CV: Clarice Assad
Com indicação inédita ao Grammy pelo álbum ‘Archetypes’, que criou ao lado pai, a multi-instrumentista é um dos destaques da música erudita atual
A música vibra em Clarice Assad desde que a cantora, pianista e compositora era apenas uma criança. Ao lado do pai, o violonista Sérgio Assad, que passava seus dias dando aulas e estudando música erudita, a pequena Clarice desenvolveu uma “relação visceral” com as partituras e melodias, como ela mesma conta, em entrevista a Gama. Hoje aos 43 anos, o talento – junto a muita, muita transpiração – foi recompensado com três indicações ao Grammy, em Melhor performance de um pequeno conjunto de música de câmara; Melhor engenharia de som de álbum, clássico; e Melhor composição clássica contemporânea. Esta última terá pela primeira vez um brasileiro entre os indicados.
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A carioca radicada nos Estados Unidos é uma das poucas mulheres a conseguir espaço e reconhecimento na música clássica. Uma pesquisa recente da Fundação Donne (que luta por equidade no meio musical) mostrou que, nas temporadas de 2020 e 2021, apenas 5% das músicas apresentadas pelas cem principais orquestras do mundo foram compostas por mulheres. Assad foi uma das que driblou as estatísticas, e agora recheia sua agenda de compromissos de peso, como a composição de sua primeira sinfonia a convite da Philharmonia Orchestra, de Londres, que será executada e gravada em maio.
“Precisamos parar, respirar, simplesmente ouvir e sentir – assim como na minha infância, quando ouvia algo e me emocionava. Devemos buscar mais esse lugar de escuta”, conta a multi-instrumentista na entrevista que você lê a seguir.
Música me ensinou a ter disciplina, sentar, estudar e praticar até aquela melodia sair, e a ter muita paciência
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G |O que a moveu a trilhar esse caminho?
Clarice Assad |Cresci numa família de músicos, então a música sempre esteve presente no meu dia a dia. Meu pai e meu tio são violonistas clássicos, e há esse repertório em casa, de muito estudo, porque eles eram virtuosos no violão, ainda são. O nível de música que eles tinham e tem é absurdo, e eu cresci ouvindo aquilo, achando que era algo normal. O eu considerava padrão na música, quando criança, era um nível muito além, pela complexidade e qualidade da música no meu entorno. Me conectei com a música muito rápido, chorava e me emocionava ouvindo melodias. Era muito estranho. Imagina? Uma criança ouvir uma música triste e chorar. Tenho e sempre tive essa relação com música, desde cedo. Não sei de onde vem isso. E muitas vezes, quando questões difíceis surgiam na minha vida (como surgem para todos), sempre me virava para música, como um refúgio mesmo. Virou algo muito emocional, criei uma ligação visceral com a música.
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G |Seu pai e seu tio foram seus grandes mentores?
CA |De certa forma sim, porque eles estavam sempre juntos, estudando. Mas diria que foi mais o meu pai, porque passei muito tempo da minha primeira infância com ele, que costumava ficar em casa dando aula e estudando. E eu ficava ali do lado ouvindo, ele interagia comigo. Novamente a questão emocional entra aqui, porque eu e meu pai temos uma ligação muito forte, até hoje, dentro e fora da música.
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G |Quais os seus maiores aprendizados nesses anos como compositora e pianista?
CA |Tem tanta coisa…. Quando você compõe, quando cria alguma coisa, você precisa criar de algum lugar, aquela criação não vem do nada. Tem gente que insiste em dizer que essa inspiração vem de repente, mas não é bem assim [risos]. A inspiração é importante, mas tem também a parte da transpiração. Música me ensinou a ter disciplina, sentar, estudar e praticar até aquela melodia sair; e também a ter muita paciência, porque você não aprende uma coisa da noite para o dia. Há um processo, e se não gostar desse processo, você não consegue fazer nada. São esses os dois grandes aprendizados que a música me proporcionou. E claro, aprendi a buscar várias curiosidades para me inspirar: ler muito, viajar, aprender sobre as pessoas. Comunicação é outro fator muito relevante, como você se comunica com os músicos e com o público. Tudo faz parte dos aprendizados da música. Acho que todo mundo deveria aprender música só por isso, porque são aprendizados para a vida como um todo.
Resiliência foi algo importante que aprendi, especialmente para o começo da carreira, quando precisamos mais do que nunca mostrar serviço
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G |Dá para dizer que você trabalha em família. Qual é o segredo para trabalhar bem com parentes?
CA |Música é uma coisa interessante, porque é uma área onde precisa existir colaboração. Toda família tem suas complicações, mas na hora da música, todos os presentes ali estão harmonizando um com o outro, literalmente. Cada um faz a sua parte. E acho que isso é um grande ensinamento, no final das contas, até para as relações fora da música. Como nossa família passou muito tempo fazendo sarau dentro de casa, aprendemos a nos comunicar melhor para além do ritmo e do som. A maior parte da nossa relação é muito boa, como família, e atribuo isso à música. Foi o que nos uniu, mais do que tudo.
