CV: Anacláudia Rossbach
Diretora do ONU-Habitat, programa dedicado a promover cidades inclusivas, sustentáveis e com moradias dignas para todos, fala sobre o que a move, mentoras e os conselhos que a motivaram a ocupar cargos de liderança
A maternidade transformou a vida e a carreira de Anacláudia Rossbach, 54, primeira pessoa da América Latina a assumir a direção do ONU-Habitat, programa das Nações Unidas que se dedica à promoção de cidades inclusivas, sustentáveis e com moradias adequadas para todos. Ao se tornar mãe, a economista reconheceu o quão significativo é ter um lar cômodo e seguro, o que a direcionou para uma trajetória profissional voltada para as políticas urbanas e a habitação social. “Não passei por necessidades similares às das populações com as quais trabalho, mas compreendi as necessidades de uma mãe e a importância de ter uma casa”, diz.
- MAIS SOBRE O ASSUNTO
- O que minha carreira me ensinou
- CV: Irene Vida Gala
- CV: Carina Mendonça Pimenta
Guiada desde a juventude pelo desejo de contribuir para o Brasil, Rossbach se formou em economia motivada pelo contexto econômico da época, a hiperinflação, e pela desigualdade que presenciou ao sair da “bolha paulistana” em que vivia. Após uma passagem pelo setor privado e um período no exterior, decidiu se reinventar e voltou ao país em busca das suas “aspirações originais” para trabalhar em projetos que atendessem às necessidades reais do povo, como a construção de moradias dignas.
Antes de se tornar a brasileira em um cargo mais elevado no secretariado da Organização das Nações Unidas, Rossbach ganhou experiência passando por locais como a Secretaria de Habitação de São Paulo, o Banco Mundial e a Cities Alliance. À frente do ONU-Habitat, sediado em Nairóbi, no Quênia, hoje a profissional enfrenta desafios gigantescos. “Um bilhão de pessoas moram em assentamentos precários, e trabalhar nesses locais exige um enfoque multidimensional. Não podemos tirar as famílias de onde elas estão e colocá-las em outro lugar, existem relações econômicas, sociais e culturais desenvolvidas ali”, destaca.
Além da agenda habitacional e urbanística, Rossbach defende a igualdade de gênero e o valor de ouvir mais as mulheres, que devem se colocar e ocupar espaços. “É importante compreender as dificuldades que as mulheres enfrentam, assim como é fundamental que elas tenham mais apoio para chegar a cargos de liderança nas organizações, dentro do sistema das Nações Unidas, nas comunidades, nas cidades.”
Para a diretora-executiva do ONU-Habitat, é uma conquista liderar, mas exige uma porção de sacrifícios e muitas renúncias. “Perdemos momentos preciosos de convivência familiar e com os amigos”, conta.
Nesta entrevista a Gama, Anacláudia Rossbach fala sobre o que a move, os conselhos profissionais que a motivaram a ocupar cargos de liderança e a importância das cidades e de habitações justas para todos.
É doloroso chegar em posições altas. Muitas vezes, é um caminho solitário
-
G |O que te moveu a trilhar esse caminho?
Anacláudia Rossbach |A minha trajetória está relacionada a uma aspiração da juventude de contribuir com o Brasil. Na época de decidir qual faculdade fazer, o país sofria com a hiperinflação. Quando comecei a sair da minha bolha paulistana e a frequentar outras partes da cidade, tive contato com as necessidades reais do nosso país e senti uma aspiração genuína de contribuir. Cursei economia porque, naquele momento, a discussão estava centrada em questões econômicas. Também tinha uma aspiração de ser diplomata e, naquela época, se discutia que a economia era uma boa faculdade como preparação para a diplomacia. Ao longo da faculdade, acabei indo para o setor privado. Em determinado momento, fui morar na Europa trabalhando para uma empresa, porém, depois de algum tempo, decidi voltar ao Brasil e para as minhas aspirações originais. Passei por um processo de reinvenção. Também virei mãe, o que foi muito importante.
