Katie Kitamura: ‘Uma das mentiras mais maravilhosas da ficção é a de que tudo termina de forma bem resolvida’
Autora de ‘Uma Separação’, recém-lançado no Brasil, americana entrou para a tradicional lista de melhores livros do ano de Obama e fala sobre luto e o poder da ficção
Meses após se separar extraoficialmente do marido, uma mulher parte numa jornada para a Grécia para tentar descobrir seu paradeiro a pedido da sogra, que ainda não sabe do fim do relacionamento. Esse é o ponto de partida de “Uma Separação” (Companhia das Letras, 2021), primeiro romance da escritora, jornalista e crítica de arte americana Katie Kitamura a desembarcar no Brasil.
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Em parte inspirado por uma viagem feita pela autora mais de dez anos atrás, numa ocasião envolta em preocupação pelo estado de saúde do pai, o livro tem o luto como tema central. Numa paisagem recentemente arrasada por incêndios florestais, o assunto surge por meio da figura regional das carpideiras, mulheres tradicionalmente contratadas para chorar a morte daqueles que não conhecem, do livro que o ex-marido Christopher está escrevendo e até da tentativa da protagonista de lidar com o fim da longa relação amorosa.
A incapacidade da personagem de contar aos outros sobre o término do casamento, inicialmente motivada por um pedido do marido, tem a ver com um dos principais motivos por que a autora decidiu contar essa história. “Sempre me interesso por pessoas, e não apenas personagens, que fazem coisas que parecem ilógicas, por aqueles que sentem um forte impulso para fazer algo, mas que eu não sei porquê”, explica Katie.
Além disso, embora comece com uma estrutura e estilo aparentemente clássicos de mistério, a narrativa vai se transformando e desafiando as convenções do gênero. “Uma das mentiras mais maravilhosas da ficção é a de que tudo termina de forma bem resolvida”, diz a autora, que conta se interessar muito mais pelo desenvolvimento psicológico de seus personagens do que por acontecimentos externos a eles.
Katie chegou ainda a desenvolver um roteiro baseado no livro para uma adaptação engatilhada para os cinemas, cujos planos acabaram sendo interrompidos pela pandemia. Neste ano, também lançou seu novo romance “Intimacies” (intimidades), ainda sem previsão de lançamento no Brasil, sobre uma tradutora da Corte Internacional que acaba trabalhando para um ex-presidente acusado de crimes de guerra. O ex-presidente americano Barack Obama chegou a incluir a obra entre suas leituras favoritas do ano, e o livro também figura na lista de concorrentes ao National Book Award.
Em entrevista a Gama, a escritora fala sobre a ficção como forma de lidar com as ansiedades, seu interesse em personagens passivas e por que tem se recusado a dar nome às protagonistas de suas obras.
Quando você vive em um lugar por algum tempo, há coisas que permanecem um mistério. Mas há também aquelas em que deixamos de prestar atenção
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G |Em geral, qual é o seu processo de escrita?
Katie Kitamura |Começa com uma imagem, uma ideia ou mesmo uma sensação que tende a permanecer comigo por um longo tempo. As ideias que não vão embora, aquelas que realmente me assombram, são sobre as quais eu escrevo. Nos meus últimos dois livros, o primeiro esboço de uma ideia surgiu pelo menos dez anos antes de a obra estar finalizada e publicada. Com “Uma Separação”, me lembro de estar na Grécia, em Mani, uma parte do Peloponeso do Sul, e ter essa sensação poderosa sobre uma mulher numa paisagem. Esse foi o ponto de partida para o livro. Isso aconteceu em 2007 ou 2008, e o livro só foi sair em inglês em 2017. Então demorou esse período de tempo para eu realmente botar a ideia no papel.
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G |Tem alguma razão especial para você não ter dado nome às protagonistas de seus dois últimos livros?
KK |É, imagino que, para o próximo, vou realmente precisar pensar num nome para o narrador. Mas, de forma geral, tem dois motivos. Um deles é que sempre tento escrever personagens que estejam fora de um sistema social, que não pertençam a um lugar fixo numa hierarquia social. Em “Uma Separação”, a narradora ainda está tecnicamente casada com seu marido, mas não vive mais com ele. Ela ocupa essa espécie de espaço no meio. Então uma das razões para não nomeá-la é afirmar o fato de que ela não pertence a um sistema. E também estou sempre pensando em como criar intimidade e conexão com o leitor sem usar técnicas mais convencionais. Então não costumo dar muitas informações sobre o protagonista, sua história de vida, sua infância ou mesmo sua idade. Em vez disso, espero conseguir criar uma conexão e me comunicar com o leitor através dos movimentos internos na mente do narrador.
