CV: Áurea Carolina
Hoje à frente da ONG Nossas, ex-deputada fala sobre a decisão de deixar a política e a atual missão de apoiar novos movimentos e lideranças
Em 2022, uma deputada federal causou surpresa no meio político ao anunciar que não concorreria a um próximo mandato. A ex-deputada Áurea Carolina (PSOL-MG) se elegeu ao Congresso em 2018, dois anos após ter sido eleita vereadora com a maior votação da Câmara Municipal de Belo Horizonte. A decisão de deixar a política institucional, no entanto, não foi leviana nem tomada da noite para o dia. Englobou inclusive o fato de Carolina precisar conciliar a maternidade recente com a rotina desgastante no Congresso. “Botei na balança e senti que não valia mais a pena. Sabe aquele brilho que eu tinha? De repente, comecei a me perguntar: o que estou fazendo aqui?”, conta a ex-parlamentar a Gama.
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Mesmo após a definição de um futuro fora da política tradicional, Carolina chegou a integrar a equipe de transição do governo Lula. E, em fevereiro, a cientista social assumiu como diretora-executiva da ONG Nossas, rede de ativismo que organiza pessoas e desenvolve metodologias e tecnologias para mobilização no Brasil. “Está sendo muito saudável colocar minha energia para projetar lideranças e fortalecer movimentos”, conta Carolina, que diz estar desenhando formas de apoiar e incentivar outros mandatos ativistas como o seu.
Hoje, à frente do Nossas, ela está ativamente engajada na campanha pela primeira indicação de uma ministra negra ao STF (Supremo Tribunal Federal). “É lamentável que a gente tenha uma situação como a indicação do ministro Zanin ao STF, que teve votos contrários à agenda da comunidade LGBTQIA+. Não é porque foi indicação do Lula que está tudo certo. A gente precisa de um STF no mínimo com mais representatividade.”
O interesse pela política e pela participação em movimentos populares surgiu desde a juventude, quando seus esforços estavam mais focados na área artística. Foi nessa época que articulou com outros jovens das periferias de Belo Horizonte, onde morava, um coletivo de hip hop que unia música e dança ao ativismo. Na escola, surgiu também um interesse crescente pelo cinema documental, inflamado pelas sessões gratuitas que começou a frequentar.
Essa trajetória precoce levou Carolina a cursar ciências sociais na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde seu foco passou da arte à política. Em 2009, pouco após concluir a graduação, a perda do pai fez com que ela se mudasse para Brasília, onde conseguiu uma bolsa para fazer uma pós na Universidade Autônoma de Barcelona. “Fiquei nove meses em Barcelona, numa pós-graduação essencialmente feminista”, conta a ativista. “Tinha professoras maravilhosas de diferentes lugares do mundo, algumas até da América Latina. Eu estava em Barcelona quando explodiu o15-M em 2011 [série de protestos que pedia mudanças na política e sociedade espanholas]. Aquilo me impactou muito.”
De volta a Belo Horizonte, em 2011, passou a articular movimentos e discussões sobre os direitos da juventude, tornando-se uma liderança importante entre jovens negras. Além disso, se engajou ativamente na campanha contra o então prefeito de Belo Horizonte, Marcio Lacerda (PSB-MG), que concorreria à reeleição no ano seguinte. A vitória de Lacerda no primeiro turno, segundo a ex-parlamentar, gerou um sentimento de indignação que ajudou a construir as Muitas, movimento de coletivos, organizações sociais e ativistas para concorrer nas eleições municipais de 2016, em que ela foi eleita vereadora.
Mestre em ciência política pela UFMG, Carolina mostrou seu impacto no apoio a novas lideranças com a participação na campanha da hoje deputada federal Célia Xakriabá (PSOL-MG), que foi assessora de seu mandato. Xakriabá é a primeira indígena a representar o estado de Minas no Congresso. “A eleição da Celinha foi também uma questão de honra, eu sentia uma dívida comigo mesma. Não posso sair e deixar um gosto de vitória para aqueles que estão contra nós”, declara.
