CV: Christiane Jatahy — Gama Revista
Leo Aversa

CV: Christiane Jatahy

A dramaturga, diretora teatral e cineasta carioca, única brasileira a ganhar o Leão de Ouro da Bienal de Veneza, fala sobre a carreira, que mistura teatro, cinema, poesia e política

Ana Elisa Faria 30 de Setembro de 2024

O cinema e o teatro, a poesia e a política. Essas misturas são o segredo do sucesso da dramaturga, diretora teatral e cineasta carioca Christiane Jatahy, 55, que, em 2022, recebeu o Leão de Ouro da Bienal de Veneza — a primeira brasileira a ganhar a homenagem — pela carreira de cerca de 30 anos.

“Observadora impiedosa e aguda da crueldade violenta do nosso mundo. Uma das figuras mais originais da onda teatral que regenerou o cenário europeu nas últimas décadas”, assim a organização do prêmio italiano a descreveu.

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Com formação em teatro, jornalismo e cinema, além de cursos de arte e filosofia, Jatahy, ao longo do tempo, foi usando o conhecimento em todas essas áreas para montar espetáculos inventivos e que mesclam técnicas, linguagens e temáticas, como os premiados “A Falta que Nos Move” (2005), “Julia” (2011) e “E Se Elas Fossem para Moscou?” (2014).

A partir de “Julia”, inclusive, ela ganhou o mundo e passou a ser chamada para dirigir em companhias europeias, como a Comédie-Française, de Paris, onde comandou, em 2017, “A Regra do Jogo”, adaptação do filme homônimo de Jean Renoir, de 1939. Sobre o reconhecimento, Jatahy se diz feliz, principalmente por conseguir chegar em mais pessoas por meio do seu trabalho, porém, ainda assim, não se sente 100% segura — e acha bom.

O Leão afirma a minha trajetória. Mesmo assim, como artista, ainda guardo inseguranças. Prêmios são estímulos, mas a gente continua vulnerável

Vivendo entre a França e o Rio de Janeiro, atualmente Jatahy está na capital paulista com a direção cênica da ópera “Nabucco”, do italiano Giuseppe Verdi (1813-1901), em cartaz no Theatro Municipal de São Paulo até 5 de outubro. Ela volta à cidade após uma temporada em 2023 com a peça “A Hora do Lobo” — a primeira parte da “Trilogia do Horror”, idealizada entre 2020 e 2022, como resposta da diretora ao que estava se passando no país naquele período.

Essa abordagem está presente em toda a produção dramatúrgica de Jatahy, que conta que o seu teatro é político. “Política não é só o que acontece em Brasília”, diz na entrevista abaixo.

O teatro é sempre político, mesmo quando não falamos de política. Só o fato de estarmos juntos no mesmo espaço, discutindo, pensando coletivamente sobre uma questão, já é uma ação política

  • G |Quais foram os maiores aprendizados da sua trajetória até aqui?

    Christiane Jatahy |

    Entender o lugar do estrangeiro, por exemplo, é um aprendizado. Não à toa discuto isso em “A Hora do Lobo” e em outros espetáculos. Meu lugar é outro [diferente da situação da protagonista da peça] porque sou bem-recebida, mas me deu uma perspectiva que envolve questões culturais, de língua, e o entendimento do que é casa, de falar para o mundo e, ao mesmo tempo, voltar para o seu lugar. Para mim, também ficou evidente a diferença de como sobrevivemos a muitas coisas no Brasil. Como artista, vivemos na luta de uma maneira muito, muito, muito intensa para poder criar. Eu já reconhecia isso quando criava no Brasil, mas quando você vê de fora entende a dimensão do que é criar com estrutura. Ao mesmo tempo, quanto mais eu saía, mais eu me ancorava aqui. Quanto mais distante eu me via, mais parecia que tudo o que eu queria eram as minhas raízes, que ficavam mais evidentes. A gente se dá conta de que somos constituídos desses movimentos, que vêm dos nossos ancestrais. Somos feitos de pessoas que se movimentaram. E isso tudo está misturado nos meus trabalhos.

  • G |Qual é a sua grande missão na carreira? Ela mudou com o tempo?

    CJ |

    Engraçado, porque ela muda e é a mesma. Muda porque a gente amadurece, e passa a olhar as coisas de outra forma, com mais senso. Acho que envelhecer, na verdade, é somar vidas. Então, parece que vamos tendo mais vidas, ficando mais largos, indo mais para os lados. Mas, essencialmente, tem alguma coisa que é parecida com o início, de quando comecei. Quando estudei jornalismo, também estudei filosofia, e, para mim, era muito importante a questão de tentar entender o lugar em que eu estou, no momento em que estou, no mundo e na história, e o que isso significa em termos de responsabilidade como expressão do meu trabalho sensível e artístico. Isso sempre me moveu. Então, o meu teatro é um teatro político. Acredito que o teatro é sempre político, mesmo quando não falamos de política. Só o fato de estarmos juntos no mesmo espaço, discutindo, pensando coletivamente sobre uma questão, já é uma ação política. Política não é só o que acontece em Brasília. Mas, obviamente, com tudo o que aconteceu nos últimos tempos no Brasil, discutir as questões sociais e as estruturas que propiciam com que a gente, às vezes, fique sem conseguir sair da borda do abismo, para mim, tornou-se cada vez mais urgente e necessário. Falar sobre isso é uma responsabilidade e uma escolha também.