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G |Em “Uma Separação”, a protagonista prefere não contar para ninguém sobre o fim da relação com o marido. De que forma isso reflete a personalidade e o estado psicológico da personagem?
KK |Sempre me interesso por pessoas, e não apenas personagens, que fazem coisas que parecem ilógicas, por aqueles que sentem um forte impulso para fazer algo, mas que eu não sei porquê. Não é racional, em termos ficcionais. É nesses momentos que quero me aprofundar e explorar. No caso da personagem, tive uma forte sensação desde o início de que escreveria uma pessoa que estava interpretando um papel. Ela interpretaria o papel da esposa de luto, apesar de não ser mais aquela esposa. Queria pensar em como, com o passar do tempo, sua atuação se tornaria sua própria forma de enxergar as coisas. Mas, conforme escrevia, fui percebendo que ela queria aquela conexão, ainda não estava pronta para largar aquele relacionamento.
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G |Há até um momento no livro em que a personagem finge estar na Grécia pelo mesmo motivo de seu marido, para escrever um livro sobre o luto. Isso reflete uma passividade excessiva da protagonista?
KK |Muito do que escrevi foi pensando na passividade, na qual tenho um interesse formal. Muito da ficção parece se basear na ação, em personagens fazendo coisas, e gosto de pensar em personagens para quem as coisas simplesmente acontecem. Em meu novo livro, “Intimacies”, reflito sobre qual é o preço dessa passividade, e se é possível, depois de passar muito tempo nesse estado, sair dele e dar um passo adiante. Mas “Uma Separação”, para mim, é um romance sobre o luto. De certa forma, ela está de luto pelo fim de seu casamento. Por isso as carpideiras são uma parte tão importante do livro, porque ela está de luto por algo que não conhece inteiramente. E a passividade extrema que ela manifesta em parte existe porque está tão sobrecarregada que não sabe mais como ser ativa em sua vida. Certamente, em períodos de grande tristeza, eu não sabia como fazer para ocupar determinados espaços. Me parece que era isso que eu queria explorar.
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G |As personagens dos seus dois últimos livros trabalham como tradutoras e parecem ambas deslocadas em países que não são seus, como forasteiras. Você queria evocar esse sentimento de não pertencimento?
KK |Eu me interesso, de um ponto de vista literário e ficcional, por pessoas que falam através das palavras dos outros. Isso remete novamente à sua questão sobre passividade. Em determinado ponto, em “Uma Separação”, a protagonista diz que não é uma escritora, que seu marido é um escritor. Ela é uma tradutora, estar na posição de autora não é confortável para nenhuma dessas personagens. A questão do deslocamento é realmente importante no meu trabalho, a sensação de se encontrar entre múltiplas culturas. Esse é um fator da minha própria biografia. Minha família é japonesa e imigrou para os Estados Unidos, e em determinado momento voltou ao Japão. Eu mesma passei longos períodos de tempo no Japão. Nesse sentido, não me sinto firmemente orientada para nenhuma cultura. Não há uma delas que eu possa dizer de forma confortável que tenha modelado tudo que sou hoje e de onde eu venho. Então essa sensação de estar deslocada é definitivamente algo que quero explorar na minha escrita. Os dois últimos romances são protagonizados por personagens que passam por essa espécie de hipersensibilidade de quando você chega a um lugar novo e age como um arqueólogo de toda uma cidade ou país, tentando entender suas regras e hábitos. Quando você vive em um lugar por algum tempo, há tantas coisas que permanecem um mistério. Mas há também aquelas em que vamos deixando de prestar atenção. Então os livros ocupam esse período inicial de sensibilidade, em que todos os detalhes ainda são variáveis.
Nós funcionamos por meio de atuações, interpretando versões particulares de nós mesmos. As versões mudam de acordo com onde estamos
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G |O vilarejo de Gerolimenas acaba transmitindo uma atmosfera cinzenta, desolada, que se aplica bem ao tema do luto. Como foi sua experiência nesse lugar onde escolheu ambientar a história?
KK |Fiquei lá por duas semanas em 2007, quando a semente do livro nasceu. Foi um momento bem particular na minha vida. Naquele tempo, meu pai estava bastante doente, vinha lutando contra um câncer por quase uma década. Foi quando o médico disse que ele poderia só ter mais um ano de vida. Eu lembro que o lugar tinha uma paisagem sublime, mas também carregava um certo medo. Tinham acabado de acontecer enormes incêndios ao longo de todo o verão, que varreram uma grande área do interior. E, conforme dirigíamos por essa região bastante extrema, com vegetação carbonizada para todo lado, fui sentindo um temor e um luto antecipados, sabendo que meu pai não teria muito tempo de vida. Essa é a atmosfera psicológica de boa parte da história. Os personagens só foram surgir muito depois. Esse sentimento essencial de tristeza e medo foi inspirado por estar naquele lugar num momento bem particular da minha vida. Pouca coisa mudou. Os edifícios, o hotel, a igreja, todos esses lugares existiam e continuam ali.
