CV: Anielle Franco
Graduada em jornalismo e inglês nos EUA, a diretora do Instituto Marielle Franco se tornou escritora e palestrante e mantém vivo o legado da irmã
Quando Anielle Franco tinha 16 anos, ela ganhou uma bolsa para jogar vôlei e terminar o ensino médio nos Estados Unidos. Jogadora desde os 8, foi por meio do esporte que a jovem havia conseguido bolsas integrais para deixar a favela da Maré, onde nasceu e cresceu, e estudar em escolas particulares da zona sul do Rio.
Anielle já tinha passado por times como Vasco, Flamengo e Botafogo, mas a família não tinha dinheiro para bancar as passagens, muito menos para mantê-la em outro país. Foi a irmã Marielle, muitas vezes já havia assumido o papel dos pais nas reuniões do colégio, que disse: “Nossa família não tem condição nenhuma de pagar a passagem nesse momento, mas vamos fazer de tudo”.
Deu certo. Anielle se formou e fez mestrado em jornalismo e inglês nas chamadas faculdades historicamente negras dos EUA – “um sonho para qualquer pessoa”. Enquanto isso, a mãe e a irmã trabalhavam em feiras, vendiam roupas, sapatos, sacolé para custear as despesas.
Doze anos depois, Anielle retornou ao Brasil. Fez entrevistas em duas emissoras de TV, mas ouviu de um diretor que “não tinha rosto de bancada”. Decidiu, então, virar professora de inglês. Quando a irmã, que havia se tornado socióloga, se elegeu vereadora do Rio em 2016, as duas também passaram a trabalhar juntas na elaboração dos discursos.
O assassinato de Marielle e do motorista Anderson Gomes em 2018 fez a vida de Anielle “virar de cabeça pra baixo”. Além de lidar com a dor da família, ela foi demitida de três escolas em que dava aula. Em duas delas, ouviu que sua imagem estava muito vinculada à da irmã, após a repercussão do caso.
Foi o movimento de mulheres negras que foi ao socorro de Anielle. Em contato com pensadoras como Lúcia Xavier, Jurema Werneck, Bianca Santana e Winnie Bueno, ela decidiu abrir o Instituto Marielle Franco. A intenção era não só buscar justiça pela morte da irmã — no site da instituição, um relógio informa que são mais de 40 meses sem solução — mas também multiplicar o legado de Marielle.
À frente do instituto, Anielle se tornou palestrante e escritora. No próximo dia 27, em que Marielle faria 43 anos, lança a HQ “Marielle Franco Raízes”, que narra a trajetória da vereadora. No início do mês, também lançou “A Radical Imaginação Política das Mulheres Negras Brasileiras” (Oralituras, 2021), livro de ensaios e discursos organizado ao lado de Ana Carolina Lourenço.
Anielle Franco também está na série documental “Para Onde Vamos” (2021), disponível desde o início do mês no Globoplay. Na entrevista a seguir, ela fala sobre os aprendizados dos últimos anos, a importância da formação e do apoio da família e daquilo que a motiva todos os dias.
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G |O que te trouxe até aqui?
Anielle Franco |Minha fé e minha família. Venho de uma família matriarcal na qual me inspiro e me fortaleço em mulheres que vieram antes de mim. Mulheres que sempre lutaram e fizeram de tudo pelos seus e por si. O que me trouxe até aqui e me mantém firme é exatamente isso. Mesmo na dor e na luta, sigo esperançosa e com fé.
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G |Quais os seus maiores aprendizados nesses anos?
AF |O maior aprendizado é dar valor ao que a gente tem. É lembrar sempre de onde a gente vem, para saber onde está e onde quer chegar. Perder minha irmã me fez abrir a cabeça para coisas que eu jamais pensei. Mas também para situações que nunca imaginei passar. Tenho aprendido muito com tudo isso. Infelizmente, aprendi na dor. Mas sigo diariamente buscando ser uma pessoa melhor pra mim e para todos ao meu redor.
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G |Quais são os principais desafios da sua área e como lida com eles?