  • G |Na vida profissional, você teve algum momento de ponto de virada?

    CJ |

    Tiveram alguns. O filme “A Falta que Nos Move” (2011) foi um ponto de virada importante. Foi quando eu assumi o cinema de uma maneira integral. E tudo começou a ter uma relação com o cinema ou porque eu estava fazendo um documentário ou uma ficção, no caso de “A Falta que Nos Move”. Foi um marco fundamental para mim como linguagem. Assim como “Julia” foi muito importante como uma espécie de confirmação. Quando você começa a ter olhares que vão se ampliando parece que o trabalho vai se confirmando, você dialoga com mais pessoas, de lugares diferentes, encontra afinidades, e isso também alimenta o trabalho. Depois, o Leão de Ouro, em 2022, quase 11 anos após as pessoas realmente começarem a ver o meu trabalho. O Leão afirma a minha trajetória. Mesmo assim, como artista, ainda guardo todas as minhas inseguranças. Prêmios são estímulos, mas a gente continua vulnerável. E acho que é importante um artista ser vulnerável, porque a gente não é dono da verdade, a gente está sendo atravessado, assim como todo mundo.

  • G |O machismo também está no meio teatral? Como você enfrenta o machismo?

    CJ |

    Enfrento questões do tipo sempre. Com o tempo isso tenta se relativizar porque o nosso embate feminista ficou mais explícito, e acho que agora não dá mais para falar determinadas coisas. Quer dizer, não dá, mas se diz. Infelizmente, estamos no meio da luta. Já passei por todas as situações clássicas: olhar ao redor e ser a única mulher, ganhar menos do que outras pessoas que estavam no mesmo patamar que eu e descobrir isso porque o próprio teatro achou injusto e aumentou o meu salário, dizendo que eu estava recebendo menos do que alguns homens. São misoginias, sem falar das histórias que todas nós mulheres temos, de receber olhares abusivos, viver relações abusivas. De sermos vistas como corpos objetificados, não como seres humanos. “A Hora do Lobo” também fala sobre isso. Não é só uma imigrante, não é só alguém que busca acolhimento. É uma mulher à procura de acolhimento que vai sofrer a objetificação do próprio corpo, a violência contra a sua integridade, como ser humano e como mulher.

  • G |Quem são seus mentores na carreira?

    CJ |

    Há muitas pessoas com quem fui cruzando. Gosto de citar a Pina Bausch, que nunca conheci pessoalmente, mas cujos primeiros trabalhos me transbordaram e me fizeram olhar a cena com uma outra perspectiva. E isso é uma maneira de ser mentora também. Depois, tive pessoas que foram importantes na minha trajetória porque me trouxeram aprendizados, como o José Sanchis Sinisterra, um dramaturgo espanhol com quem eu tive uma relação bem longa, ele é um grande professor de dramaturgia, uma figura essencial para eu pensar em estrutura dramatúrgica. Alguns encenadores com quem trabalhei, como o Aderbal Freire Filho e o Zé Celso, foram encontros importantes que me provocaram como artista. Os livros que eu li e os filmes que assisti também foram espécie de mentores. Por exemplo, a obra da Clarice Lispector. Fui muito viciada em Clarice durante um bom tempo, a Virginia Woolf também foi especial para mim. Tem muitos homens também, mas, hoje, prefiro falar das mulheres. Uma diretora que tenho gostado de citar é a argentina Lucrecia Martel, que faz um cinema que me interessa muito.

  • G |O cinema, tanto na técnica quanto na temática, sempre esteve presente no seu trabalho. De onde surgiu essa vontade de misturar o teatro com o cinema?

    CJ |

    Acho que, de alguma forma, mesmo quando eu não usava a projeção em cena, como a minha formação foi em cinema e como eu fui muito mais uma espectadora de cinema do que de teatro, ele sempre esteve no meu trabalho. Mesmo quando não usava no palco, eu usava dispositivos cinematográficos do ponto de vista do espectador. Fiz um espetáculo, por exemplo, em que o público se sentava em arquibancadas móveis, e as arquibancadas faziam o “zoom in” e o “zoom out”, como se fosse uma câmera. Então, não tinha projeção, mas tinha toda a perspectiva de aproximação, distanciamento, quadro. Ou quando fiz “Corte Seco” (2010), em que trabalhava com câmeras de segurança. A base da pesquisa do meu trabalho sempre foram os documentários que eu criava antes de fazer o espetáculo. “E Se Elas Fossem para Moscou?” (2014-2015), até ser uma peça, foi o documental “Utopia.doc”, que serviu de base para a construção da dramaturgia da peça. E, a partir de um determinado momento, me interessou pensar em como o cinema poderia afetar a dramaturgia. Não queria só usar a projeção por usar. Tanto que levei um tempo resistindo a adotá-la porque não queria que a projeção fosse um efeito, algo cenográfico. A questão do cinema tinha de estar na história que a gente estava montando, como em “A Hora do Lobo”. Os personagens têm a experiência de fazer um filme, eles manipulam a câmera, a montagem está em cena. E fui descobrindo as tecnologias. A câmera em cena possibilita que a gente escreva outras camadas de uma história.

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