-
G |Como a maternidade a ajudou na migração para a área urbana e de habitação?
AR |Não passei por necessidades similares às das populações com as quais trabalho, mas compreendi as necessidades de uma mãe e a importância de ter uma casa. Nesse processo de reinvenção, parti para o mestrado em economia social e comecei a pesquisar sobre violência e taxa de homicídios em São Paulo. Identifiquei uma conexão com homens jovens de favelas e assentamentos precários, e direcionei a minha tese para o tema da habitação, o que me levou a trabalhar na Secretaria de Habitação de São Paulo, na gestão da prefeita Marta Suplicy. Tive um choque de realidade e entendi a verdadeira dimensão das necessidades urbanas. Mais tarde, fui para o Banco Mundial, assessorando o desenho de várias políticas do Plano Nacional de Habitação, do Ministério das Cidades. O Banco Mundial me levou para um trabalho internacional também e comecei a atuar como especialista de habitação em outros países. Depois, fui para a organização Cities Alliance como diretora para a América Latina. Foi longa essa resposta, mas tem uma ponte importante e que a Gama tem participação.
-
G |Que legal! Como a Gama entrou nessa história?
AR |Fico emocionada porque essa conexão com a Gama me ajudou a chegar onde estou hoje. No meio da crise da covid, como muita gente, aos fins de semana eu limpava a casa ouvindo podcasts. Um dia escutei um episódio do podcast da Gama com a Juliana Saldanha [estrategista em marcas pessoais, consultora e criadora do curso Movimente Sua Marca], que falou duas coisas que me bateram pesado. Para ela, no futuro, as grandes transformações vão ser realizadas por meio de coalizões de grupos e associações, ou seja, elas serão coletivas. Só que o mundo ainda não chegou nesse ponto. Então, por enquanto, as opiniões e as presenças individuais são essenciais. O segundo ponto está relacionado à questão de gênero. As mulheres têm a tendência de achar que não precisam ocupar certos espaços e, assim, os deixamos vazios, mas eles acabam sendo ocupados. É nossa obrigação ocupá-los e expressar as nossas opiniões. Depois disso, comecei um processo de repensar muita coisa, passei a me posicionar mais e a colocar a minha voz e a trabalhar com bastante intencionalidade em direção ao meu propósito.
-
G |Quais são os principais desafios em trabalhar com políticas urbanas e de habitação?
AR |As políticas urbanas e de habitação são complexas. Não podemos simplesmente construir coisas nas cidades. A infraestrutura social precisa ser desenvolvida de maneira equitativa em todo o território. A habitação tem inúmeras dimensões também. Segundo estimativas, um bilhão de pessoas moram em assentamentos precários, e trabalhar nesses assentamentos exige um enfoque multidimensional. Não dá para tirar as famílias de onde elas estão e colocá-las em outro lugar, existem relações econômicas, sociais e culturais desenvolvidas ali. Ao mesmo tempo, é necessário enfrentar questões ambientais para reestruturar esses territórios com respeito ao meio ambiente. De acordo com a Agenda 2030, precisamos construir 96 mil unidades habitacionais por dia. Onde essas casas serão construídas? É preciso pensar, por exemplo, na integração dos fluxos migratórios, na população indígena, nos quilombolas. Como fazer tudo isso sem uma pegada ambiental forte, minimizando a expansão desordenada das cidades, mas atendendo a todas peculiaridades culturais, sociais e urbanas? Isso sem falar no financiamento.
As mulheres têm a tendência de achar que não precisam ocupar certos espaços e, assim, os deixamos vazios, mas eles acabam sendo ocupados
-
G |Você tem uma missão com a sua profissão? Ela mudou do início da carreira?
