, é um grande investimento. Ainda existem essas barreiras sociais que definem quem tem mais e menos acesso. O Diamantes na Cozinha existe para tentar encurtar essa distância, mas a dificuldade é nítida.
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G |Você teve que abrir mão de algo para chegar onde chegou?
JD |Dos sete até os 28 anos, abri mão de tudo. Já quase perdi casamento, que na época era namoro. Muitas pessoas da minha família não entendiam isso, diziam que eu tinha sumido. Hoje consigo ter uma vida social melhor do que no passado, até porque comecei outros trabalhos dentro da gastronomia. Se você for abrir um restaurante e ficar 24 horas lá dentro, é difícil ter esse equilíbrio. É abdicar de tudo, família, filhos, irmão, pai. Além de tudo, eu ainda era da Marinha, então abria mão de eventos, viagens… Você está em casa, mas não está, porque sai às 6 da manhã e volta meia-noite, passa três ou quatro dias fora, depois viaja dois meses pela Marinha. É realmente se entregar, mas tem que ver se você está disposto a fazer isso, porque só assim vai evoluir. Quando você não tem acesso, precisa fazer duas vezes mais. Se, para trabalhar com os melhores, eu tenho que dormir dois dias fora, vambora.
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G |Já pensou em desistir?
JD |Eu nunca quis ser quem sou hoje. Durante minha vida toda, só trabalhei e estudei para ter o mínimo: um trabalho digno e um salário que desse para comprar arroz e feijão, viajar para a praia, fazer um churrasco com a família e ter uma casa. O resto foi acontecendo. Com essa força para buscar o mínimo, consegui o que tenho.
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G |Você acha que falhou em algum momento?
JD |Se tivesse me esforçado mais nos estudos, mesmo estudando a vida inteira em escola pública e trabalhando, a evolução poderia ter sido um pouco diferente. Mas hoje estou buscando esse conhecimento que na época tive à mão e acabei afrouxando um pouco. Também nada de absurdo. Da maneira como estou hoje, não tenho mais aquela coisa de “onde quero chegar”. Já estou muito além do que imaginava. Nem nos melhores sonhos pensava em chegar até aqui.
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G |Qual é a importância de uma boa formação acadêmica na sua área?
JD |É uma importância ímpar. Qualquer formação acadêmica só vem para agregar quando te dá uma base boa. Só que a gastronomia não é só feita da academia. 80% da solidez vem da experiência prática. A universidade vai te dar gestão, técnica e várias coisas, mas é a prática que vai te levar a alçar grandes voos. E a prática é árdua, dura, significa trabalhar 16 horas por dia. A academia é fundamental para te dar todo o embasamento teórico, os caminhos que quer seguir e aonde quer chegar, mas é a prática que vai te fazer ser um profissional diferenciado no mercado.
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G |Você vive para trabalhar?
JD |Hoje é totalmente diferente. A percepção e visão do grupo que gerencia minha vida me permitem ter horas de lazer e de trabalho. E olha que hoje o leque é muito maior, mas o conhecimento faz diferença. É costume dizer que quanto mais você trabalha, mais sucesso vai ter. Não é assim. Se você levar a vida com uma estratégia, vai precisar correr menos para rentabilizar mais. É o que acontece hoje. Consigo ter um mínimo de qualidade de vida e priorizar outras coisas. Até porque, como falei, já consegui ir além do que imaginava, então não tem motivo para essa busca incansável. Estou buscando ter saúde e me alimentar ou alimentar o ego de alguém que está assistindo minha vida pelo lado de fora? Se eu queria chegar aqui, agora tenho que desfrutar, senão a vida não faz sentido. O que me dá gás, criatividade e sabedoria são meus momentos de lazer.