Apesar de ter integrado a equipe de transição, Carolina hoje não tem medo de fazer críticas ao atual governo Lula. Em junho, ela também publicou um depoimento na revista Piauí, explorando em detalhes os motivos para desistir da política. A ativista e ex-parlamentar bateu um papo com Gama, em que frisou a importância de se colocar sempre como prioridade, saber a hora de nadar contra a correnteza e manter a capacidade crítica independentemente da conjuntura política.
Tenho pensado em como apoiar mandatos ativistas, que merecem um olhar mais atencioso e criterioso
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G |Na juventude, você teve experiências importantes com a música e o ativismo. Já tinha uma consciência clara do caminho que queria seguir?
Áurea Carolina |Eu queria encontrar sentido, encontrar minha galera. Essa era a importância do hip hop, ser a minha família na rua. Passou a ser um lugar em que me encontrei não só politicamente, mas quase profissionalmente. Por conta da minha atuação na luta popular, consegui trabalhar, estudar e fazer ativismo, tudo integrado, e foi maravilhoso. Então comecei a trabalhar em projetos culturais, num programa de ciência na UFMG com jovens do hip hop. Quando estava no ensino médio, passei a circular mais pela cidade. Venho de João Pinheiro, um bairro periférico de BH. Na escola onde eu estudava, divulgavam muitas sessões e festivais de cinema, e aí comecei a gostar muito de documentário. Por isso decidi fazer ciências sociais, mas minha trajetória no curso foi por outro caminho, o da consciência política. À medida que comecei a atuar em movimentos sociais, o documentário e o hip hop foram ficando para trás.
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G |Você se tornou uma voz importante de representação da juventude negra e feminina no Brasil. Foi esse caminho que te levou à política?
AC |Comecei a atuar em políticas públicas de juventude, um debate que cresceu muito em meados dos anos 2000. Cheguei a ser conselheira e secretária-executiva no Conselho Municipal de Juventude de Belo Horizonte. Então as coisas foram crescendo. Quando veio a eleição de 2012, a gente já vinha no trabalho de construir alternativas para livrar Belo Horizonte do prefeito Mario Lacerda. Apoiei o Patrus, candidato do PT, mas o Lacerda foi reeleito em primeiro turno, para nossa tristeza. Lembro de ficar de luto no dia da eleição. Assim como várias pessoas, saí indignada. Daí veio a eleição de 2014, toda a loucura do país. Eu fiz campanha para a Dilma em meio a toda aquela polarização. As pessoas achavam que eu era do PT, mas nunca fui filiada. Um dia, fui numa reunião do PSOL para ver como era, comecei a conversar com algumas pessoas. No início de 2015, sugeri a colegas lançar uma candidatura. A partir disso, as conversas se expandiram para um encontro no Parque Municipal de Belo Horizonte. Foi o marco inaugural da campanha coletiva em que me candidatei a vereadora.
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G |Você foi eleita vereadora com a maior votação em Belo Horizonte, e em 2018 chegou ao Congresso como deputada federal. Como definiria essas experiências?
AC |Foi uma experiência de muita paixão. Uma loucura, um encantamento, uma vontade de fazer e acreditar. Tinha uma coisa pessoal, uma identificação muito grande. Ainda guardo isso, mas a experiência vai calejando. Depois de seis anos na política institucional, fui me transformando muito. A maternidade, a própria dinâmica de poder, a violência política, não ter tempo para nada… Eu não tinha dia livre nem descanso, não conseguia conciliar tanta coisa. Então botei na balança e senti que não valia mais a pena. Sabe aquele brilho que eu tinha? De repente, comecei a me perguntar: o que estou fazendo aqui?
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G |Nas eleições de 2022, você trabalhou ativamente pela eleição da deputada Célia Xakriabá. Acredita que hoje sua missão está na formação de novas lideranças?