AR |Eu mudei, mas a minha missão segue a mesma. O mundo está em processo de urbanização — a estimativa é que, em 2050, 70% da população esteja nas cidades. Assim, é importante que as cidades estejam preparadas para atender a esse contingente. E não só isso, porque a população das áreas rurais também depende da cidade para canalizar oportunidades econômicas e como um espaço de ofertas culturais, participação cidadã e desenvolvimento humano. E qual é o elemento central da expansão das cidades? A moradia. Por isso, continuo achando que precisamos investir nas cidades para o bem-estar das pessoas, mas ampliei o meu entendimento sobre a importância desses locais no contexto das mudanças climáticas. Boa parte da luta para enfrentar os desafios ambientais vai acontecer nas cidades, que são motores sociais e econômicos dos países. Ampliei meu conhecimento sobre essa problemática nas diversas áreas do mundo. Tenho a obrigação de conhecer as diferentes realidades para fazer com que a ONU esteja afiada para responder a essas necessidades, considerando a diversidade de contextos com um denominador comum, a crise global da habitação.
-
G |Você enfrenta o machismo na sua área, no cargo em que ocupa?
AR |Acho que toda mulher que chega a uma posição de poder passa por situações complicadas. Hoje, enxergo melhor essas nuances porque tive um longo processo de amadurecimento. No passado, muitas coisas aconteciam comigo e eu não tinha consciência nem amadurecimento para compreender as dinâmicas de gênero. Espero que, com o meu trabalho na ponta, eu consiga contribuir para superar essas desigualdades, mas, além disso, também aqui, internamente na organização. É importante compreender as dificuldades que as mulheres enfrentam, assim como é fundamental que elas tenham mais apoio para chegar a cargos de liderança nas organizações, dentro do sistema das Nações Unidas, nas comunidades, nas cidades. Essa é uma agenda importante para mim e para o ONU-Habitat.
-
G |Ao longo da sua trajetória, você lembra de algum erro ou acha que falhou em algum momento? O que faria de diferente hoje?
AR |Cometi muitos erros, mas a minha trajetória é essa, e eu tenho paz em relação a ela. Os erros foram importantes, inclusive para eu chegar onde estou. Eu construí essa paz antes de ser convidada a participar do processo de seleção para o ONU-Habitat, e penso que foi justamente essa paz que me ajudou a tomar a decisão de aceitar esse desafio, de passar por esse processo e estar aqui, com a tranquilidade que tenho hoje. Mas, se pudesse mudar alguma coisa, talvez eu teria tido um pouco menos de pressa e ansiedade no início da carreira. Eu teria ido um pouquinho mais devagar.
Se pudesse mudar alguma coisa, talvez teria tido um pouco menos de pressa e ansiedade no início da carreira
-
G |Você teve um mentor ou uma mentora?
AR |Tive mentores e mentoras que foram muito importantes. À medida que passei a compreender a importância de entender mais a perspectiva das mulheres, ampliei o meu grupo de mentoras. Afinal, vivemos em um mundo comandado pelos homens e acabamos dominadas por essa estrutura. Por isso, sei que é essencial abrir os meus ouvidos para entender melhor as perspectivas feminina e feminista. Por exemplo, há dez anos, uma mentora me deu um grande puxão de orelha. Ela disse: “Você tem muito potencial para ser uma líder e essa é a sua obrigação. Quando receber um convite ou tiver a oportunidade de participar de um processo de seleção para um cargo de liderança, você tem que ir”. Eu achava que a minha contribuição poderia ser de onde estava, sem ser chefe de ninguém nem presidente de nada. Esse puxão de orelha foi fundamental para eu enxergar o meu potencial e estar aqui.
-
G |E como é estar aí, nessa posição?
AR |Há quem veja pessoas que chegaram à posição de liderança, como eu, e acham que foi uma ambição, que todo mundo deseja ocupar espaços como esse. No entanto, não é bem assim, é doloroso chegar em posições altas. Muitas vezes, é um caminho solitário, perdemos momentos preciosos de convivência familiar e com os amigos. Você sai da sua cidade, do seu país. Parece glamouroso, mas tem um lado solitário e de sacrifício.