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G |Como é ser mulher na sua área?
CA |Ser mulher não é algo fácil em nenhuma área, se pensarmos bem. Havia, até um certo momento, esse papo de que a mulher não podia fazer certos trabalhos físicos, mas os não físicos também estavam sendo ocupados pelos homens. E com a música não é diferente. Tive duas grandes figuras que me ajudaram muito a acreditar em mim. Uma foi meu pai, que em momento algum colocou como empecilho o fato de eu ser mulher. Isso foi incrível, um homem nessa posição, que me incentivou e encorajou tanto. Não são todos os homens que têm esse cuidado. E a segunda figura é a mulher do meu pai, Angela Olinto, que é astrofísica. Se tivermos que pensar em um mundo com pouquíssimas mulheres, é esse. E como eu via ela ir cada vez mais longe naquela área, fui me espelhando na trajetória dela. Ela me disse algo que jamais vou esquecer: “Você precisa ter resiliência”. Dizia que os obstáculos iriam surgir, e que eu precisaria ter essa força de não me deixar abater, de seguir em frente. Foi algo importante que aprendi com ela, especialmente para o começo da carreira, quando você está tentando se estabelecer e precisando mais do que nunca mostrar serviço – não é fácil –, fora o julgamento em torno da mulher querendo escrever música erudita.
Quando ligo o rádio, tenho a sensação de que está tudo muito parecido, sabe? Termina uma música, começa a outra e parece que é tudo igual
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G |Quais são os principais desafios da sua área e como lidar com eles?
CA |O que está acontecendo na música, hoje em dia, é que a MPB, a música erudita, o jazz, ficam cada vez menos em evidência. Tudo está ficando muito homogêneo. E isso não é legal, porque precisamos de uma contrapartida, de uma oposição, de estilos diferentes. Estamos lutando para termos mais interessados em ouvir outras músicas além do que toca no rádio. Diversidade é a coisa mais importante, o meio ambiente já ensina isso há tempos. Não podemos cortar todas as árvores diferentes, ou vamos morrer. Na música é a mesma coisa, e em outras áreas também. Se você ouvir só a mesma coisa, você não vai crescer, não vai ver o lado do outro. O desafio é ensinar as pessoas a abrirem a cabeça e o ouvido para experimentarem coisas diferentes, para o trabalho que o músico está fazendo hoje em dia. Quando ligo o rádio, tenho a sensação de que está tudo muito parecido, sabe? Termina uma música, começa a outra e parece que é tudo igual. E não é que não temos diversidade sonora – aliás, temos! Há pessoas fazendo música diversa, mas tem pouca gente ouvindo.
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G |Já pensou em desistir?
CA |Teve uma época tão ruim que considerei desistir. Não durou muito tempo, mas realmente pensei em tentar outra coisa, porque estava muito difícil conseguir viver de música. Estava fazendo música, mas outras coisas por fora também. Aprendi a fazer design de web, por exemplo, assim que me formei. Eu me perguntava como ia viver de música, questionei se deveria buscar algo que me desse mais estabilidade, já que não sou uma pessoa que gosta de viver sem planejamento. Gosto de um pouco de segurança, saber o que vai acontecer lá na frente, então pensei em talvez fazer outra faculdade. Mas foi muito curioso o acaso e a ordem das coisas, porque no dia seguinte desse pensamento, recebi um convite incrível, para tocar num festival de jazz muito importante, que me abriu muitas portas. Até então eu não tinha tido aquela oportunidade, de mostrar para muitas pessoas o que eu tocava. Li aquilo como um sinal do universo, de que eu deveria seguir com a música.
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G |Qual sua missão na profissão?
CA |É engraçado, porque ainda estou tentando entender qual é. Mas sabe quando você só percebe depois que acontece, que as coisas acabaram saindo daquela maneira? Então acabei acreditando que devia ser assim. Acho que de certa forma a música traz à tona algumas questões, especialmente algumas metáforas, do que é escutar. Música é uma coisa que vai completamente contra tudo que acreditamos agora, porque não é material, não podemos pegar. Está mais no sentir. Estamos sendo bombardeados de informação o tempo todo, e ter esse momento de escuta é muito importante, é disso que estou atrás. Acho que a missão é essa: vamos parar, respirar, sentir isso daqui, simplesmente ouvir – assim como quando eu era criança, e ouvia algo e me emocionava. Precisamos ir mais de encontro a esse lugar de escuta. Todo mundo está falando muito, e muito alto, e acho que precisamos parar um pouco, e escutar. Televisão, rádio, celular, tudo tem som, a música está presente o tempo todo, ela não para. Mas é tudo uma massa sonora, um barulho, um ruído sem sentido. Precisamos ouvir de fato a música.