AC |É isso que me dá mais tesão agora. Assumi a direção executiva do Nossas e estou muito empolgada de trabalhar mais protegida. Assim não fico tão exposta. Está sendo muito saudável colocar minha energia para projetar lideranças e fortalecer movimentos. Tenho pensado em como apoiar mandatos ativistas. No momento em que vivemos, ter pessoas com esse perfil é diferente das esquerdas convencionais. Merece um olhar mais atencioso e criterioso sobre esse fenômeno, que vem dos últimos oito anos. Marielle é mais do que um emblema, é a concretização disso. A eleição da Celinha foi também uma questão de honra, eu sentia uma dívida comigo mesma. Não posso sair e deixar um gosto de vitória para aqueles que estão contra nós. A Celinha fala que é o encontro do turbante com o cocar. Nunca fui muito de usar turbante, mas é legal a imagem que ela traz. Celinha é da poesia, da cosmovisão. Quando ela se disponibilizou a ser candidata, vi a oportunidade de dar continuidade ao mandato e além, porque os movimentos indígenas são muito maiores. Me sinto realizada de contribuir para essa vitória da Celinha que, de forma muito particular, é uma vitória para mim também.
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G |Do que você mais se orgulha nessa trajetória?
AC |De lá para cá, surgiram tantas campanhas e mandatos coletivos. Demos uma contribuição singular para isso. Me orgulho muito das nossas inovações, como a destinação de emendas parlamentares por meio de consulta pública. Foi uma quebra da lógica clientelista eleitoreira, um trabalho maravilhoso, já que as emendas parlamentares têm se tornado uma moeda de muito peso político no Brasil. O Orçamento Secreto demonstrou isso, como o Congresso Nacional está superestimado e hipertrofiado neste momento. A mídia se aprofunda muito pouco no papel das emendas para o bem e para o mal, porque a gente também conseguiu potencializar muitas iniciativas incríveis. E me orgulho da construção política no aspecto mais educativo. Sempre falei de uma política dos afetos e me esforcei genuinamente para isso, construí muitas relações e parcerias que vêm daí.
Lidei o tempo todo com preconceitos, ataques e ameaças
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G |Como você lidou com o machismo e o racismo nessa caminhada dentro da política? Se sentiu deslegitimada em algum momento?
AC |Lidei o tempo todo com preconceitos, ataques e ameaças. As ameaças, a gente fazia uma força-tarefa para investigar, mas nunca teve resolução de nada. Sou muito crítica à lógica espetaculosa de que as figuras públicas precisam ser também performers da política. Eu sou muito desajustada para isso e também menos engajada em número de seguidores. Faço uma comunicação mais discreta, responsável e pedagógica, o que não bomba muito. Até hoje, só tenho rede social pelo meu trabalho. Se pudesse, não teria. Sobre preconceito, às vezes eu dava respostas pedagógicas. Lembro que, quando fui candidata à Prefeitura de Belo Horizonte, em 2020, teve uma entrevista que eu não pude atender, e fizeram uma crítica me detonando. Mas eu precisava amamentar meu filho. Além de zilhões de outras coisas que eu fazia, era mãe de um bebê de colo. Então fui criticada e recebi muito apoio também. Dependia muito de cada situação. Na campanha, eu conseguia falar mais abertamente sobre isso, mas deixei passar muita coisa.
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G |Como foi tomar a decisão de deixar a política?
AC |Depois da campanha para a prefeitura, eu tive um colapso. Em 2021, adoeci mesmo, foi um burnout. Cheguei a pensar em desistir, mas nunca fui só eu. Era um mandato coletivo. Tirei uma licença médica, e a equipe me apoiou integralmente. Algumas dessas pessoas trabalham comigo até hoje, são grandes amigas. São lideranças maravilhosas, estão em espaços institucionais, em organizações da sociedade civil. Tenho muito orgulho de saber que essa equipe sempre foi muito ponta firme e qualificada. Eles seguraram a onda. Quando me recuperei e retornei, tomei a decisão de não me candidatar à reeleição. Decidi que íamos trabalhar no ano de 2022 por um encerramento à altura do que foi a nossa história até ali. E foi lindo.