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G |Uma das cenas mais fortes da história acontecem quando a personagem visita uma carpideira. Enquanto eu lia, pensei em como era irônico que ela estivesse falando com uma pessoa contratada para demonstrar pesar, enquanto ela mesma também precisa demonstrar luto por um homem que já não era mais seu marido. Como você pensou essa correlação?
KK |O que eu mais queria era tratar de atuações. Nós funcionamos por meio delas, interpretando versões particulares de nós mesmos. E essas versões mudam de acordo com onde estamos. Obviamente, a protagonista está numa posição em que precisa atuar para todos ao redor dela. E certamente a ideia das carpideiras veio no começo para traçar um paralelo com o que ela está fazendo. Mas aí também comecei a me interessar por essa pressão que existe para expressarmos emoções e torná-las legíveis às outras pessoas. Na época, meu marido, que também é escritor, estava trabalhando em um livro inspirado no caso da Madeleine McCann, a menininha britânica que foi sequestrada. Havia muita pressão sobre os pais, e particularmente sobre a mãe. Muita gente se perguntava por que ela não chorava. Se ela aparecesse chorando na TV, poderíamos sentir mais pena dela. Então fiquei fascinada por essa demanda por esse tipo de reação, que é ainda mais forte com mulheres. Acredito que a personagem tenha percebido que não conseguiria expressar o luto da forma como as pessoas gostariam.
Casinha de pedra próxima do vilarejo de Kitta, na península de Mani, na Grécia DEA/ARCHIVIO J. LANGE/Getty Images
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G |No começo, o livro passa a sensação de uma narrativa de mistério mais tradicional, mas depois acaba enveredando por caminhos diferentes. Essa mudança sempre fez parte dos seus planos para a história?
KK |Gosto dessa moldura de mistério ou suspense para criar um certo momentum na abertura do romance, mas estou muito mais interessada em explorar o que acontece internamente do que o exterior ou questões mais tradicionais de roteiro e resoluções. Os mistérios são realmente de si, da consciência da personagem central. Como escritora, sou profundamente impactada pelo que li quando criança. E isso é interessante, porque agora também tenho meus filhos e vejo o que é que eles gostam de ler, o que acompanham de forma quase viciante. No meu caso, eram histórias de mistério. Então, de alguma maneira fundamental, o gênero está impresso na minha compreensão do ato de contar histórias. Mas, como eu disse, no fim das contas, meus interesses estão mais na área da psicologia e da consciência.
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G |As resoluções seriam então mais sobre como a protagonista internaliza os acontecimentos e as frustrações?
KK |Uma das mentiras mais maravilhosas da ficção é a de que tudo termina de forma bem resolvida. Com esse romance em particular, comecei a pensar no fato de que o luto geralmente é mal resolvido, e permanece por mais tempo do que se costuma pensar. Então sabia que queria escrever algo que resistisse a esse tipo de encerramento. Não queria que fosse uma história em que a personagem estivesse de luto e superasse esse sentimento. Queria pensar sobre os traços permanentes daquilo. E, na vida, há situações em que você simplesmente não sabe, mistérios que não consegue resolver. O mais difícil para essa personagem é que a situação não está resolvida e vai continuar a assombrá-la, ela não tem a oportunidade de uma conclusão. Fantasmas nos assombram quando alguma coisa não está certa. Psicologicamente, significa que algumas coisas simplesmente não podem ser totalmente solucionadas.
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G |Um clichê desse tipo de história é o do homem que vai atrás de uma mulher desaparecida ou morta. Você optou por inverter os gêneros de forma proposital?
KK |Com certeza, foi um dos pontos mais importantes. Um dos lugares comuns que você mais vê no cinema ou na TV é o do corpo de uma mulher que é revelado já nos créditos iniciais. E, claro, o cadáver só está ali para levar o detetive à sua jornada de descoberta tanto do culpado quanto de alguma verdade profunda sobre ele mesmo. Então eu queria ter um homem desaparecido, em vez de uma mulher, e que a personagem central fosse feminina. O quão diferente a narrativa pode ser quando você faz essa inversão?