AF |Um dos principais é a falta de oportunidades na educação. A maneira como os professores são sempre taxados como profissionais de segunda classe, infelizmente. Eu procuro sempre evoluir, estudar bastante, obter o máximo de conhecimento possível. Essa é a maneira que eu encontro de lidar com isso. Além disso, como mãe, sigo tentando me inspirar em minha mãe e em minha irmã. No instituto, sigo buscando imaginar o que a Marielle faria se estivesse aqui. Assim, sigo nossos valores e crenças. Sei que os desafios serão inúmeros, mas ao mesmo tempo entendo minha missão nisso tudo.
Perder minha irmã me fez abrir a cabeça para coisas que eu jamais pensei. Infelizmente aprendi na dor. E busco ser uma pessoa melhor
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G |Já pensou em desistir?
AF |Se eu disser que não é mentira. A gente pensa, mas segue de novo. Acontece quando as coisas ficam mais difíceis, quando você perde algum emprego ou quando lida com alguma situação burocrática que você não estava esperando. Dá vontade de desistir sim. Mas entendo que isso faz parte de todo um amadurecimento –repensar e até mesmo questionar onde se está. Mas desistir ainda está longe de ser uma opção.
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G |Qual é a importância de uma boa formação acadêmica na sua área?
AF |É extremamente importante. Como professora, sempre falo para os meus alunos que o conhecimento é nosso e ninguém tira. Então, quanto mais conhecimento a gente conseguir adquirir, melhor. Hoje estou no meu terceiro mestrado e sei o quanto cada passo dado até aqui foi e é importante. Me esforço sempre para ser melhor em tudo que faço. Sei também que como professora e diretora, minha postura, meu conhecimento, tudo isso importa. Portanto, sigo acreditando que o ideal é adquirir ainda mais e mais conhecimento.
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G |Você teve um mentor ou mentora?
AF |Tive uma professora na Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) , a Janaina Cardoso, que me inspirou muito. Foi minha única professora negra da faculdade inteira. Tenho um grande carinho por ela. Mas não tive mentores específicos. Para ser a pessoa que eu sou hoje, [a influência] foi mais da minha família, principalmente meus pais e a minha irmã. Fora todas as autoras, ativistas e lideranças que me inspiram, como Angela Davis. Lélia Gonzales, Sueli Carneiro, Jurema Werneck, Lúcia Xavier, entre outras.
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G |Qual é o segredo para trabalhar bem em família?
AF |Diálogo e respeito são primordiais. A gente ainda está se estruturando no Instituto Marielle Franco, ainda tem muitas coisas que caminham a passos lentos. Hoje, temos um conselho consultivo político, um conselho familiar, com o meu pai, a Luyara [filha de Anielle], a minha mãe e eu, que ocupo a posição de diretora. Junto a mim, tem uma equipe de gestão. Mas todas as decisões mais delicadas que precisamos tomar são em conjunto.
Tive uma professora na Uerj, a Janaína Cardoso, que foi minha única professora negra da faculdade inteira. Ela me inspirou muito
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G |Como você enfrenta o racismo e o machismo no mercado de trabalho?
AF |Enfrentei muito em sala de aula. O machismo e o racismo infelizmente não vão acabar tão cedo nesse país. A gente passa por um momento extremamente delicado, cada dia tem um caso novo. São tempos de muito ódio e de desqualificação das mulheres. Acho que a maneira é tentar se munir: além de conhecimento, saber nossos direitos, o que ou quem procurar se acontecer alguma coisa. Tento sempre me precaver e ficar atenta ao que acontece ao meu redor.
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G |Qual a sua missão?
AF |Tem algumas vertentes. A minha primeira missão é tomar conta das minhas filhas, dos meus pais e da Luyara após o assassinato da Mari. Dentro do instituto, a gente tem algumas missões para seguir potencializando e inspirando outras mulheres que seguem na resistência conosco, defendendo as causas da Marielle. Mas também é se manter firme diante disso tudo. É não parar de lutar, de acreditar que dias melhores virão. Não deixar de sonhar com um mundo melhor, com a resolução do caso da minha irmã e, acima de tudo, nunca perder nossa essência como alguém que sabe que está do lado certo da história.