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G |Você voltou a atuar na sociedade civil como diretora-executiva do Nossas. Como foi essa transição em termos pessoais e profissionais? Qual a sua visão sobre recomeços na carreira?
AC |É um reencantamento, esse desejo de fazer da minha existência algo em que eu me reconheça e que vale a pena. Sinto isso no ativismo, mas não é um ativismo a qualquer preço. Já me sacrifiquei bastante em nome dessa ideia. Hoje também sou minha prioridade. Eu me cuido e estou num espaço de trabalho que me permite isso. A equipe do Nossas tem um amor muito grande pelo trabalho, uma empolgação. É um lugar novo, uma posição que me leva a estudar e aprender muita coisa. Estou no meu processo de crescimento pessoal. No momento político do Brasil, a sociedade civil tem papel decisivo. A gente está vivendo um governo de transição democrática. Não temos ainda muita clareza do cenário político e precisamos fortalecer a resiliência da sociedade. Isso é trabalho de base, educação popular, tudo que fiz minha vida inteira. A formação de gente que anda com as próprias pernas e pensa com a própria cabeça, que é solidária, cuida de si e de quem está ao redor. É para isso que serve a luta política. Eu gosto disso e acho que estou gabaritando vários lugares e possibilidades de fazer política.
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G |Qual o seu principal aprendizado nessa trajetória?
AC |Um aprendizado é conciliar melhor como eu me sinto com o que observo. Olhar o que acontece no jogo político com um pouco de distanciamento, sem tanta inocência, mas também sem cinismo ou apatia. É tão difícil falar isso, mas deixar de ser trouxa na política, é um pouco isso.
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G |Hoje, o que você responde quando alguém pergunta por que deixou a política?
AC |Me perguntam de várias formas. Por isso eu quis sistematizar naquele depoimento para a revista Piauí. Queria contar com o máximo de honestidade possível, e responsabilidade também, porque não é um lugar apenas de dificuldade, mas de muita potência, de poder decidir. As pessoas costumam seguir o fluxo, vão se candidatando até perder. Eu fui na contramão, tomei uma decisão que refletia o que realmente desejava e acreditava. As novas gerações têm mais horizonte abertos, inclusive para preservar um propósito. É importante ter essa escuta interior. Para que a gente faz política? Para mim, tem a ver com chamado, com compromisso e responsabilidade, mas também com prazer, alegria de estar no coletivo, de mover coisas juntos. Hoje não sinto mais necessidade de dar essa satisfação. O texto trouxe o que eu precisava dizer.
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G |Qual conselho você daria a um jovem que queira trilhar um caminho parecido com o seu?
AC |Precisamos de uma sociedade civil capaz de fazer um contraponto em qualquer conjuntura. Num momento em que a gente tem um governo de amplíssima coalizão, enfrentando todas as chantagens de um Congresso de maioria conservadora, é papel da sociedade civil ter capacidade crítica. É lamentável que a gente tenha uma situação como a indicação do ministro Zanin ao STF, que teve votos contrários à agenda da comunidade LGBTQIA+. Não é porque foi indicação do Lula que está tudo certo. A gente precisa de um STF no mínimo com mais representatividade. É esse tipo de crítica que a gente precisa fazer com responsabilidade, sabendo a hora de apoiar. Lideranças ativistas como a ministra Anielle Franco, Sônia Guajajara e a própria Marina Silva são maravilhosas, mulheres com trajetórias que admiramos. Mas estão num governo que não tem demonstrado que as agendas da população negra, dos povos indígenas e a questão socioambiental são prioridade. Não dá para não falar dessas coisas por medo de uma ameaça pior. Temos que construir dias melhores, é com essa perspectiva que lidero uma organização. Como instituição de ativismo popular, o Nossas precisa ter essa visão muito bem estabelecida.
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