Uma das coisas mais adoráveis da ficção é que tanta coisa vai parar na caixinha do romance que não chega a ocupar sua vida pessoal
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G |Ironicamente, parece que Christopher vivia sua vida como escrevia seus livros. Tanto o interesse pelo tema do luto quanto sua dificuldade para concluir suas obras de forma satisfatória parecem ter a ver com o que ficamos sabendo sobre ele. Você construiu esses paralelos de forma consciente?
KK |Não sei, acho que não tinha percebido isso até você dizer. É 100% verdade, ninguém nunca tinha mencionado isso. E faz sentido. Em contraste com a narradora, Christopher de fato é um contador de histórias. É alguém que controla a narrativa, que interpreta papéis o tempo todo, alguém que tem talento e charme, então essas sincronicidades fazem sentido para o personagem. Mas gosto da ideia de que ele estava escrevendo um grande retrato de sua própria vida. Quero dizer, sinto que tem várias coisas que você faz quando está escrevendo que só vai perceber depois que tiver terminado. Talvez essa seja uma delas.
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G |Embora seja um personagem central da narrativa, Christopher nunca chega a ter uma presença física nela. Qual era a sua visão sobre o personagem?
KK |Ele foi um personagem complicado de escrever. Precisava haver algo que atraísse o suficiente para que você se perguntasse o que aconteceu com ele mesmo nunca o tendo encontrado. Ao mesmo tempo, eu estava determinada a não incluir muitos flashbacks. A história é contada em primeira pessoa, pelo ponto de vista de alguém tão decepcionada com seu companheiro que a personagem tem um senso muito forte de quem é Christopher. E não falo de uma memória dos primeiros dias de amor, mas de alguém que já esteve apaixonada, mas que com o tempo sabe que nunca vai voltar àquele mesmo estado novamente. É uma dessas coisas que, quando você descobre como funciona, ela simplesmente para de funcionar. Como mágica, uma vez que você sabe o truque, já não é tão efetivo. A protagonista é alguém que enxerga através do charme de Christopher, mas ao mesmo tempo é necessário se manter verdadeiro em relação a esse charme. É preciso seduzir e atiçar o leitor o suficiente para que ele entenda por que um dia ela esteve fascinada por esse homem, e fique ele mesmo curioso para continuar lendo.
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G |Chegou a ser anunciado que “Uma Separação” seria adaptado para o cinema. Isso ainda vai acontecer? E qual o seu grau de envolvimento com a adaptação?
KK |Foi uma dessas situações em que chegamos muito perto do início das filmagens. E aí a pandemia começou e a disponibilidade de várias pessoas e lugares se tornou bem mais complexa. Então no momento ainda estamos no meio disso, eu diria. Mas eu escrevi sim o roteiro. E foi uma experiência maravilhosa, aprendi muito com ela. Escrever um roteiro não é algo tão distinto de escrever um romance, mas tem diferenças o suficiente. Quando você conta a mesma história em um filme, tem que maximizar tudo que for possível. Nesse sentido, fui pega de surpresa ao descobrir que ainda apreciava a companhia daqueles personagens, estar em seu mundo. Então, de qualquer forma, aprendi muito e adorei a experiência.
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G |Seus livros falam bastante sobre relações humanas e os graus de intimidade que conseguimos ter com outras pessoas. Que experiências, pessoais ou não, você costuma evocar na hora de desenvolver personagens e tramas?
KK |Eu e meu marido não mostramos o que estamos escrevendo um ao outro até que tenhamos quase concluído. Aí vivemos um momento engraçado de entender aquilo em que a outra pessoa esteve trabalhando ao longo dos últimos dois anos. Uma das coisas mais adoráveis da ficção é que tanta coisa vai parar na caixinha do romance que não chega a ocupar sua vida pessoal, se é que isso faz sentido. Com nossos dois últimos livros, estivemos pensando sobre nossa própria ansiedade em relação ao que está acontecendo politicamente nos EUA e na Inglaterra. Só que aí muito dessa ansiedade acabou indo parar no romance, em vez de nossas vidas. É engraçado. Eu tendo a funcionar de diversas formas diferentes, e os livros são expressões de quem eu sou de uma maneira bem fundamental. Como escritora de ficção, penso que, se você acha que vai conseguir se esconder ao escrever um romance, provavelmente está no negócio errado, porque é uma coisa tão reveladora, e você expressa alguns detalhes essenciais sobre como se movimenta no mundo. Mas também acaba funcionando como um repositório bem útil, onde muitas ansiedades e especulações podem ser mais produtivas do que seriam na vida real.
- Uma Separação
- Katie Kitamura
- Companhia das Letras
- 216 páginas
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